Por Marisa Morao (EOL)
“Cremos que dizemos o que nós queremos, mas é o que queriam os outros, mais especificamente, nossa família que nos fala. Entendam aí o nós como um complemento direto. Somos falados e, por isso, fazemos, dos acasos que nos colocam, algo tramado. Há, com efeito, uma trama, nós a chamamos nosso destino”.
(Jacques Lacan, “Conferência: Joyce o sintoma” (16-6-75), em O Séminário, livro 23: o sinthoma).
Em primeiro lugar, podemos destacar que no parágrafo antecedente a essa citação, Lacan menciona sua saída de Stanislas, colégio escolhido para sua educação, ou seja, um assunto da família.
A respeito da citação proposta, cabe assinalar que, nesse momento, para Lacan, a história é uma armadilha, é a “maior das fantasias”. A existência não se desenrola na história, mas tem lugar no campo da contingência.
O acaso, a contingência não se enlaça com nada. Em torno da contingência, do acontecimento vivido, o analisante, seu pensamento – pela articulação mesma do discurso analítico -, tece sua história.
As contingências da vida dos assuntos de família, não têm uma ordem em si, não possuem um sentido. Ordenam-se a partir do simbólico. O inconsciente transferencial põe em ato esse ordenamento através de suas articulações. J.-A. Miller o assinala em Sutilezas analíticas: “Um S1 incerto se enlaça com um S2, e isso produz um efeito de sentido articulado. O acaso cobra sentido”. Produz-se, a partir de um S1 do acaso, uma história de destino trágico. É sob essa perspectiva que a operação analítica se orienta pelo “desprezo pela história”.
O trabalho analítico aposta em desbaratar o destino construído de assuntos de família para isolar acontecimentos incertos. Deste modo se realça em quais furos de amor, desejo e gozo o sujeito cai em sua chegada ao mundo.
A. Vicens, o transmite assim: “Digamos melhor, trata-se do que não tem remédio, salvo – e esta salvação é essencial – para mostrá-lo em um discurso sem queixa e sem abandono: não escolhi os que me deram o ser, como não escolhi o país nem a época em que nasci. Não há como voltar atrás. Mas, o que se pode fazer (…), é retificar a posição subjetiva a esse respeito: a discrição graças à qual alguém pode dizer ‘se voltasse a nascer, voltaria a escolher o mesmo'”. [1]
Fevereiro 2017
Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro
NOTAS
- A. Vicens. Apresentação em http://www.unsamedita.unsam.edu.ar/Presentaci%C3%B3n-Vicens.pdf