Suzana Faleiro Barroso
EBP

A indignação é o afeto que acomete os seres falantes quando são destituídos de sua dignidade por diversos motivos, sejam esses de caráter social, político, ético ou clínico. Assistimos em 2011, a manifestação dos “indignados” em diversas cidades da Europa, isto é, uma reação em escala global contra a política econômica daquele momento. No Brasil, no ano de 1993, a banda Skank lançava a música intitulada “Indignação” – “indignação indigna, indigna nação…”. Em 2019 não temos mais a “massa indignada” da qual falava a música. Na história do fundador da psicanálise, a indignação também marcou presença. Um dos episódios memoráveis da biografia de Freud no tempo do nazifascismo foi sua indignação diante da cena de humilhação do pai judeu nas ruas de Viena.

Tomada na série do ódio e da cólera é nova a inserção da indignação no campo dos afetos lacanianos. Embora Lacan não a tenha mencionado junto aos demais afetos que discute em Televisão (1973), – angústia, tédio, morosidade, etc. – ela implica, como esses outros, uma articulação entre significante e corpo, significante e objeto. Trabalhamos, portanto, com a teoria lacaniana dos afetos, que não é uma teoria das emoções, mas sim da corporificação do significante. A corporificação é “a introdução de um significante na dimensão do corpo — sua incorporação, o que implica a perda da capacidade de significar em proveito de um efeito de gozo” (LECOEUR, 2010, p.28). Segundo Lacan “o afeto vem a um corpo cuja propriedade seria habitar a linguagem, […] por não encontrar alojamento, pelo menos não a seu gosto” (LACAN, 1973/2003, p.526). Isso quer dizer que o afeto se desloca, que está desalojado no corpo, sem lugar próprio, que está à deriva, embora não esteja desconectado do significante. O afeto demonstra a impossibilidade de harmonia junto ao ser falante, testemunha sua inadequação ao mundo da linguagem, visto que do encontro sempre traumático das palavras com os corpos decorrem os desarranjos, as afecções e as perturbações das funções do corpo vivo marcado, portanto, por um modo de gozo.

Abordarei a seguir as incidências clínicas da indignação através da clínica da psicose e o que ela nos ensina sobre a especificidade do afeto da indignação em relação à cólera e ao ódio. Primeiramente, recorto da leitura lacaniana do caso de Schreber o destaque dado à indignação, no Seminário, livro 3: as psicoses. Schreber acolheu com indignação, disse Lacan, a primeira manifestação da fantasia feminizante, índice inicial da intuição delirante. Em suas “Memórias” Schreber narrou seus sonhos, datados da época em que foi nomeado para presidente da Corte de Apelação de Dresden, buscando explica-los à luz do que aconteceu depois, no segundo período de sua doença, isto é, buscando interpretá-los. Um intenso mal-estar provocado por uma sensação quando estava ainda meio adormecido ganhava mais estranheza para Schreber na medida em que pensava sobre o assunto na vigília.

Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito – essa ideia era tão alheia a todo o meu modo de sentir que, permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado com tal indignação que de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim, não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por influências exteriores que estavam em jogo. (SCHREBER, 2006, p. 54).

“Há aí uma espécie de conflito moral”, afirmou Lacan, discutindo o estatuto pré-consciente desse fenômeno. Destacou seu caráter ético e verificou o destino dessa fantasia na fase terminal do delírio schreberiano, segundo o qual o homem deve ser a mulher permanente de Deus, em permanentes relações eróticas com ele. Entre o conflito moral da segunda etapa da psicose de Schreber e a etapa final do seu delírio, verifica-se uma evolução do trabalho delirante que modificou a posição do sujeito quanto ao gozo. No tempo, da indignação, o gozo feminizado o afetava anulando toda sua dignidade ao reduzi-lo à posição de objeto do gozo do Outro em discordância com seus ideais masculinos. Mais tarde, o trabalho do significante promoveu não somente o consentimento ao gozo, mas, além disso, lhe conferiu algo de sublime. Schreber vai encontrar no plano de Deus a justificativa para seu sofrimento e até a emasculação passa a ser aceitável como desígnio divino. O gozo do Outro é identificado por meio do culto à feminilidade. A trajetória de Schreber nos mostra como o delírio permitiu elevar um objeto à dignidade de coisa.

Diferente da paranoia schreberiana, outra psicose, a melancolia, coloca em jogo uma modalidade de afeto que podemos aproximar da indignação, isto é, a indignidade melancólica. Enquanto no paranoico, o sujeito pode ser degradado à condição de objeto mais de gozar do Outro, na melancolia é a vertente de objeto rebotalho do simbólico que vai compor o delírio de indignidade. Quando a sombra do objeto cai sobre o eu é o status de dejeto do eu que vigora. É pela via da indignidade que o melancólico tenta reconstituir delirantemente o Outro de onde espera a punição merecida. Ambos, o paranoico e o melancólico, se encontram como objetos do Outro. Contudo, é preciso diferenciar a indignidade do gozo da indignação. A indignidade do melancólico desvela a verdade do gozo, a saber, ele é sempre indigno. Neste sentido, a indignação vela e eleva de algum modo essa indignidade real do gozo. “O gozo como tal, no entanto, não puxa para o alto. E ele é nu, cru no sentido oposto ao cozido. Ele é cru, não tem dignidade com que se recobrir” (MILLER, 2010, p. 21). Podemos supor que há nas psicoses uma indignação estrutural, correlata à posição de objeto reservada ao sujeito pela própria estrutura.

Para além do que a psicose ensina sobre a indignação, destaco uma definição do afeto proposta por Lacan no “Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise”, no qual ele afirma que “afeto, só há um”, o que implica, certamente, a dimensão do gozo.

Julgo possível determinar isto, especialmente a partir do discurso psicanalítico. Com efeito, a partir desse discurso não há senão um afeto, ou seja, o produto da tomada do ser falante num discurso, na medida em que esse discurso o determina como objeto. (LACAN, 1969-70, 1992, p. 143).

Psicótico ou não, ao falasser resta sempre uma quota de afeto intimamente associada a sua condição de objeto, relativa ao seu nascimento no campo do Outro.

A indignação faz laço social na psicose.

No caso de Rodrigo veremos como a indignação é uma tentativa de operar simbolicamente sobre o gozo, uma maneira de fazer laço e de endereçamento ao campo do Outro, em oposição à solução psicótica da passagem ao ato da qual este sujeito se servia antes da análise. Rodrigo chegou ao tratamento aos 11 anos de idade devido às frequentes passagens ao ato, principalmente no colégio, onde já tinha agredido vários colegas. Na primeira entrevista disse que ficava muito nervoso com os meninos porque era zoado por eles. Combinavam de fazer alguma bagunça juntos, mas depois, saíam fora e jogavam a culpa nele. “Não é justo”, dizia. Em meio aos vários relatos da “zoação” da qual sofria, chamava a atenção a posição especular na qual o sujeito se colocava com relação aos meninos. Isso se tornou evidente na transferência, na relação de Rodrigo com outro analisante que era seu colega no colégio, sobre quem queria saber tudo, saber o que ele me falava, o que fazia nas sessões, etc. Esse ponto, logo de início, indicava o manejo sutil requerido pela transferência de Rodrigo, que chegou ao tratamento através de indicação da família do colega. Essa posição transferencial elucidava também o quanto a proximidade excessiva do pequeno outro sem mediação simbólica estava no cerne de seus atos agressivos e do ódio aí colocado em jogo. Somava-se a esse quadro um diagnóstico de autismo recebido desde os quatro anos de um psiquiatra biologicista, muita medicação, o que contribuía para uma escassez do recurso à palavra para tratar o real do gozo até então. Sendo assim, o início das sessões psicanalíticas, por si só, já introduzia novo horizonte para o sujeito, inaugurando o trabalho de subjetivação dos seus atos.

Destaco a seguir o relato de um episódio no qual Rodrigo demonstrou como a indignação foi operadora de um endereçamento ao Outro, marcando nova resposta desse sujeito ao encontro com o gozo traumático de maneira distinta da passagem ao ato. Segundo o que disse Rodrigo, ele quase teria batido em uma menina que tinha lhe zoado. Descreveu o episódio: ele estava com a mão sobre seu órgão genital, quando uma menina teria lhe olhado rindo, zoando. Teve certeza de que ela ria dele e do problema que sofria naquele momento (uma inflamação no pênis). Decidiu não bater muito nela (situações constantes na vida social desse menino antes da análise) porque ela tinha só três anos. Acrescenta que “ficou indignado”. Aqui podemos destacar o gozo escópico associado à indignação de Rodrigo. As circunstâncias do acontecimento relatado por Rodrigo não deixam de evocar a indignação de Schreber, visto que o sujeito se sentiu atingido em sua virilidade pelo olhar do Outro mal.

O interessante foi que a indignação, diferente das respostas anteriores das passagens ao ato agressivas, mobilizou este sujeito para uma série de providências endereçadas ao Outro (queixas, reinvindicações, apelos às leis, à justiça) das quais ele foi se ocupando, inclusive colocando o direito e a lei no foco de seu interesse. O “ficar indignado” significou outro modo de tratar o gozo, de operar simbolicamente sobre o gozo, não mais sem o recurso ao Outro. Quando o gozo é elevado à dignidade da Coisa, diz Miller no artigo “A salvação pelos dejetos” (2010), quando ele não é rebaixado à indignidade de dejeto, ele é sublimado, ou seja, socializado. Isso quer dizer que o gozo é integrado ao laço social, ao circuito das trocas.

Para concluir, o que a psicose nos ensina é que a indignação implica duas faces, a saber, uma face de degradação do sujeito ao estatuto de objeto e uma face sublime ou de enlaçamento do sujeito ao campo do Outro. Do lado do psicanalista, tal como nos disse Miller, ele pode produzir uma elevação do dejeto à dignidade da Coisa ao fazer da sua posição de dejeto o princípio específico do discurso psicanalítico. Dessa maneira, ao sustentar a prática com os psicóticos, o psicanalista confere à loucura um tratamento digno, diferentemente das políticas degradantes para a saúde mental na infância que, lamentavelmente, se esboçam com toda virulência no Brasil de hoje.


Referências bibliográficas:

LACAN, J. (1969-70/1992) O seminário, livro 17, o avesso da psicanálise (1969-70). Versão Ari Roitman. Texto estabelecido por Jacques Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

LECOEUR, B. (2010) “Le corps et ses restes: masque et incorporation”, in Quarto-révue de psychanalyse, Bruxelas, ECF-ACF en Belgique, nº 97, abr., p.50-54.

MILLER, J. A. (2010) “A salvação pelos dejetos”, in Correio. Revista da EBP, São Paulo, nº 67, dez. p.19-26.

SCHREBER, D. P. (2006) Memorias de um doente dos nervos. São Paulo, Editora Paz e Terra.