EDITORIAL

Jorge Forbes

Caros Colegas,

Então chegamos ao último dos boletins Flash preparatórios ao VII ENAPOL.

Uma primeira leitura dos dez textos desta edição evidencia duas qualidades: primeiro, que o tema é atual, provocativo e atraente; segundo, que as abordagens são múltiplas e nem sempre coincidentes. É interessante essa falta de coincidência. Basicamente, ela se registra em visões mais pessimistas ou mais otimistas da pós-modernidade. Aliás, curioso, esse termo “pós-modernidade”, salvo ter me escapado, não está em nenhum dos textos.

“Como fica a psicanálise nesse tempo do Império das Imagens?” É a pergunta orientadora de todos os autores, como soe acontecer.

Os selfies são personagens de vários textos, em alguns como uma praga narcisista, noutros como um fenômeno a comemorar. Senão, vejamos: Marie-Claude Sureau escreve como os selfies se somam à psicanálise, por serem articuladores de conversa: « nous sommes aussi ravis en tant que psychanalystes que les selfies soient définis comme des « embrayeurs de conversations » de blablabla donc qui sortent de l’Un tout seul ».

Monica Pelliza, destaca um aspecto mais preocupante: “…¿permite pensar que el yo contemporáneo se constituye a partir de lo inmediato -la imagen- sin pasar por la mediación del otro? El desborde y la exacerbación del yo ideal determinan un narcisismo excesivo”. Nessa linha, adverte Beatriz Garcia Moreno: “La pantalla se presta para rituales privados que dan cuenta de la naturaleza autística del goce, de la imposibilidad de un lazo social en el que comande el respeto por el sujeto.”.

Já Maria Elena Lora, embora insista no narcisismo do selfie, aponta ao opaco da transparência que nenhum gadget vai anular, dizendo: “Para concluir, en esta reflexión es fundamental señalar ante el imperio de la imagen y el cómputo de la mirada, cómo la experiencia analítica trata más bien de abrir allí donde la transparencia digital esconde la exigencia del sinsentido”.

A necessidade de uma nova clínica é apontada por Patricia Tagle Barton: ”¿Qué destino y qué destina hoy la transferencia, y el encuentro con un analista a los sujetos aquejados de estas nuevas patologías del corazón?”.

Em preocupação semelhante da atualidade da clínica, Eliane Calvet faz um paralelo da história do cinema e da psicanálise – eles têm a mesma idade -, fala das mudanças no cinema, com a nova era do digital, e provoca os analistas: “Et les psychanalystes doivent être à l’heure de cet empire des images vampirique, et continuer à inventer et à faire exister la psychanalyse au XXIème siècle.”

Sobre as mudanças na clínica também, Maria Cecília Ferretti põe em destaque a afirmação de Jacques-Alain Miller: “na época do falasser, digamos a verdade, analisa-se qualquer um”. Estar em frente ao “qualquer um” põe em cheque a psicopatologia, pois não se trataria mais de se confrontar à histeria, à obsessão etc.

Assim prossegue Rômulo Ferreira da Silva, sobre a nova clínica: “O corpo, de uma vez por todas, assume o lugar para que essas imagens sejam exploradas pelo falasser. Ter um corpo e assumir que é a partir dessa consistência imaginária que é possível abordar o real torna-se cada vez mais um desafio. Não apenas para o vivente, mas, consequentemente, para nós, psicanalistas.”

Finalmente, dois escândalos. Maria do Carmo Dias Batista anuncia que fizeram a “mulher toda”. Fizeram ao menos no cinema, ufa! – “A pluralidade dos semblantes de mulher hoje faz com que A mulher-toda, não-barrada, passe a existir”. E agora Josés?

Angelina Harari comenta a exposição de uma escultura de Kapoor, hoje, nos jardins do palácio de Versailles. Para celebrar os 300 anos de Luiz XIV, nada melhor, imaginou o artista, que uma enorme vagina em aço da rainha. “Dirty Corner” é o nome da obra polêmica. Naquela ordem transparente dos jardins há um canto escuro, um canto sujo a provocar o “sol” do Rei.

Fiquemos com essa imagem que incomoda o império e mãos à obra, pois já temos muito a conversar no primeiro fim de semana de setembro, em São Paulo.

Bem-vindos!

Vídeoflash Final

A mulher não existe, afirma Lacan no Seminário 20, quando demonstra que a mulher entra no jogo pelo lado da Existência e não do Universal, terreno do homem e do falo. Entretanto, quem não existe é A mulher toda, completa, onipotente, não barrada pela castração, que também estaria do lado do Universal. Ao contrário, uma mulher, barrada, demonstra em si a própria efemeridade e a contingência da existência, do estar no mundo. Uma mulher existe encarnando o buraco, a barra, a castração, a divisão, o não-todo. “[…] quer dizer que quando um ser falante se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica.”[1]

Muito diferente dA mulher na psicose ou mesmo dA mulher fálica (ou em seus momentos fálicos). Diferente também da mulher-imagem-toda apresentada a seguir.

François Ozon, no filme Uma nova amiga[2], mostra o império das imagens dA mulher em toda sua diversidade: mulher-menina; mulher-casada; mulher-mãe; mulher-amiga; mulher-morta; mulher-avó; mulher-bebê; mulher-que-ama-homem-vestido-de-mulher; homem-vestido-de-mulher que ama uma mulher e a engravida…

Com poucos diálogos, a imagem no filme é imperativa, predomina sobre as palavras. Instrumento principal da narrativa, mostra em quadros sucessivos a extrema plasticidade contemporânea de se estar no mundo como mulher, as várias formas de existir como mulher hoje.

A primeira cena é a dA mulher morta vestida de noiva, as joias sendo dispostas em seu colo, suas orelhas, suas mãos, os cuidadosos preparativos do corpo antes de ser enterrada, misturados a imagens de sua infância com a melhor amiga: quase 10 minutos sem palavras. “Há outros momentos rápidos e eficientes, em que a imagem diz tudo, quando algo é imaginado ou sonhado, revelando um medo, preocupação ou desejo. Ou quando a câmera invade a intimidade, praticamente entrando no personagem por seu rosto, seus olhos, sua boca”.[3]

As palavras vêm no discurso de despedida da melhor amiga, quando se propõe a cuidar por toda a vida da filhinha bebê e do marido da amiga, o homem que secretamente gosta de se vestir de mulher. Travesti ou crossdresser, é sem dúvida com muita delicadeza que Ozon o expõe vestido de mulher; assim travestido, conquista a amiga e surge a reciprocidade do amor e a nova gravidez. Porém, ela quer amá-lo somente através da imagem dA mulher que pode representar. A mulher completa.

A pluralidade dos semblantes de mulher hoje faz com que A mulher-toda, não-barrada, passe a existir. Essa pode ser uma das lições desse belo filme: a interpenetração dos gêneros através da imagem-semblante transforma A mulher em um todo acessível ao universal, independentemente da anatomia.


[1] Lacan, J. O Seminário – livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro, JZE, 1982, p. 98.

[2] Ozon, F. Uma nova amiga – longa metragem francês de 2014, com Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz. http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,provocativo–filme-uma-nova-amiga-seduz-o-espectador-para-melhor-tira-lo-de-seu-centro,1727458

[3] Egypto, A. C. François Ozon vai de Hitchcock a Almodóvar em Uma nova amigahttp://pipocamoderna.com.br/critica-francois-ozon-vai-de-hitchcock-a-almodovar-em-uma-nova-amiga/434686

No jornal Libération de quinta-feira, 5 de agosto de 2015, há uma entrevista muito interessante de André Gunthert sobre uma questão que toca às imagens no nosso século XXI, o fenômeno selfie. André Gunthert é historiador da arte, professor e pesquisador da EHESS [École des Hautes Études en Sciences Sociales], ele faz do selfie «uma nova forma de expressão de força social.» Sem pretender reduzir o selfie a um simples fenômeno narcísico, ele lhe dá a seguinte definição: «fotografia que uma pessoa tira dela mesma, geralmente com um smartphone ou uma webcam, e a compartilha em uma mídia social.»

André Gunthert ocupa a cadeira de história visual na EHESS. Sua reflexão é oportuna ao ENAPOL. André Gunthert «estendeu sua formação em história da arte às imagens em geral. Ele é historiador do presente bem contemporâneo.» Ele reporta o selfie a uma prática que já existia antes de ter recebido esse nome. Ele dá como referência o filme «Thelma e Louise» de Ridley Scott, lançado em 1991, no qual Susan Sarandon (Louise) e Geena Davis (Thelma) se fotografavam: «Elas manifestavam seu feminismo fazendo elas mesmas suas fotos, longe de uma autoridade paternalista». A palavra selfie foi introduzida na língua em 2013, essa prática se expande com os smartphones. André Gunthert chama o selfie de «A imagem conversacional», ela entra tranquilamente em uso em 2010» diz ele.

Quando lhe é perguntado porque se critica os selfie, ele responde que é mais frequente em nome do narcisismo e que isso se desenvolveria perigosamente nos adolescentes e em uma prática de jovens que sabotam a ordem social. Ele acrescenta que precisamente «é o que se dizia do rock nos anos 60, quando a música representava o elemento mais forte da cultura jovem, forma de instrumento político, de identificação. Hoje o escândalo é poder fazer imagens, sintoma fascinante da expressão de uma força social», diz ele.

Os denunciantes em nome do narcisismo não sabem que uma «imagem enviada a alguém com um rosto acima dela não tem nada de narcisismo. Pelo contrário, é social, não se olha no espelho, mas sim se faz um coucou [“ei, olha eu aqui…”], um gesto de comunicação… a novidade é que as imagens não estão sozinhas… não se olha mais o quadro, mas o entorno [a paisagem]. Aqueles que vêem o selfie como narcísico aplicam o antigo uso da imagem, sem o “entorno”, sem a exterioridade. »

«O espírito do selfie é a autonomia.»

Em 1859 Baudelaire criticava a daguerreótipo, mas na época, apenas a burguesia podia fazer autorretratos, então, fabricaram-se equipamentos baratos, como a Kodak, para os outros. Hoje a mesma história continua diz-ele, «o selfie, é também uma conquista política.»

Então nós entramos em um mundo onde tudo é ficção? «Sabemos que se tratam de ficções, estamos prestes a aprender a gerenciar a nós mesmos, nossas imagens e representações, inclusive por meio de idealização. Estamos diante de uma mutação cultural de grande amplitude.»

André Gunthert faz referência a Erving Goffman e seu livro «The presentations of self in everyday life» de 1959. Isso irá desnudar a autorrepresentação de si próprio para os outros. «Na rua, vestimo-nos para outros, atendemos às normas coletivas. O selfie representa então um instrumento de gestão da individualidade no social, uma interação entre o eu e o mundo.»

Na estética do selfie, a qual deixa muitas vezes a desejar: «os critérios estéticos não se aplicam aos selfies. Eles devem ser feiosos, porque são as “embreagens” da conversação: uma imagem que comporta uma forma de autodepreciação será mais bem sucedida que uma imagem bonita, apropriada à la Harcourt…. Desde Marcel Duchamp, a história da arte nos ensina uma visão mais aberta, e o selfie descreve uma nova expressividade.»

Na crítica aos selfies, trata-se de uma cultura elitista que condena uma cultura popular? André Gunthert nos remete aos monges copistas que não estavam nada contentes ao verem surgir a imprensa que vinha atingir o seu monopólio dos saberes, «as pessoas se servem de ferramentas, e isso lhes dá o poder. Fotos de pés e de gatinhos tornaram-se
gêneros em si. Não encontramos nada equivalente no século XX. Esta explosão de
usos visuais nunca foi um problema na história da humanidade: hoje, ela perturba, e eu estou encantado.» conclui André Gunthert.

O encantamento vai bem àquele que lida com as imagens, nós também estamos deliciados como psicanalistas que os selfies sejam definidos como «embreagens de conversações», de blá-blá-blá, que saem do Um sozinho, são pequenos coucous [“ei, olha eu aqui”]: na Disney, na Torre Eiffel… que vêm de todos os lugares, lá para onde as pessoas viajam e chamam seus amigos. Coucou da França então!

Tradução do francês: Antonia Claudete Amaral Livramento Prado

Tal como a psicanálise (Estudos sobre a histeria, 1895), o cinema tem 120 anos. Por ocasião de seu aniversário, houve, no Grand Palais em Paris, de março a junho de 2015, uma exposição denominada Lumière: le cinéma inventéEsta exposição, vinculada tanto à personalidade dos irmãos Lumière quanto às suas múltiplas invenções no domínio da fotografia e do cinema, permitiu reexaminar o conjunto dos seus filmes, dispostos sobre uma imensa parede digital.

 

Da imagem fotográfica ao cinema: a introdução do movimento

Antes da fotografia, era a pintura que tinha por papel a representação da realidade. Há 36.000 anos, o Homo sapiens já desenhava os seus afrescos em cavernas, a exemplo da caverna Chauvet, em Ardèche, cuja réplica foi inaugurada em abril de 2015[1].

No início do século XIX, a invenção da fotografia, reivindicada por Niepce, Daguerre e Fox, assim como por muitos outros, transformaria a representação do mundo e das pessoas. Décadas mais tarde, os lioneses Louis e Auguste Lumière, que ficariam conhecidos como Irmãos Lumière[2], seriam os primeiros industriais e também inventores no domínio da fotografia. Seus dois nomes permaneceriam sempre ligados: eles se prometeram não se deixar jamais e, por isso, casaram-se com duas irmãs. Durante suas vidas, registraram juntos 170 patentes.Contrariamente a uma ideia muito propagada, os Irmãos Lumière não realizaram os primeiros filmes existentes, mas, sim, o americano Thomas Edison, inventor do gramofone, que os realizara graças ao seu Kinétographe a partir de 1891. Porém, seus filmes podiam ser vistos apenas por um espectador por vez. Louis Lumière, o inventor genial, fez uma síntese das invenções que preexistiam e desenvolveu um mecanismo engenhoso inspirado no movimento da máquina de costura de sua mãe, que permitia tanto filmar quanto projetar os filmes para um conjunto de espectadores. O primeiro filme rodado por Louis Lumière é Sortie d’usine, mais conhecido hoje sob o nome de La sortie des Usines Lumière[3]. Ele foi rodado em 19 de março de 1895, em Lyon, na rua Saint-Victor, atualmente nomeada de rua do Primeiro-Filme.

A primeira representação privada do Cinematógrafo Lumière teve lugar em Paris, em 22 de março de1895, nas instalações da Sociedade de Incentivo à Indústria Nacional. Em seguida, Louis Lumière rodou, durante o verão de 1895, o famoso Jardinier, que, mais tarde, seria chamado de L’arroseur arrosé. Este é, segundo alguns, o filme mais famoso dos Lumière e a primeira das ficções fotográficas animadas. Os Irmãos Lumière também criaram o dispositivo da sala de projeção, e a primeira projeção pública e pagante teve lugar em 28 de dezembro de 1895, no Salão Indiano do Grand Café, no Hotel Scribe, em Paris, diante de 33 espectadores [4].

A partir de 1896, os operadores de câmera da empresa dos Lumière, em geral, pessoas jovens originárias de todos os meios, foram enviados ao mundo inteiro para filmar, ou seja ,“para trazerem o mundo ao mundo”. Ao todo, 1.422 filmes foram rodados em dez anos, mostrando a vida como nunca tinha sido vista. Eram geralmente filmes curtos (de 55 a 58 segundos de duração), apresentando cenas da vida diária, frequentemente humorísticas. Estes operadores acabaram por inventar os travellings (equipamentos qu permitiam a tomada de imagens vistas do alto), e colocaram as suas câmaras em barcaças ou trens. O close-up, o quadro e o movimento em suspense em uma só palavra: a encenação. Estes filmes são alegres, e veem-se seus protagonistas deliciarem-se por estarem sendo filmados. Gostaria também de citar os títulos de alguns filmes não menos conhecidos: L’arrivée d’un train en gare de la Ciotat, La fumerie d’opium, La baignade des chevaux à Mexico, Le village de Namo, Les Krémo, La danse serpentine avec Loïs Fuller.

Estes filmes eram impressos em longas fitas de películas em celuloide de 35mm de amplitude, e projetados na velocidade de 24 imagens por segundo. Posteriormente, os Irmãos Lumière retornaram à imagem fotográfica, inventando as primeiras fotografias em cores, ou autocromos[5].

Eles são também, para alguns pesquisadores, os inventores do cinema 3D.

A partir de 1935, Louis Lumière apresentou à Academia das Ciências da França a sua invenção que permitia ver imagens em relevo, graças a óculos que uniam a cor vermelha e a azul.

 

Da imagem de prata à imagem digital

Há cerca de vinte anos, a passagem do filme em película de prata para a imagem digital definitivamente transformou as maneiras de se rodar e projetar uma história. A película desapareceu em benefício da imagem digital. A era digital operou uma mudança na natureza da imagem capturada e da imagem projetada. A internet, o vídeo, as redes sociais são utilizados por milhões de pessoas para os mais diversos fins, dentre eles, o uso pessoal: por exemplo, para se fazer parte de um acontecimento ou para ser seguido por seus contatos em uma viagem, costuma-se postar fotografias sem legendas. Mostrar, ver e ser visto, eis a questão. Não há mais necessidade das palavras. Estamos todos sob o jugo do Império das Imagens, até da mais horrível delas, quando os terroristas jihadistas publicam, na internet, os vídeos dos assassinatos que cometem.

Conclusão

Odesaparecimentodo filme tradicional não provocouodesaparecimentodocinema.O cinema digital écapazde oferecerresultadosincríveis,no domíniodosefeitosespeciaissonoros. E um pequenodisco rígido é mais fácilde ser transportado doquevários carretéis defilmes.Da mesma maneira queoseditoreslutam hoje pelaperenidadedolivro em papel,certoscineastasfazemo mesmoparaconservarousodaspelículas.Certamente, aquela parede com os 1.422filmesdosIrmãosLumière sófoi possívelgraçasà era digital.Masos especialistas dizemqueoúnicomeio de se preservar asimagens digitais étransformando-as em películas.Também ospsicanalistasdevem saber estar diante desteimpériodeimagensvampirescas,econtinuara reinventarefazerexistirapsicanálise no século XXI.

Tradução do francês: Zelma Galesi
Revisão em português: Adriano Messias


[1] Grotte Chauvet-Pont d’Arc – Ardèche. Cf.:archeologie.culture.fr/chauvet/fr

[2] Sobre Auguste e Louis Lumière cf. : https://fr.wikipedia.org/wiki/Auguste_et_Louis_Lumière

[3] La sortie de l’usine Lumière à Lyon (Irmãos Lumière, 1895):

[4] Primeira projeção de filmes dos Irmãos Lumière.

 8:20

Cf.: www.youtube.com/watch?v=LubYjGDNun8

[5] Cf. Os autocromos no seguinte site: www.autochromes.culture.fr/

A abordagem do imaginário no VII ENAPOL colocou ênfase no último ensino de Lacan e nos propiciou uma reviravolta moebiana.

A clínica mudou e é o momento de apresentarmos como estamos abordando essa clínica que já está nos consultórios e instituições. Os conceitos podem ser revisitados e nossos princípios garantem a tranquilidade nesse processo.

Desde que Freud descobriu o inconsciente e inventou a psicanálise, fica difícil delimitar o que ocorreria a partir daí sem a intervenção da psicanálise no pensamento e comportamento humanos.

O certo é que a clínica muda mas a psicanálise também muda o mundo. Se estamos diante do Império das Imagens é porque a psicanálise contribuiu para o enfraquecimento da eficácia simbólica. Por não abordar o real, que surge através dessa operação, como a ciência ou a religião, abordamos essa proliferação imaginária a partir de nossas bases.

Aceitamos e acolhemos as mudanças, nos incluímos nelas. Estamos submetidos aos efeitos ocorridos. Nossos eventos também estão repletos de imagens. Ao invés de tentarmos fazer ligações entre essas imagens, numa tentativa saudosista de imprimir um simbólico mais forte, partimos para uma tentativa de abordar o real pelo que é possível fazê-lo pelo imaginário. Não o imaginário de antes, mas o imaginário em sua consistência própria.

Nos dois últimos Seminários de Lacan a perspectiva de que os três registros sejam abordados de forma diferente do que acompanhamos até o Seminário 23 causa a mesma vertigem que encontramos nos trabalhos dos artistas contemporâneos que privilegiam as imagens sem o compromisso de que elas “digam” alguma coisa ou que sejam compreendidas pelo público.

O corpo, de uma vez por todas, assume o lugar para que essas imagens sejam exploradas pelo falasser. Ter um corpo e assumir que é a partir dessa consistência imaginária que é possível abordar o real torna-se cada vez mais um desafio. Não apenas para o vivente, mas, consequentemente, para nós, psicanalistas.

Como não seremos também nós, sucumbidos pelo imaginário? Como fazer desse imaginário, de fato, uma abordagem do real e não apenas uma nova defesa contra ele?

Como não cairmos na tentação de desprezar o simbólico por sua inaptidão ao real?

Na reta final da preparação do VII ENAPOL posso dizer que a experiência até aqui foi incrível.A partir do título que surgiu em ambiente informal e depois veiculado na AMP e no Campo Freudiano, começamos a ver os desdobramentos.

O ENAPOL já está integrado na formação dos membros da AMP na América. É impressionante como rapidamente cada um dos responsáveis pela animação do evento se coloca ao trabalho e propõe caminhos que não haviam sido pensados.

Ao tomarmos contato com os textos preparados para as Conversações, ficamos surpreendidos com o alcance que o tema teve em diversas direções.

Os Eixos propostos para as Mesas Simultâneas geraram 240 trabalhos selecionados. Aí também se verifica como os autores puderam levar um pouco mais longe as articulações que já se apresentavam.

Temas importantes, como a adolescência, por exemplo, foram desenvolvidos e terão momentos profícuos durante as discussões.

O ENAPOL está articulado ao Congresso da AMP e influencia bastante na organização das Jornadas locais nas três escolas que compõem a FAPOL. Dessa maneira, o trabalho aqui desenvolvido terá grande valia para o sucesso do evento que ocorrerá em 2016, no Rio de Janeiro.

Escrever esta crônica para o último Boletim Flash trouxe o benefício de levar-me a sair de uma imersão em um dos temas das Conversações do VII ENAPOL: “O Império das Imagens faz sintoma na vida amorosa”. Na Conversação, tomamos o viés de quanto o fato de sermos sujeitos consumidos pelas imagens acarreta perda de intimidade e de liberdade individual, respondendo, na vida amorosa, ao desaparecimento do erotismo, último bastião a nos preservar do empobrecimento humano resultante do aprisionamento nas imagens.

A perspectiva do VII ENAPOL, à medida em que a data se aproxima, faz pensar na responsabilidade da EBP, anfitriã deste, mas também na sequência responsável pelo Congresso da AMP, Rio/2016; são dois eventos da AMP, com alguns meses de intervalo entre si.

A imbricação dos temas dos dois eventos não foi casual; corria-se o risco de um saturar o outro. Mas não foi o que aconteceu. Pelo contrário, o tema de um se enlaça com o outro, tal como na figura do oito interior a que Lacan se refere na “Proposição…” dando conta assim da sombra espessa evocada na passagem do analisante a analista. Entramos pelo ‘império das imagens’ e, do encerramento, sairemos enlaçados, instigados, com o tema do ‘inconsciente e o corpo falante’.

Pelo menos foi o que ocorreu ao longo da investigação feita a respeito da referida Conversação, como o aprisionamento nas imagens, o privilegiar das imagens em vez das ideias, provoca confusão: em que se distingue o corpo da pornografia eletrônica, corpo preso a imagens repetitivas, sem sutilezas. Como diferenciá-lo do corpo imaginário?

Mas, ainda nos preparando para o acontecimento VII ENAPOL, gostaria de comentar certos fatos que gravitam na contemporaneidade e que podem nos servir para aguçar, mais ainda, a questão, tanto da liberação desse universo subjugante das imagens, quanto a transformação do ‘deixar-se consumir’ por elas, para passar a consumi-las da boa maneira.

Um desses gira em torno da personalidade da crítica de arte Catherine Millet, que ganhou notoriedade ao publicar um livro sobre sua vida sexual, um ensaio sexual autobiográfico. Poderia ser um livro de memórias, não fosse a frieza com que está escrita a memória, revelando assim ser mais uma tentativa de se entender melhor. O que se confirma alguns anos depois, quando nos contempla com outro livro, em que trata do sofrimento produzido pelo ciúme na parceria sintomática. O segundo livro, tal como o primeiro, não tem o propósito de exemplificar alguma verdade geral, nem pretende tirar de sua experiência conclusões para todos. A mesma liberdade que teve ao publicar sua vida sexual serve-lhe para falar do ciúme, afeto ancestral, na vida do casal liberado que forma com seu parceiro.

Em um dos vídeos que encontramos no Blog das 45ªs Jornadas da Escola da Causa Freudiana (ECF), de Marlène Belilos & Thomas Boujout, Catherine Millet comenta que não quis ‘analisar’ esse momento de ciúme, mas, sim, mostrar que há um lado oculto na liberdade sexual. Não querendo fazer disto uma receita, mas, sim, de forma divertida comenta que, às vezes, mesmo tendo razão e tendo lido Lacan, podem ocorrer esses momentos onde a fantasia nos leva a crises de ciúme e que pensamos que o outro, o parceiro, poderia encontrar prazer e felicidade com outra pessoa. Incitada provocativamente a admitir um possível viés de normalidade na imagem de casal liberado, além de ser instigada a responder sobre o por quê de escrever um livro que comporta uma crise de ciúme, foi-lhe ressaltado o aspecto da infância que ela ilustra no livro com a expressão: ser filha de um ‘casal desunido’ entre Cosette e David Copperfield. A resposta não demorou, mostrando ter sido uma forma de evitar uma imagem que senão reinaria e, consequentemente, conduziria sua vida: a de heroína de um romance baseado no infortúnio de uma criança, resultado da violência de um casal.

Outro fato que gravita e surpreende, na manchete do site da revista francesa, lê-se que “Um palácio de vanguarda abriga uma sexualidade desvairada”, tal manchete de ‘Le Point’ (LePoint.fr 4/07) passa a ideia de como a obra monumental de Anish Kapoor, artista britânico-indiano, vem perturbando a todos. Os jardins de André Lenôtre, revirados por uma estrutura em aço de 10mts de altura, à vista de todos. Inaugurada no mês de junho/15, nos jardins do Palácio de Versalhes, essa escultura está sendo interpretada como a “vagina da rainha”. Entre os partidários da exposição, a revista publica uma entrevista com o professor de história moderna, Michel Vergé-Franchesi. Na opinião dele, Versalhes é uma criação audaciosa, de vanguarda, sendo concebida como um tipo de “garçonnière“. Luis XIV, em 1661, com 23 anos, casa-se com a “vagina da rainha”, uma prima da Espanha que, sem falar francês estava destinada, como toda rainha, à procriação. O Professor Michel é autor do livro “Uma história erótica de Versalhes (4 de junho de 2015), portanto, a manchete se refere ao próprio “Palais de Versailles”. Dirty Corner é o nome da obra, mas está sendo chamada pela mídia de “vagina da rainha”. A escultura de Kapoor evoca a pintura de Courbet, “L’origine du monde”, que mostra o torso nu de uma mulher de pernas escancaradas, onde se dão a ver os pelos púbicos. As duas obras foram relacionadas, pela mídia em geral, como de cunho revolucionário, contrário ao ‘establishment‘.

Imagens usadas como forma de intervenção na sociedade.

Vários são os fatos que poderíamos seguir evocando, mas a hora do acontecimento VII ENAPOL prevalecerá sobre o que se pode dizer dele.

No primeiro ensino de Lacan há um binário de dois opostos: imaginário e simbólico. O imaginário era, neste momento, um registro a ser ultrapassado para que se chegasse ao simbólico, à palavra plena, à confissão da verdade. Em contrapartida, no último ensino não se trata mais da construção de binarismos, mas da clínica do enodamento dos três registros.

Quando Lacan nos diz “o que prevalece é o fato de que as três rodinhas participam do imaginário como consistência, do simbólico como furo, e do real como lhes sendo ex-sistente” (1), e acrescenta o quarto elemento como sendo o sinthoma, opera-se uma mudança fundamental.

Consistência refere-se ao “caráter de um pensamento que não é fugidio e imperceptível, nem contraditório”, implica em considerar que haja uma “firmeza lógica de uma doutrina ou de um argumento”(2). Assim, ao falarmos em imaginário no último ensino de Lacan e em sua consistência estamos atribuindo a este registro um peso e uma importância explicativa e lógica. Passa-se, então, a atribuir a este conceito grande poder explicativo a gerar consequências teóricas e clínicas. Chama também a atenção que “consistência” em sua etimologia alude àquilo que tem resistência, que se mantém e, neste sentido, faz um contraponto com o “furo” que Lacan, no texto acima referido, liga ao simbólico.

O alcance deste registro, o imaginário, no último ensino de Lacan é enorme! Há muitas possibilidades de articulá-lo às questões que se nos apresentam neste momento do ensino lacaniano, uma vez que, sim, a psicanálise se altera – para retomarmos a pergunta que faz Lacan no Seminário 11, quando indaga sobre a permanência dos quatro conceitos fundamentais. Desta forma, é por isso, pelo alcance que o conceito de imaginário adquire que Lacan nos diz Em A Terceira: “Talvez a análise nos introduza a considerar o mundo como o que ele é – imaginário. Isto só pode ser feito ao reduzir a função dita de representação, a situá-la onde está, ou seja, no corpo”(3).

Lacan, ao fazer esta afirmação mostra a pregnância da imagem, naquilo que se refere ao falasser, em relação ao corpo. No início de seu ensino já havia insistido no valor de constituição da imagem do corpo e depois, ao longo de seus desenvolvimentos teóricos e clínicos, acentua a importância do gozo. “ O falasser tem de se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem de se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o implexo dos dois outros. Trata-se do corpo falante com seus dois gozos, gozo da fala e gozo do corpo….”(4).

Devemos nos referir às consequências retiradas destas mudanças para a clínica que sem dúvida, enriqueceu-se. Por isso, Jacques-Alain Miller nos diz: “na época do falasser, digamos a verdade, analisa-se qualquer um”(5). Afirmação contundente a mostrar que não se trata mais de aguardar propriamente a abertura do inconsciente -que teria escapado das armadilhas do imaginário- para empreender a análise. O que antes era desvalorizado agora não o é mais. Pensemos, apenas para citar um exemplo, no matema da transferência que implicava em passar da vertente imaginária para a simbólica para construir o saber inconsciente. Interessante também considerar que o SQ referido ao analista, se dissesse respeito ao seu corpo, seria simplesmente considerado da ordem imaginária, mas agora há outra dimensão no entendimento da presença do corpo do analista. Ao operar com a palavra, com o silêncio, com a interpretação, lá está o seu corpo partícipe da busca de tocar o gozo singular do falasser.

O tema do VII ENAPOL, ao trazer em seu bojo o império das imagens no mundo contemporâneo e, em certo sentido, apontar para um predomínio a ser revisto, privilegia ainda, o novo estatuto do imaginário na clínica lacaniana em suas ligações com o final da análise, o corpo, o gozo e a imagem. O novo imaginário em Lacan nos faz pensar em possíveis e diferentes estatutos a serem atribuídos ao imaginário, levando-se em conta os contextos diversos que inserem tal conceito. Ao falarmos no imaginário que povoa o mundo atual podemos articulá-lo ao imaginário da clínica analítica, isto é, ao imaginário que, sendo agora um conceito fundamental, permeia toda a análise tendo especial importância em seu final?


Citações:

  1. Lacan, J. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 55.
  2. Lalande, A. Vocabulaire technique et critique da la philosophie. Paris, PUF, 1972, 177.
  3. Lacan, J. A terceira. In: Opção lacaniana. Revista Internacional da Psicanálise. São Paulo: Edições Eólia, n. 62, p. 16.
  4. Miller, J.A. O inconsciente e o corpo falante. Apresentação do tema do X Congresso da AMP, 2016.
  5. Idem.

Os dispositivos tecnológicos que capturam a imagem se encarregam de levar, em tempo real, e aos lugares mais íntimos, o mundo exterior. As câmeras penetram em qualquer residência e trazem, em suas diversas telas, não apenas estilos de vida, gadgets e objetos de consumo do mercado, mas, também, os mais cruéis sucessos convertidos em imagens inofensivas, as quais desaparecem com apenas o desligar do botão de ligar. O olhar capturado pela câmera prevê, quem a observa, de ser tocado pelo estranho e ameaçador gozo do Outro, e o protege de enfrentar a diferença que este Outro exibe. A câmera parece funcionar, assim, como um operador do olhar que não apenas permite o enquadramento, mas também a apropriação do instante, a manipulação do objeto e a conversão de qualquer acontecimento em uma ficção que parece situar-se no imaginário e cavalgar sobre o real em gozos insuspeitos.

Na atualidade, assiste-se a invasão das cenas públicas nos espaços do privado, e as do espaço íntimo afloram sem disfarces nos espaços públicos. Rituais privados, desprovidos da moral burguesa e em cumplicidade com a tela, dão ainda mais fomento ao apetite do olhar, que se obnubila na contemplação das imagens capturadas, do Outro embalado em pacotes da mais alta variedade e sofisticação, dos personagens e objetos-mercadoria os mais diversos, que lhe prometem uma satisfação ilimitada, enquanto escondem, à maneira de uma anamorfose, os corpos incompletos, consumidos pelo passar do tempo, atravessados pela morte, mas que, ao estarem camuflados por trás das câmeras, têm o poder de envolver o espectador em seus brilhos, e de aliviar qualquer manifestação do real. Enquanto o imaginário se incrementa no espaço do íntimo e se torna cúmplice não apenas de todo tipo de autoerotismo, e o gozo perverso encontra novos caminhos para sua ação, o espaço do público se esvazia das referências simbólicas e se preenche de sujeitos frágeis, que apenas conseguem se reconhecer nas câmeras que devolvem suas imagens.

A ordem de consumo posta em ação na intimidade que abre a tela deleita o voyeur, que não apenas se embriaga de modo frenético na contemplação da infinidade de imagens, mas, e de maneira particular, na possibilidade de converter os seres e o mundo em sua totalidade, em objetos capturados pela câmera, para o gozo de seu olhar.

O imediatismo da realização e o efêmero do sucesso, acentuados pela câmera que se interpõe entre o sujeito e sua experiência direta, são características do movimento sem pausa de sujeitos que acreditam encontrar, em cada imagem capturada, uma possibilidade de ser – sem compreender e sem se importar – a condição efêmera que a caracteriza, além da impossibilidade que a acompanha.

Os gozos dos Um singulares se manifestam na cena cidadã em modalidades que têm a ver com o desfrutar do confinamento, acompanhado daqueles que considera seus semelhantes. A tela se presta a rituais privados que dão conta da natureza autista do gozo, da impossibilidade do gozo, da impossibilidade de um laço social no que comanda o respeito pelo sujeito.


Bibliografia

 

LACAN, J. El Seminario 11: Los Cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 2006.

_________. Televisión. In: Otros Escritos. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 535-572.

MILLER, J-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2004.

_________. Una Fantasía. In: Punto Cénit. Política, religión y el psicoanálisis. Buenos Aires: Colección Diva, 2011, p. 37-54.

WACJMAN, G. El Ojo Absoluto. Buenos Aires: Manantial, 2011.

_____________. La casa, lo íntimo, lo secreto. In: RECALTI, Massimo. Las tres estéticas de Lacan. Buenos Aires: Ediciones el Cifrado, 2006. p. 93-114.

  1. Espessura

 Tomo emprestado o título de Marie-Hélène Brousse[1], “A imagem é uma pomba morta no fundo de uma lata de lixo. Como esta imagem se tornou destino para um sujeito?” – ela se pergunta.

A questão nos leva da problemática atual do Império das Imagens à questão do Uma-imagem e de seu império. Uma imagem e sua pregnância singular, que se torna destino para alguém, um sujeito, um parlêtre.

Uma-imagem, S1. Ela sozinha, momento de encontro e de eclipse, afânise, conforme propõe Lacan, sempre contingente.

Trata-se de um encontro com o que a imagem carrega de irrepresentável, de real, e com o gozo que ela veicula. Se há um quid do assunto, este é o gozo em jogo, um gozo que não se reduz ao âmbito escópico que veicula a imagem como tal, e, na medida em que toca o corpo, é sempre corte. Quando se trata desta Uma-imagem, ela divide, atravessa o sujeito, o reenvia à sua inerme primordial, e, por este motivo, é em torno dela que constrói sua defesa, seu fantasma. Miller a chama de “imagem rainha”. Entretanto, ela reina em sua espessura. Por definição, é uma pomba que não voa. Não obstante, uma pomba mensageira de um real.

 

  1. Literr-a-tura

Recentemente, eu me deparei com um relato de Mariana Enriquez, autora argentina. Trata-se do conto denominado Donde estás corazón[2].

“Tenho três recordações dele, mas uma delas pode ser falsa. A ordem é arbitrária”, começa o texto. Trata-se do encontro de uma menina, na casa das amiguinhas de infância, com a imagem de um homem doente (presumivelmente, o pai da amiga), nu e ferido:

“… está assentado em uma poltrona completamente nu, sobre uma toalha, vendo televisão (…). O pênis descansa entre uma mata de pelos negros e a cicatriz que lhe atravessa os pelos é de um rosado escuro.” As outras duas “lembranças” são variações sobre o mesmo tema, exceto em um ponto: ambas carregam a significação da sedução: “ele me olha de perto”/ “ele me sorri de perto, o rosto quase colado ao meu”.

“Na lembrança, eu me sinto nua e tímida”, assinala a protagonista do relato, e acrescenta: “não sei se era real (…) posso tê-lo inventado, embora reconheça esta sensação de timidez e vulnerabilidade que com frequência se repete em meus sonhos”.

Até aqui, o conto parece ilustrar classicamente o próton pseudos da histeria, “comum”. Nada de novo, nada “histórico”. Exceto um dado: o pai jacente, ferido, o pênis desfalecido sobre um fundo peludo, marcado por una cicatriz.

Um segundo momento narra o encontro da protagonista, já na adolescência, com uma imagem “literária”, que ressignifica este primeiro encontro da infância com esta imagem do homem ferido que condensa Um-gozo. Trata-se de uma passagem de Jane Eyre, em que Jane acompanha sua amiga Helen, moribunda e tísica, convalescente. “Durante todo esse verão – relata a protagonista – eu imaginei (…) [que] Helen, tísica e moribunda, tão bonita, morria enquanto eu a tomava pela mão”. Junto a este encontro “literário”, está o seguinte: o irmão de uma colega de colégio está morrendo por conta de um tumor que não pode ser operado entre o coração e os pulmões. A protagonista do relato recorda tê-lo visitado em seu leito de morte.

Dali em diante, sobrevém para a protagonista do relato, nesta ordem:

a) Uma compulsiva indagação junto aos livros de medicina, particularmente para indagar sobre estas patologias do coração.

b) O encontro, em uma livraria de medicina, de um CD que reproduzia ruídos cardíacos, em cuja escuta ela se comprazia e se masturbava até produzirem-se feridas no clitóris.

c) O encontro (virtual) de um site da internet, protegida pelo anonimato, em que outros fetichistas dos batimentos cardíacos compartilhavam seus corações. O texto descreve, assim, o gozo em jogo: “Às escuras, com os fones de ouvido e os corações, esta era minha vida, nunca mais sexo com pessoas. Para quê?”.

d) O encontro real com um dos fetichistas “anônimos” assíduos ao chat. “Logo nós dois nos abandonamos à vida virtual, e nos fechamos em minha residência, com um gravador, um estetoscópio, medicamentos e substâncias que ajudavam a alterar o ritmo cardíaco. Nós dois sabíamos qual poderia ser o final, e não nos importávamos com isso”.

 

  1. ¿Dónde estás, corazón?

 Onde estás, coração?, não ouço teu palpitar/ é tão grande a dor que não posso chorar./ Eu quisera chorar e não tenho mais pranto/ eu a queria tanto e se foi para não voltar.

 Eu a queria com toda a alma como se quer somente uma vez,/ mas o destino cruel e sangrento quis me deixar sem seu querer.

Somente a morte arrancar podia aquele idílio de terno amor;/ e em uma manhã de cru inverno entre meus braços morreu.”

Certamente, o conto de Mariana Enríquez se difere muito da história que ressoa naquele tango[3] que canta a dor perante a despedida de um amor arrebatado pela morte, e que é evocado por seu título. Entretanto, não há nem amor, nem duelo, nem idílio. O coração não é ali uma metáfora do amor, sua “sede” imaginarizada, nem simplesmente um órgão a ser auscultado “até as últimas consequências”, e sempre haverá “algum”. Se o título do relato me chamou a atenção, foi justamente pela “indiferença” que torna patente sua falta de acento; um “onde” sem destino, sem destinatário, e sem lugar.

  1. “Patologias do coração”

 Recordo este significante que condensa o real em jogo, quando se trata do poder invocante de uma imagem desprovida de um mínimo e necessário marco simbólico. Trata-se de um gozo selvagem e desvairado, mortífero. Entregue à nua voracidade do supereu.

Que destino e a que se destina hoje a transferência e o encontro com um analista para os sujeitos atingidos por estas novas patologias do coração?

Como colocamos em jogo, em cada encontro e em cada caso, o peso deste “aqui” e deste “agora”, onde possa acontecer um encontro inédito, não sem coração, nem sem destinatário? Em suma, um encontro que não seja indiferente.


[1] BROUSSE, Marie-Hélène. Posición sexual y fin de análisis. Buenos Aires: Tres Haches, 2003.

[2] ENRIQUEZ, Mariana. Los peligros de fumar en la camaLima: Santuario, 2015.

[3] ¿Dónde estás, corazón?, Luis Martínez Serrano/ Augusto Berto, 1930.

Tradução do espanhol: Adriano Messias

Atualmente, nossa época está marcada por uma extraordinária proliferação da literatura sobre o poder das imagens. Porém, a presença de um enxame digital e a multiplicação de uma realidade virtual que se interpõe entre o sujeito e o real é, para a psicanálise, um tema especialmente atual.

Agora, para abordar os efeitos do poder da imagem, uma vertente é seguir a reflexão a respeito da atual modernidade tecnológica em que a sociedade está imersa com tanto ímpeto. E, para isto, proponho comentar algumas ideias sobre o texto “A sociedade da transparência”, do filósofo coreano Byung-Chul Han. A perspectiva deste autor é orientadora, a partir de pequenos e concentrados capítulos nos quais vai desenhando uma revisão crítica e radical à contemporaneidade, concentrando seu olhar agudo sobre as mudanças que se propagam nos sujeitos e nas relações detonadas pela galáxia digital, o multimasking e a anulação da singularidade na opacidade do “inferno do igual e da transparência”.

O filósofo indaga com sarcasmo e capina um caminho através do matagal constituído por aquilo que veio colocando sobre as transformações consequentes de uma subjetividade que navega debilitada e à deriva, sob a força incansável da maré do consumo. Assim, permite vislumbrar que “o ideal de transparência vai hoje muito mais além da denúncia da corrupção política e da defesa da liberdade de informação, chega ao âmbito do ser que fala para transformar seu universo, sem alteridade possível”.

Que quer dizer transparente neste tempo? Significa a possibilidade de saber tudo sobre o Outro, mas não apenas como possibilidade, mas como um imperativo constante. É uma exigência que aqueles que estão frente a frente ou de maneira virtual se desnudem, fazendo da sociedade de transparência, algo como uma “exposição sem segredos diante do olhar do Outro, exposição que aniquila a distância do íntimo em um ideal de integração de qualquer alteridade”, quando se trata mais de redirigir o olhar e refletir que é, precisamente, essa falta de transparência, o que mantém viva, a criação de laço como um fator próprio de inegável presença na condição humana. Uma relação transparente é uma relação morta.

Igualmente, pensar que tendo torres de informação à disposição permitiria exercer uma melhor decisão sobre qualquer tema. Desta maneira, se postula como possível que alguém possa dominar tudo o que está nas redes, na Internet. Coloca-se a equação de que quanto maior a quantidade de informação que um sujeito administre, melhores decisões tomará. Esta equação supõe crer em um todo desde uma perspectiva positiva, onde não há lugar para o sofrimento e a dor. Por exemplo, na Internet, no Facebook, todos podem “estar apaixonados sem ficar apaixonados”, dado que se tem a suficiente informação e um nível de racionalidade superior e, com isto, se pretende ter a capacidade de domesticar o amor, o gozo ou o que é o mesmo, se pode emitir um veredicto final que alimenta o narcisismo no ele “curte” do Facebook. Assim, a partir desta modalidade, se gera a “imagem comunicação” entre quem se segue nas redes e também se gera rapidamente, rechaço contra aqueles que não “curtem” nenhuma vez.

Portanto, a propósito desta transparência, tende-se a atuar mais como uma sociedade da pornografia, na qual se exige um mútuo desnudamento sem limites, distanciando-se cada vez mais da singularidade opaca do gozo. Esta forma de relacionar-se não permite jogar sobre terrenos não definidos, não dá lugar à contingência. Tudo se deseja sentir mais rápido e mais, não se desfruta de sentir as experiências uma a uma, demanda-se muitas ao mesmo tempo, gerando-se os problemas de dispersão típicos da época. Deste modo, se renuncia à distância e as intimidades se expõem, vendem-se em um mercado de imagens enquanto lugar de exposição e não de representação.

Sob esta perspectiva, o que dá valor ao ser humano é o aparecer, o colocar-se em um mostruário, quer dizer, a sociedade capitalista terminou por impor como valor máximo o ter, e na sociedade mediática, o que é realmente importante é exibir-se. Um exemplo são os “selfies” que constituem uma forma de exibicionismo, enquanto implica mostrar uma imagem como uma espécie de versão oficial de um sujeito, que “reforça a sensação de fugacidade e supõe um desnudamento na vida”.

Consequentemente, este século XXI dá inicio a um novo tipo de panóptico que não é o tipo que propunha Bentham, pois no de agora, já não há a diferença entre o centro e a periferia; quer dizer, já não existem células que se encontram em disposição circular onde o centro governa e controla. No novo panóptico digital, se gera um tipo de ilusão de ser livre, se crê e se busca controlar tudo, ocupar o posto do que controla a torre sem que o resto possa vigiar. Um modo de se iludir com este poder se dá quando, ao estar sentado frente à tela da televisão, do computador, do smartphone e conectado, além do mais, através das redes sociais, é que se exerce este papel; que, mais além de cumprir a função de hedonismo de controle, se materializa simples e cruamente em um papel de bisbilhoteiro que goza da transparência mesma, desconhecendo a opacidade que a habita e, por outro lado, é o acionar de uma negatividade a participar na vida.

Este mundo da transparência não permite que nada escape à visibilidade nem à oportunidade por espaços vazios. Desta maneira, cada sujeito se entrega ao olhar panóptico digital, onde é servo e ator, ao mesmo tempo. Portanto, a proposta de uma sociedade transparente possibilita a formação de grupos casuais, cuja máxima função é alimentar um eu, um narcisismo individual em que cada um busca construir uma marca de si mesmo.

Para concluir, nesta reflexão é fundamental assinalar, diante do império da imagem e do cálculo do olhar, como a experiência analítica trata mais de abrir, ali onde a transparência digital esconde a exigência do sem-sentido, fecha-se à contingência e ao buraco mesmo da existência, para construir, tal como indica Lacan, uma clínica canalizada pelo que não anda, por aquilo que é inegável, como a intimidade do gozo que habita o corpo no ser que fala.


Bibliografia Geral

  1. – Byung-Chul Han. “La sociedad de la transparencia” Ed. Herder, España (2013)
  2. – Bassols, M. “Sociedad de la transparencia, opacidad de la intimidad ” miquelbassols.blogspot.com
  3. – Bassols, M. “El imperio de las imágenes y el goce del cuerpo hablante” Texto VII Enapol

Tradução do espanhol: Mª Cristina Maia Fernandes

É possível catalogar algumas gerações a partir de traços gerais. Isto permite captar uma ordem nos diferentes fenômenos durante um período de espaço e tempo, sob certas coordenandas históricas de produção e de consumo. Proponho um brevíssimo percurso de duas gerações.

Se pensamos no avanço tecnológico, centrado na onipresença da tela, atualmente se trataria de uma juventude cada vez mais globalizada como efeito da própria tecnologia, com uma subjetividade organizada pela imediatez, rapidez, congelamento e eternização do presente, pelo ilimitado e excessivo…

Porém, qual é a diferença entre o narcisismo contemporâneo e o dos jovens de antigamente?

Depois da segunda guerra mundial existiu um boom na taxa de natalidade e esta geração, nascida entre 1946 e 1964, foi denominada “baby boomers”. Já é considerado um grupo humano caracterizado pelo domínio do eu – colocado na posição de S1 – na qual a identificação se estende desde “sou filho de tal” até “sou professor, sou suboficial, sou funcionária dos correios”, para tomar alguns exemplos de Miller em “Os usos do lapso”.

Essa geração viveu a morte dos Kennedy, conflitos raciais, a chegada à lua, os Beatles, a guerra do Vietnam, protestos contra a guerra, a experiência social, liberdade sexual, movimento pelos direitos civis, movimento ecologista, movimento feminista, protestos e distúrbios, a experiência com diversas substâncias tóxicas recreativas. Posteriormente encontramos o embargo do petróleo que causou grande inflação e escassez de gasolina.

Diz-se que seus valores predominantes incluem a liberdade, a experiência, a sensibilidade social, porém também desconfiança nos governos. É uma geração responsável, que aposta em um trabalho, em geral estável, em torno do qual organiza seu grupo familiar, sua economia e sua vida. Poderia-se pensar que viveram para trabalhar.

Trataria-se da constituição de um eu mediado pelo falo, a castração e a crença na existência do Outro, a linguagem? Miller coloca em “Donc”: “A mediação significa que é através do outro que posso alcançar o que sou…”

Em maio de 2013, The Times Magazine publicou um artigo chamado “Millennials: La generación yo yo yo”, de Joel Stein. Na capa da revista aparece uma garota recostada tirando um Selfie com um celular: trata-se de jovens desta época: egoístas, tecno, narcisistas e radicalmente independentes.

Segundo o Instituto Nacional de Saúde dos estados Unidos há três vezes mais casos de transtorno narcisista da personalidade em pacientes que transitam pelos vinte anos do que quem tem 65 anos.

Esta geração foi denominada Y em 1993 pela revista Ad Age, para descrever os adolescentes nascidos entre 1985 e 1994.

Demoram um pouco mais do que a geração precedente para estabelecer uma família, a qual pode ter diferentes formas, os filhos não são uma prioridade. Trata-se de um grupo empreendedor, criativo, que trata de desenvolver e executar suas ideias. Vivem “conectados”, “online” e não concebem um mundo sem internet e tecnologia. São a geração do telefone inteligente. São multifacetados, é difícil captar sua atenção, giram em torno de um propósito ou vários. São sensíveis ao meio ambiente e às problemáticas sociais. Fazem o que gostam e o trabalho está submetido ao prazer e aos objetivos.

Destaca-se a relação desses jovens com a tecnologia: desde o nascimento estão imersos na era da internet, verdadeiros súditos do Império das Imagens. Podemos pensar que “nascem com um chip incorporado”. Amam todos os “i”, iPhone, iPad, iPod, espelhos, câmeras fotográficas”. Esta relação com a tecnologia, imediata, variada e potente contribui para a glorificação do eu.

O social recebeu um novo nome: Redes Sociais, que destaca a preponderância do laço social virtual. Não se trata de um contato “corpo a corpo”, mas mediado pela imagem. O consumo, verdadeiro traço da época, que, na verdade, nasce na geração anterior, funciona “boca a boca”. Atualmente há uma queda das marcas. Não sei se os jovens hoje em dia buscam produtos Nike pelo nome da marca ou são os atributos do objeto que definem o consumo. Em muitos casos esses jovens orientam as regras dos novos modos de produção; outras gerações seguem-nos.

Trata-se de qual narcisismo?

Existe um significante, o S1 puro dirá Lacan no “Seminário 17”, que é o Eu. Encerra um sentido absoluto e está colocado no lugar da verdade no discurso universitário. É interessante sublinhar o caráter absoluto desse S1, do Eu mestre: “O Eu idêntico a si mesmo é precisamente o que constitue o S1 do imperativo puro”. “Sou o que sou”, lança um sentido absoluto no lugar da verdade e sustenta o que Lacan designa como Eucracia, identidade consigo mesmo. Estamos no reino do eu ideal, com uma preponderância da imagem sobre o simbólico, onde o gozo da imagem, com um resto de libido que não cede, desemboca em um gozo narcisista caprichoso e obstinado. Desenvolve-se uma loucura fálica do eu que lança o sujeito em um narcisismo desmedido, que não aceita perdas.

É pura captura do eu ideal em um delírio imaginário. Em “Donc”, Miller comenta que na loucura se trataria de uma crença que consiste em crer em uma identidade de si sem passar pelo Outro; na loucura se trataria da imediatez. Nesse delírio de identidade se aloja um gozo egóico.

Esta reflexão, a partir de Lacan e Miller, permitiria penasar que o eu contemporâneo constitui-se a partir do imediato – a imagem – sem passar pela mediação do outro? O excesso e a exacerbação do eu ideal determinam um narcisismo excessivo.

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista