Patricia Tagle Barton

  1. Espessura

 Tomo emprestado o título de Marie-Hélène Brousse[1], “A imagem é uma pomba morta no fundo de uma lata de lixo. Como esta imagem se tornou destino para um sujeito?” – ela se pergunta.

A questão nos leva da problemática atual do Império das Imagens à questão do Uma-imagem e de seu império. Uma imagem e sua pregnância singular, que se torna destino para alguém, um sujeito, um parlêtre.

Uma-imagem, S1. Ela sozinha, momento de encontro e de eclipse, afânise, conforme propõe Lacan, sempre contingente.

Trata-se de um encontro com o que a imagem carrega de irrepresentável, de real, e com o gozo que ela veicula. Se há um quid do assunto, este é o gozo em jogo, um gozo que não se reduz ao âmbito escópico que veicula a imagem como tal, e, na medida em que toca o corpo, é sempre corte. Quando se trata desta Uma-imagem, ela divide, atravessa o sujeito, o reenvia à sua inerme primordial, e, por este motivo, é em torno dela que constrói sua defesa, seu fantasma. Miller a chama de “imagem rainha”. Entretanto, ela reina em sua espessura. Por definição, é uma pomba que não voa. Não obstante, uma pomba mensageira de um real.

 

  1. Literr-a-tura

 

Recentemente, eu me deparei com um relato de Mariana Enriquez, autora argentina. Trata-se do conto denominado Donde estás corazón[2].

“Tenho três recordações dele, mas uma delas pode ser falsa. A ordem é arbitrária”, começa o texto. Trata-se do encontro de uma menina, na casa das amiguinhas de infância, com a imagem de um homem doente (presumivelmente, o pai da amiga), nu e ferido:

“… está assentado em uma poltrona completamente nu, sobre uma toalha, vendo televisão (…). O pênis descansa entre uma mata de pelos negros e a cicatriz que lhe atravessa os pelos é de um rosado escuro.” As outras duas “lembranças” são variações sobre o mesmo tema, exceto em um ponto: ambas carregam a significação da sedução: “ele me olha de perto”/ “ele me sorri de perto, o rosto quase colado ao meu”.

“Na lembrança, eu me sinto nua e tímida”, assinala a protagonista do relato, e acrescenta: “não sei se era real (…) posso tê-lo inventado, embora reconheça esta sensação de timidez e vulnerabilidade que com frequência se repete em meus sonhos”.

Até aqui, o conto parece ilustrar classicamente o próton pseudos da histeria, “comum”. Nada de novo, nada “histórico”. Exceto um dado: o pai jacente, ferido, o pênis desfalecido sobre um fundo peludo, marcado por una cicatriz.

Um segundo momento narra o encontro da protagonista, já na adolescência, com uma imagem “literária”, que ressignifica este primeiro encontro da infância com esta imagem do homem ferido que condensa Um-gozo. Trata-se de uma passagem de Jane Eyre, em que Jane acompanha sua amiga Helen, moribunda e tísica, convalescente. “Durante todo esse verão – relata a protagonista – eu imaginei (…) [que] Helen, tísica e moribunda, tão bonita, morria enquanto eu a tomava pela mão”. Junto a este encontro “literário”, está o seguinte: o irmão de uma colega de colégio está morrendo por conta de um tumor que não pode ser operado entre o coração e os pulmões. A protagonista do relato recorda tê-lo visitado em seu leito de morte.

Dali em diante, sobrevém para a protagonista do relato, nesta ordem:

  1. a) Uma compulsiva indagação junto aos livros de medicina, particularmente para indagar sobre estas patologias do coração.
  2. b) O encontro, em uma livraria de medicina, de um CD que reproduzia ruídos cardíacos, em cuja escuta ela se comprazia e se masturbava até produzirem-se feridas no clitóris.
  3. c) O encontro (virtual) de um site da internet, protegida pelo anonimato, em que outros fetichistas dos batimentos cardíacos compartilhavam seus corações. O texto descreve, assim, o gozo em jogo: “Às escuras, com os fones de ouvido e os corações, esta era minha vida, nunca mais sexo com pessoas. Para quê?”.
  4. d) O encontro real com um dos fetichistas “anônimos” assíduos ao chat. “Logo nós dois nos abandonamos à vida virtual, e nos fechamos em minha residência, com um gravador, um estetoscópio, medicamentos e substâncias que ajudavam a alterar o ritmo cardíaco. Nós dois sabíamos qual poderia ser o final, e não nos importávamos com isso”.

 

  1. ¿Dónde estás, corazón?

 

Onde estás, coração?, não ouço teu palpitar/ é tão grande a dor que não posso chorar./ Eu quisera chorar e não tenho mais pranto/ eu a queria tanto e se foi para não voltar.

Eu a queria com toda a alma como se quer somente uma vez,/ mas o destino cruel e sangrento quis me deixar sem seu querer.

Somente a morte arrancar podia aquele idílio de terno amor;/ e em uma manhã de cru inverno entre meus braços morreu.”

Certamente, o conto de Mariana Enríquez se difere muito da história que ressoa naquele tango[3] que canta a dor perante a despedida de um amor arrebatado pela morte, e que é evocado por seu título. Entretanto, não há nem amor, nem duelo, nem idílio. O coração não é ali uma metáfora do amor, sua “sede” imaginarizada, nem simplesmente um órgão a ser auscultado “até as últimas consequências”, e sempre haverá “algum”. Se o título do relato me chamou a atenção, foi justamente pela “indiferença” que torna patente sua falta de acento; um “onde” sem destino, sem destinatário, e sem lugar.

 

  1. “Patologias do coração”

 

Recordo este significante que condensa o real em jogo, quando se trata do poder invocante de uma imagem desprovida de um mínimo e necessário marco simbólico. Trata-se de um gozo selvagem e desvairado, mortífero. Entregue à nua voracidade do supereu.

Que destino e a que se destina hoje a transferência e o encontro com um analista para os sujeitos atingidos por estas novas patologias do coração?

Como colocamos em jogo, em cada encontro e em cada caso, o peso deste “aqui” e deste “agora”, onde possa acontecer um encontro inédito, não sem coração, nem sem destinatário? Em suma, um encontro que não seja indiferente.

 


 

[1] BROUSSE, Marie-Hélène. Posición sexual y fin de análisis. Buenos Aires: Tres Haches, 2003.

[2] ENRIQUEZ, Mariana. Los peligros de fumar en la camaLima: Santuario, 2015.

[3] ¿Dónde estás, corazón?, Luis Martínez Serrano/ Augusto Berto, 1930.

 

Tradução do espanhol: Adriano Messias