EDITORIAL

Silvia Salman

Luzes e sombras

O império das imagens não é o reino da transparência.

O tratamento das luzes e das sombras é talvez um dos elementos mais importantes, tanto na arte como na fotografia e no cinema, campos da cultura nos quais a imagem tem também um lugar preponderante. A cor, a textura, o espaço, o volume, tudo isso faz com que a obra se expresse e seja vista de determinada maneira.

O uso da luz foi o ponto chave nas composições impressionistas, como a intensidade do claro-escuro foi primordial para o barroco. Iluminando alguns planos, sombreando outros com mais ou menos contrastes, uma parte da imagem pode brilhar enquanto outra permanece opaca.

A primazia da imagem que caracteriza nossa época, na qual novos suportes tecnológicos dão lugar a novos conteúdos e novas formas de narrá-los, não impede que a psicanálise se interrogue sobre o limite entre o visível e o invisível. Os esquemas ópticos de Lacan mergulham nesse campo que admite algo do não representável, até chegarem a circunscrever aquilo que é da ordem da falta de representação. Nem o significante nem a imagem são suficientes para dizê-lo ou mostrá-lo. Adeus à ilusão do bloco mágico!

Assim o expressam os textos que poderão ser lidos a seguir e que são uma contribuição ao tema que exploraremos no próximo ENAPOL. Cada um a sua maneira transmite esse impossível de ver. Sérgio de Campos destaca a parcialidade da pulsão introduzindo o lugar do resto, que é também o que resta à imagem. Nora Guerrero de Medina nos ensina sobre um uso possível do analista, para encontrar um limite a um gozo sexual que transborda a tela. Isolda Arango Alvarez assinala o gozo que permanece nas entrelinhas, a partir de uma imagem que oculta o indizível nos cortes do corpo.

Finalmente, me apoio na primeira parte da conferência de Miquel Bassols no encerramento do último Encontro Brasileiro, para dizer que na experiência analítica trata-se também de fazer existir o mal entendido das imagens, como um modo de fazer aparecer os tropeços com o real.

Desejo-lhes uma boa leitura!

 

Tradução do espanhol: Paola Salinas

Vídeoflash 3 – Miquel Bassols Conferência de Encerramento do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano Parte 1

Sérgio de Campos[1]

Império das imagens: um ponto de vista

O mundo das imagens, grosso modo, divide-se em dois domínios. O primeiro campo é da esfera do aparelho psíquico do parlêtre, das imagens produzidas pelo nosso inconsciente como as representações mentais: sonhos, devaneios e fantasias. O segundo domínio pode ser descrito como sendo as representações visuais, os objetos materiais e os signos que representam o Outro, ou seja, mundo exterior. É digno de nota que as imagens do Outro influenciam as imagens do parlêtre e as imagens desse, recriam as imagens do Outro, de sorte que um domínio incide e se infiltra sobre o outro, produzindo todo um intercambio e superposição de imagens que produzem efeitos subjetivos de todas as ordens.

Ao analisarmos a existência das imagens do Outro, pode-se concluir que existem, de uma forma geral, três modelos imagens e por consequência, três maneiras de ver o Outro. O primeiro modelo, considerado artesanal, nomeia todas as imagem feitas à mão, dependendo, portanto, de um savoir-faire – da habilidade e do talento – de cada um, plasmar o visível, a imaginação visual e até mesmo o invisível. Nesse conjunto distinguimos dois tipos de imagens, segundo Freud, aquelas cujas técnicas artísticas agregam – per via di porre – como os desenhos e as pinturas e aquelas cujas técnicas retiram – per via di levare – como esculturas em mármore, madeira, etc. Freud sinalizou o funcionamento de uma análise per via di levare (FREUD, 1904/1990).

O segundo modelo, se refere às imagens que dependem da luz – elemento físico de visibilidade – e de uma máquina de registro, implicando a presença de objetos do campo da realidade. Esse modelo pode ser denominado de luminoso, visto que para que ele ocorra deve haver luminosidade. O modelo luminoso permite que as imagens óticas se projetem através de um raio de luz a partir de um objeto natural captado na realidade, de tal sorte que esse objeto é fixado por um elemento fotossensível químico, como nos casos da fotografia e do cinema. O modelo luminoso foi paradigma do século XX das grandes descobertas e das formidáveis invenções da ciência como meios de investigação do mundo natural, como o microscópio e o telescópio. Freud analisou que a cada invenção, o homem recria seus próprios órgãos ampliando os limites de seu funcionamento. No que concerne à pulsão escópica e às imagens do Outro, a câmara fotográfica, retém as impressões visuais fugidias, por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através do telescópio, vê à longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de visibilidade da própria retina (FREUD, 1929/1990).

Por último, o terceiro modelo das imagens do Outro que denominamos de digital, apanágio do século XXI, se relacionam com as imagens sintéticas, infográficas, virtuais, inteiramente calculadas pela computação. O terceiro modelo da imagem do Outro se constitui a partir da transformação de uma matriz de números inteiramente calculada em pontos digitais elementares – pixel – que visualizamos em um écran que nos olha (SANTAELLA, p. 2001, p.157). Aliás, é no terceiro modelo que se configura o império das imagens, como unidade política de domínio soberano e de autoridade do Outro, forma de governo com influência dominadora no mercado sob o ponto de vista econômico em um vasto território e uma ordem de ferro com poder irrestrito de informação com fins ao controle.

Miller inspirado em Antônio Negri, sociólogo italiano, assinala que vivemos na era do “Outro que não existe”, em um regime que não age mais pela censura, tornando improvável a ideia de transgressão e de revolução. Deslocamos da sociedade disciplinar, que supõe uma clara distinção entre o in e o out, para a sociedade de controle, interiorizada, flexível, em rede, flutuante e êxtima. O imperialismo, hoje não é mais de ninguém, está em todas as partes e em nenhuma, pois não há mais fronteiras entre o in e o out (MILLER, 2011, p. 9). O império das imagens do Outro se propaga e se difunde em volume e profusão, corrompe nosso modo de vida e nosso aparato psíquico, se infiltra sem pedir permissão em nossos lares, nos induz ao consumo de objetos supérfluos, nos tornam reféns e se alastra mediante as novas tecnologias contaminando todos os gadgets, constituindo assim o que Lacan nomeou de alethosphera.

Se levarmos em consideração o tempo em articulação com as imagens do Outro, pode-se deduzir que o modelo artesanal tem por a natureza o perene; o segundo, o luminoso circunscreve o mundo do instantâneo, do lapso e da interrupção do fluxo do tempo, e por último, o modelo digital se configura como o universo do evanescente, do devir, do tempo puro, manipulável, reversível e reiniciável em qualquer momento (SANTAELLA, p. 2001, p.175).

Do ponto de vista do parlêtre, a imagem artesanal é feita para a contemplação do Outro, a imagem luminosa se presta à observação do Outro e a digital à interação com o Outro. Na imagem artesanal havendo nela algo de sagrado evoca uma nostalgia do divino. Portanto, a imagem artesanal convoca o parlêtre a um impossível contato imediato, sem mediações com o transcendente, ao mesmo tempo em que produz um afastamento que é próprio dos objetos únicos, envolvidos num círculo mágico da aura de autenticidade, como foi teorizado por Walter Benjamin. Já a imagem luminosa é profana, pois surge como um fragmento arrancado do corpo do Outro, oferecendo-se ao parlêtre como objeto de observação, um recorte do Outro em sua realidade e em sua natureza. Nesse segundo modelo, o objeto extraído do campo do Outro, solicita ao parlêtre, aquiescência e reconhecimento do Outro, produzindo memória e identificação. Por último, as imagens digitais do terceiro modelo produz a interatividade entre o Outro e o parlêtre, suprimindo as distancias, engendrando uma imersão e uma navegação nas circunvoluções no interior da imagem (SANTAELLA, p. 2001, p.174).

O terceiro modelo se propaga de maneira inquietante pelas novas paisagens da internet e se expressa de maneira imperativa como apanágio do progresso, no qual a informação é signo de poder. Se por um lado, o primeiro modelo está situado na condição de “ver e não ser visto”, como no panóptico de Jeremy Benthan; no terceiro modelo o axioma do panóptico se desloca para o imperativo “ver, tudo ver, ver tudo de tudo”, que se expressa como uma vontade de gozo que se impõe como uma lei (FOUCAULT, 2007). Já nos anos 30, Walter Benjamin assinalava que “outrora, com Homero, a humanidade tinha sido objeto de contemplação dos deuses do Olympio, agora se ela torna objeto de contemplação de si mesma”. O terceiro modelo, apanágio do império das imagens, criou Outro evanescente, mas, também onividente, fruto da bricolagem da ciência e da tecnologia, cujo olhar não mais transcende, tampouco contempla o mundo; contudo, supervisiona, controla, se infiltra e se imiscui na sociedade e em todos os domínios da vida. Contudo, não mais vigia de fora, como panóptico de Benthan, mas controla de dentro, abolindo a fronteira entre o in e o out.

Se no primeiro e no segundo modelo, por detrás da imagem há uma sombra, a Coisa a ser representada que guarda distancia com a própria imagem, visto que a imagem como um véu, vela o real do gozo, pode-se dizer que no terceiro modelo, a imagem digital está chapada sobre a Coisa (WAJCMAN, 2010, p. 15). A tela plana do computador não nos deixa mais imaginar o que se encontra por detrás da imagem, de modo que não mais existe uma distancia entre a imagem e a Coisa. Portanto, a imagem do Outro e a Coisa se superpõem, se tornam íntimas e se confundem, de tal sorte que a imagem fabrica uma ilusão do real. Nos tempos de hoje, as imagens são fábricas do real (WACJMAN, 2010, p.59). Portanto, no contemporâneo segue-se a orientação de que não deve mascarar o mundo, mas mostrá-lo como ele é de fato. Outrora, sob o domínio do modelo luminoso, o neorrealismo italiano, o fotojornalismo e os fotógrafos de guerra tentaram captar o real em suas lentes e mostrar o mundo como ele é.

No mundo de hoje, temos o homem imagem, impregnado com as imagens do Outro, agora não mais especular como o fotojornalismo, tampouco intersubjetivo, fruto uma “imagem rainha” espessa que encobria a sombra do objeto, como cogitou Lacan no estágio do espelho. Entretanto, temos a imagem do homem construído pela tecnologia que tenta traduzir o próprio real, como as imagens médicas das ressonâncias magnéticas. Com efeito, a alta modernidade também é idolatra, particularmente, das imagens científicas e das imagens tecnológicas.

O terceiro modelo, no qual a imagem fabrica uma ilusão do real, se infiltrou não apenas na ciência, mas em diversos terrenos da cultura e da arte. Em 1977, o alemão Gunther von Hagens, conhecido como emplastificador de corpos, criou uma técnica inovadora de preservação de cadáveres e a elevou ao estatuto de arte. Sua técnica mescla congelamento, acetona e polímeros. O resultado é uma verdadeira aula de anatomia que faz parte da exposição Body Worlds (Mundo de corpos), que fica na Atlantis Gallery, em Londres. Ao expor cerca de 200 cadáveres sem pele, como o de uma mulher grávida dissecada com o feto exposto, Hagens despertou reações mistas de repulsa, indignação, surpresa e fascinação. A exposição esteve no Brasil, com o nome “Ciclo da vida”, inclusive me Belo Horizonte, em 2009. O que se observa nas imagens digitais, onde a imagem e o real estão em continuidade, é o desaparecimento dos semblantes. Essas imagens mostram apenas o que o objeto é, elas não aludem, tampouco querem dizer algo. Portanto, existe mais semblante numa medalhinha da virgem Maria do que nos corpos de Gunther von Hagens.

Com efeito, um modelo nunca se desloca em direção ao outro de maneira abrupta, mas vão se mesclando, se justapondo, infiltrando-se, transformando-se gradativamente um no outro, de sorte que hoje, a imagem do Outro nunca se encontra com exclusividade dentro de um único modelo. Com efeito, mesmo que ela tenha um viés, ela se apresenta amarrada como num nó RSI. Assim, grosso modo, o modelo artesanal pode ser considerado como apanágio do imaginário, na medida em que ela reproduz o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo; o modelo luminoso, em razão da extração instantânea do objeto, em virtude do recorte da realidade, pode ser aludido ao objeto a e ao registro do simbólico, já na esfera do real, poderíamos supor o modelo digital, como uma espécie de fabrica do real.

Em novembro último, visitei uma bela exposição em Paris, de nome Icônes du Petit Palais, sobre a arte cristã bizantina. Não resta dúvida que a exposição de ícones sagrados, através de pinturas e esculturas, estava alojada no RSI, porém com prevalência no modelo artesanal, já que sua função era, a partir dos semblantes, despertar a contemplação e a reflexão no parlêtre.

A exposição suscitava uma meditação sobre as religiões que eram a favor ou contra as imagens religiosas. É conhecido o interdito bíblico à teologia dos ícones, de tal sorte que a figuração e o sagrado não são noções sempre compatíveis. Se por um lado, existem religiões que possuem uma afinidade com as imagens como cristianismo e o hinduísmo; por outro, as religiões islâmicas e judaicas proíbem qualquer tipo de imagens de Deus. É digno de nota, o fato de encontrarmos duas posições antagônicas no seio das três religiões fundadas a partir do legado de Abraham.

O judaísmo interdita toda sorte de representação de Yahvé, como exprime um dos mandamentos no Torá, (Exodus: 20, 4-5): Não farás para ti imagem de ídolos, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, tampouco nas águas debaixo da terra. O monoteismo e a interdição das imagens funda uma teologia que a crença deve acontecer sem a presença das imagens. O Deus de Israel é audível e não visível, na medida em que é na lei e na palavra que ele se inscreve para o seu povo. Em contrapartida, o islã proíbe, igualmente, todos os tipos de imagens de Deus. O Corão declara Alá! O impenetrável! Alá não se cria, nada se parece com ele (Corão:122). Ademais, Deus, o impensável, nada pode nem de longe refleti–lo. O profeta Maomé, venerado pelos mulçumanos, raramente, aparece na arte islâmica. Grafias sobre o profeta Maomé figuram raramente apenas nos manuscritos religiosos iranianos e otomanos, e ainda que surja sua imagem, ela nunca está a mostra, mas é frequentemente velada. O islamismo evita qualquer tipo de imagens de Deus ou de Maomé para que a caligrafia se torne a única encarnação da palavra divina. Portanto, a letra está para o islã, assim como a voz está para a religião judaica.

Diferente do judaísmo e do islamismo, o cristianismo desenvolve progressivamente uma tradição na qual Deus, é esboçado nas em imagens e surge, frequentemente, ilustrado no mundo das artes. Ademais, na religião crista, todo ícone reenvia a um protótipo divino, não somente autêntico, mas revelado, no qual a imagem é a cópia fiel em semelhança com Deus e com as demais divindades. Possivelmente, as reticencias das duas religiões em usarem as imagens provavelmente advém do paganismo que utilizava imagens de totens para adoração. No século VI e VII os imperadores romanos passaram a representar o Cristo, os santos e a eles próprios em imagens, sejam em esculturas, sejam cunhadas em moeda.

No século VIII houve a crise iconoclasta, fruto de uma reviravolta política dos imperadores do império bizantino e durou cerca de um século, vitimando milhares de idólatras. Depois da crise iconoclasta, as imagens como representações do sagrado e do divino ressurgiram nos textos canônicos e se tornaram ícones de culto, de veneração e de respeito. Portanto, no cristianismo, com as exceções dos cismas de Lutero e Calvino e nas religiões que foram marcadas pelas suas influências, a imagem tida como representação autêntica, legítima e revelada como ícone, seguiu forte no catolicismo. Com efeito, na religião católica, a imagem se apresenta como ferramenta essencial e indispensável ao culto, à adoração e à mediação com o transcendente.

O modelo artesanal, não obstante ter sido o primeiro que derivou em mais dois modelos, ainda continua a propagar efeitos subjetivos, dado a sua profundidade e a sua complexidade. Assim, é curioso ressaltar que o culto ao sagrado e ao divino é expresso apenas mediante o primeiro modelo, que é o paradigma artesanal. Aliás, não nos consta que o sagrado seja cultuado pela fotografia e pela internet. Portanto, pode-se concluir que por detrás do modelo artesanal das imagens abriga um gozo. Assim, se a imagem sacra é atacada surge o gozo da profanação e do sacrilégio e em contrapartida, como reação, o gozo da revolta e do ódio, a exemplo de um ataque televisionado à imagem de nossa senhora Aparecida perpetrada por um pastor evangélico, ocorrido há alguns anos.

Miller assinala que final do século XX, considerávamos que os conceitos tais como blasfêmia, sacrilégio, profanação, não eram mais que vestígios de um tempo passado. Ele constata que a era da ciência não fez desvanecer o sagrado; e mais, que o sagrado não é um arcaico, mas contemporâneo. O sagrado não é o real, mas um efeito de discurso, uma ficção que mantém uma comunidade unida. Aliás, o sagrado é a pedra angular de sua ordem simbólica, ressalta Miller. O sagrado exige reverência e respeito e a falta dele acarreta o caos e o gozo da profanação e do sacrilégio e em contrapartida desperta o gozo da ira e do ódio.

Então, no episódio do atentado à sede do periódico Charlie Hebdo, na cidade de Paris, em janeiro último, constatamos que estamos diante de um choque de ideologias, no qual estão em jogo dois modelos da imagem. Se por um lado, há uma cultura situada no terceiro modelo que defende um modo de gozo no qual é proibido proibir e que é permitido tudo dizer, em nome de uma liberdade de expressão; e de outro, temos uma cultura que se situa no primeiro modelo, na qual dentro de seu núcleo religioso existe o interdito da representação de imagens tanto de Alá, quanto do profeta Maomé.

Portanto, são dois tipos de gozos em oposição: o primeiro, resultado de um tudo dizer, tudo expressar em nome da liberdade e um segundo, o gozo da cólera revelado em virtude da blasfêmia, profanação e do sacrilégio em consequência do uso abusivo de um ícone que deveria permanecer velado por respeito. Em síntese, no contemporâneo encontramos dois modos de gozo justapostos, porém em oposição, como descreveu de maneira bastante esclarecedora Jésus Santiago em seu artigo, um modo de gozo feminino, não-todo, situado a partir da pluralização do nomes do pai e outro universal, masculino, assentado sobre as insígnias do nome do pai.

O olhar no terceiro modelo da imagem, do império das imagens, se constitui como alvo da pulsão, que se expressa pela pulsão escópica, condicionando o gozo mediante a posição de “ver, tudo ver, ver tudo de tudo e ser visto por todos”, o que não implica qualquer tipo de resto. É, portanto, relevante afirmar que apenas na medida em que a pulsão escópica seja modulada, que ela seja parcial, que deixe sombras, restos, dobras, buracos, enigmas e espaços vazios, é que o olhar, como pulsão, pode despertar e instigar um desejo de saber. Assim nos resta interrogar como a psicanálise poderá operar sobre o parlêtre no contemporâneo, como ela poderá sobreviver no futuro, onde a dimensão do Outro como imperativo do “fazer-se ver”, sem resto, é a condição prevalente de possibilidade para o terceiro modelo.

A guisa de conclusão, Se o primeiro modelo de imagens se presta à contemplação; o segundo, proporciona a extração da realidade do objeto olhar, no qual a fotografia é o melhor molde; por último, o terceiro padrão, no qual denominamos de digital, acrisola[2] um novo paradigma, no qual não há prerrogativas de um registro sobre o outro, de tal sorte que o real, o simbólico e o imaginário estão dispostos em equivalência. Agora, o imaginário é pleno de direito, como os demais. Portanto, esse novo paradigma das imagens, apanágio da clínica contemporânea, ocasionou um novo imaginário e novas maneiras de amarrar o RSI. Eis o nosso desafio!

 


 

Referências Bibliográficas:

 

FOUCAULT, M. Microfísica do poder, São Paulo: Graal, 2007.

Freud, S. (1989). Sobre psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1904).

______. (1929) O mal-estar na civilização. In: STRACHEY, J. (ed.).Tradução de Vera Ribeiro. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.21, p.81-178 (Versão brasileira de 1980).

MILLER, J. A.-, Intuições milanesas, Opção lacaniana online, n. 5, ano II, Julho de 2011.

_______., Primeiro dos comentários sobre o atentado ao jornal Charlie Hebdo, publicado no site da EBP, Seção Minas, 2015.

SANTAELLA, L., Imagem: cognição, semiótica e mídia, Sao Paulo: Iluminuras, 2001.

WAJCMAN, G. L’œil absolu, Paris: éditions Denoel, 2010.

ZIADÉ, R., Icônes du Petit Palais, Les Collections de la ville de Paris, 2014.

 


 

[1] Membro da EBP/AMP

[2] O verbo Acrisola diz respeito ao uso do crisol, o cadinho evocado por Miquel Bassols em sua conferencia de posse da presidencia da AMP, objeto de masserar elementos cuja finalidade é a de criar um novo composto.

Isolda Arango-Alvarez

NEL-Miami

Como conceber uma imagem que certamente não remeta a nenhuma representação? Mesmo que o significante tenha cedido lugar à imagem e agora sejam as imagens as que se oferecem e são tomadas como coordenadas identificatórias, não há já nesse tratamento algo do simbólico em jogo? Certamente, a proliferação de imagens deslocou à proliferação significante. Porém, essas imagens parecem cumprir uma função que era cumprida pelo significante, na medida em que servem à procura incessante do parlêtre de uma identidade, identidade que foi e será sempre vacilante. De Igual forma existem casos nos quais certas imagens servem como ponto de enovelamento ou desenovelamento.

As marcas na pele não são um fenômeno novo. Durante a história estiveram em função de ritos e tradições, sempre vinculadas a algum simbólico que lhes servia de marco. Ora vinculadas com movimentos políticos, símbolos religiosos, como marcas de transição do jovem à vida adulta, ora como marca distintiva de uma tribo ou clã, mas geralmente estavam vinculadas com um aparelho simbólico que lhes dava sentido. As marcas não eram somente marcas, indicavam uma significação mais além da marca mesma.

No caso das neuroses, a Self-injury se apresenta como uma solução falha a problemáticas “típicas” da adolescência, onde o supereu em seu imperativo feroz deixa, literalmente, marcas na pele. Automutilar-se, então, seria um dos tratamentos possíveis e contemporâneos da angústia. Um dos tratamentos possíveis para a não relação sexual e para o enigma da feminilidade ao qual não há quem não fique exposto.

Miller assinala no ultimíssimo ensino de Lacan[2], o real como o terceiro necessário para estabelecer uma mediação entre o simbólico e o imaginário. Porém, aparentemente esses cortes literais no corpo que funcionam para cortar a angústia que surgiu a partir da “ruptura com um namorado” ou “o sem sentido da morte do pai num acidente de trânsito” (falas de pacientes) aparecem mais como enovelados em um arranjo real-imaginário, onde via o imaginário do corpo tenta-se tratar um real insuportável. O corte no corpo opera como corte da angústia gerado pela emergência de um real.

A partir de vários casos de garotas adolescentes que consultam por “fazer-se cortes na pele”, surge a pergunta pela função – caso exista – da imagem de essas marcas. Essas garotas não oferecem esses cortes ao olhar do Outro, somente de algumas outras (amigas), evidenciando que algo da identificação histérica está em jogo. Protegem essas marcas como um tesouro; a imagem da pele cortada fica destinada à intimidade desse corpo, ao próprio olhar num momento de intimidade e privacidade; tanto no momento de produzir-se outro corte tanto quanto simplesmente se olha para eles. As pacientes relatam estabelecer certa relação com esses cortes ainda que seja somente em função de ocultá-los. São esses cortes uma tentativa falha de estabelecer um limite à devastação materna?

Neste contexto, quando se trata da Self-Injury, qual função poderia cumprir a imagem dos cortes na pele? Levando em consideração que nesses casos o corpo chega tomado pela impulsão de um corte literal na sua superfície, corte que causa certo montante de gozo que estraga e emudece ao mesmo tempo, mas em seu sem-sentido literal, esses cortes na pele: cortam.

Cortam e tratam o indizível do real, cortando literalmente o montante da angústia insuportável que excede o sujeito. O que interessa desse tratamento é o ponto no qual se poderia localizar a confluência com o gozo em jogo subjacente e a imagem desses cortes na superfície do corpo.

Qual função operativa poderia cumprir a imagem desses cortes na pele? Em geral não se fazem indiscriminadamente ao longo do corpo, com frequência parecem estar destinados a uma parte do corpo, o braço, o pulso, o antebraço e inclusive a coxa.

Por outra parte, esses cortes “dizem” na medida em que se convida o analisante a falar deles, a “significantizar” essa imagem, me atrevo a dizer seguindo as observações de Miller em A imagem rainha[3], onde assinala nessa oportunidade que “as imagens se significantizam, podem transformar-se em significantes e podem ser tomadas como significantes”[4] Antes desse convite esses cortes não dizem nada, só cortam e deixam sua marca no corpo, o marcam.

Neste sentido, o quê do gozo fica nas entrelinhas nesses cortes? Levando em conta o colocado por Miller no texto anteriormente mencionado: “as imagens rainhas não representam o sujeito mas se coordenam com seu gozo[5]. Poderiam considerar-se as imagens desses cortes no estatuto de uma imagem rainha? Miller considera três imagens rainhas – ao menos naquele momento-: “o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo”.[6]

Em relação com esse sintoma tão contemporâneo como a Self-Injury e a proliferação de casos de garotas adolescentes -sempre mulheres, ainda não tenho tido casos de garotos com esse padecimento- surge a pergunta de se essa imagem da pele onde ficam esses cortes pode funcionar como imagem rainha em relação ao falo, na medida em que os cortes na pele se constituem para essas jovens como único meio para localizar um gozo excessivo e servir de marco ou borda para uma angústia que não consegue ser tratada pela via do simbólico, evidenciado em que a palavra não alcança nem advém como primeiro recurso.

Essas pacientes narram uma angústia insuportável ou uma irrupção de um gozo até então desconhecido, mas que só passa a ser tratado pela palavra uma vez que se encontram com um analista que os convida a um “dizer sobre os cortes” e que introduz outro corte via a interpretação. Antes desse encontro única coisa que “apazigua” é a sensação de dor e corte na pele. Seja porque “acalma a angústia” ou porque infringe “uma dor mais suportável que a dor da morte do pai”.

Seguindo as observações de Miller ao respeito do Um-Corpo, quando assinala que “a tese de Lacan segundo a qual a adoração do Um-Corpo é a ‘raiz do imaginário’”[7] e levando em consideração que nessa ordem de ideias o corpo não é mais da ordem do ser, senão do ter, que trata-se de um corpo que pode ficar submetido à “crença, crença em ter um corpo como se fosse um objeto disponível”[8] colocam-se duas perguntas que orientam o trabalho em questão: É esse o lugar do corpo na Self-Injury, um objeto do qual se dispõe em função de apaziguar a angústia gerada pela emergência de um real pela via do imaginário do corpo? E ainda: é possível considerar a Self-Injury na via da interpretação que oferece Bassols[9] como “uma imagem que mascara o indizível”?

 

Tradução do espanhol: Blanca Musachi

 


 

[1] Nome em inglês que se atribui aos cortes superficiais que alguém realiza na pele, em geral se fazem com algum objeto corto perfurante, mas com o cuidado de não infringir um corte profundo e não está vinculado com tentativa de suicídio. Em espanhol frequentemente chama-se Automutilação.

[2] Miller, J. A. (2012). Lo extraño y lo extranjero. El ultimísimo Lacan, p. 84

[3] Miller, J-A. (1998) A imagen rainha. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 577-602

[4] Idem, p. 579

[5] Idem, p. 583

[6] Idem, p. 581

[7] Idem, p. 109

[8] Idem, p. 108

[9] Bassols, M. El imperio de las imágenes y el goce del cuerpo hablante. Recuperado en: http://oimperiodasimagens.com/es/faq-items/el-imperio-de-las-imagenes-y-el-goce-del-cuerpo-hablante-miquel-bassols/

Nora Guerrero de Medina
NEL – Guayaquil

Como você está? – suspira Rita – imagine que estou vestindo uma camiseta e nada mais e que pode fazer comigo o que quiser.

Rita conta-me, dessa maneira, que atualmente inicia seus encontros sexuais sem romantismo e com muita realidade virtual, que fez do computador um companheiro anônimo com quem satisfaz suas mais íntimas fantasias sexuais “quero que me ajude a pôr um limite ao sexo cibernético – demanda – não quero me converter em uma pessoa que só sente prazer com o computador. Me parece triste este prazer, pois é a máxima expressão da solidão.”

A Internet, a rede informática que conecta computadores de todo o mundo, se converteu também no refúgio e ponto de encontro para sujeitos, eminentemente solitários presos ao drama do amor e do sexo.

Muitos são os serviços que a Internet oferece a sua ampla clientela: homens e mulheres se encontram para concretizar suas fantasias sexuais, somente com um apertar de botão, ou um endereço eletrônico, etc.

A ciência, através de seus múltiplos objetos, oferece cada dia novas possibilidades de prazer ou de gozo para a eterna insatisfação humana. Inclino-me a pensar que a Internet oferece agora uma assistência técnica ao fantasma singular de cada sujeito, o que por sua vez gera novos sintomas, novas formas de sofrimento que caracterizam a subjetividade de nossa época. E como definir a subjetividade de nossa época?

Há uma articulação muito precisa entre a experiência analítica e a aludida subjetividade da época. O que a clínica atual nos mostra é que a época está invadida de objetos para produzir gozo, o que parece confrontar o sujeito, de uma maneira até agora não conhecida, com a incompatibilidade de um gozo excessivo presente no sintoma e a condição essencial desejante dos humanos. Quando falamos de sintomas, no momento atual, significa extrair um termo que aparece no último ensino de Lacan; que aborda o sintoma não mais em sua relação ao simbólico, como nos primeiros seminários, mas como o que vem enovelar os três registros: imaginário, simbólico e real, e a partir de sua homologação no nó borromeano, localiza o lugar do Nome-do-Pai.

De forma geral podemos assinalar que o sintoma tem sempre a mesma estrutura, é significante e gozo, é invólucro significante na borda da substância gozante, sendo que a variabilidade da apresentação do sintoma se refere à diversidade dos invólucros formais estruturalmente vazios, exigindo a presença necessária do sintoma como suplência de gozo, porque está no lugar do gozo que não há.

Voltemos à clínica, Rita e sua demanda de ajuda. Ela me procura quando faltam apenas duas semanas para viajar aos Estados Unidos para estudos universitários; diz estar muito assustada, com muito temor de fracassar, caso não resolva algumas dificuldades que se apresentam no que ela chama a “busca da sexualidade”.

Rapidamente, Rita entra no tema que lhe interessa e diz que aos 12 anos fez um ato de exibicionismo. Na frente de sua casa tinha uma construção com muitos operários. De sua janela podia vê-los e ser vista, de modo que decide tomar banho e, nua, se veste em frente a eles. “Não sei o que me mobilizou a fazer esse ato de mostrar-me nua na frente de estranhos. Todos eles, anônimos, me olhavam com atenção e eu gostava disso”. Sublinho sua frase: “não sei por quê”. Ela sorri e diz: “bom, se foi meu desejo, era para viver uma fantasia sexual como se vê nos filmes”. “Eu tenho toda a sorte de fantasias sexuais – acrescenta Rita – a mais reiterativa é a de ter relações sexuais com pessoas que não conheço, um homem qualquer”.

Rita segue relatando cenas que desenham um padrão em suas fantasias sexuais.

A cena do exibicionismo, a presença insistente do objeto olhar, a sedução de um sujeito adulto e ela pequena, constituem para Rita uma cena típica que daí em diante funcionou mais como matriz fantasmática para suas práticas sexuais.

Quero fazer uma pontuação. No transcorrer das entrevistas chamou minha atenção que Rita contava suas experiências sexuais, sejam infantis ou atuais, em vez de se mostrar esmagada, envergonhada pelas “terríveis coisas que fez ou faz” segundo suas palavras, pelo contrário, parecia experimentar uma singular satisfação como se tivesse encontrado um gozo particular no relato de suas façanhas sexuais à analista. O gozo estava no relato, gozo que já estava presente quando Rita me alerta “fascina-me conversar sobre tudo o que faço e agora não posso contar estas experiências a ninguém, pois pensariam mal de mim”.

Sim, disse-lhe – e agora está contando a mim.

 

Tradução do espanhol: Silvia Emilia Esposito