Luiz Fernando Carrijo da Cunha (EBP)

Já sublinhamos¹ as várias vertentes em que se pode tomar o tema de nosso IX ENAPOL. Salientamos cada uma das três paixões a partir de referências de Freud e de Lacan. Pois bem: nos interessa isolar a paixão do ódio para além da concepção freudiana que o liga, sua origem ao pai, através do que se situa como “ambivalência”. Ademais, a função de exceção “garantiria” uma certa distribuição e regulação do gozo, fundando um “universalismo”, um “para todos” que Lacan, desde o Seminário 11², colocará em questão. Naquele ano Lacan falaria sobre “Os nomes do pai”³, uma pluralização considerada a partir da queda do Pai como lugar de exceção com consequências para o que da civilização produz sintoma. Os nomes-do-pai não aconteceram, tendo apenas uma aula publicada⁴, mas a questão foi desenvolvida por Lacan nos anos posteriores.

Se a questão do “universal” e o lugar de exceção que ele engendra ocupou Lacan tal como podemos acompanhar, é interessante localizar algumas destas passagens para nos orientarmos – sublinhemos o termo “segregação” para dar conta dessa orientação: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (1967)⁵. “Equilíbrio” que remete à continuidade de um funcionamento, cujo preço é a “segregação”.

Em 1968:

Parece-me que em nossa época o vestígio, a cicatriz da evaporação do pai é o que poderíamos situar sob a rubrica e o título geral de segregação… o que caracteriza nosso século é uma segregação ramificada, reforçada, que se sobrepõe em todos os graus, e não faz senão multiplicar as barreiras⁶.

Não precisamos destacar aqui que o ódio está aí como elemento fundamental no que Lacan faz referência à “multiplicação das barreiras”. Essa seria a porta de entrada para conceber o ódio para além do seu valor de “ambivalência”.

Tentemos capturar a lógica que se coloca: “a evaporação” do pai deixa uma cicatriz. Mas o que estaria na base dessa evaporação? Lacan também nos indica que entram em jogo “os mercados comuns”… E como não os entender na perspectiva do capital, de mãos dadas com as tecnociências, que modificaram o estar do homem no mundo? Se o Pai é revelado como “semblante”, o lugar vazio outorga o desvario do gozo. A segregação diz respeito ao isolamento dos “modos de gozo”. Mas lembremos que a segregação, se ela é detectada hoje no seio da civilização, ela afeta o sujeito, já que nem todo gozo pode ser compartilhado. O fator ansiogênico se liga onde o excesso não encontra uma resposta universalizante. Para a psicanalise, o sujeito tampouco encontra lugar para o singular do gozo num grupo segregativo.

O gozo do Um-sozinho está na raiz da segregação, o ódio que prolifera está intimamente ligado a ele.

Miller adverte que se o racismo é assunto para a psicanálise, o é desde suas “causas obscuras”⁷. O gozo do Um-sozinho está aí em causa; na medida em que é êxtimo, o sujeito não pode reconhecê-lo sendo então localizado no Outro. Fonte do ódio, o que é o mais íntimo ao sujeito, também lhe é exterior. A partir dessa tese de Miller, Laurent aborda o ódio como “afeto primordial”⁸, dizendo:

“O primado do ódio é sobretudo uma desidealização do amor como primeiro afeto…. – Esta perspectiva, dá conta da oposição entre os populismos dos anos trinta, verticais… e os novos populismos apoiados em movimentos horizontais… unidos pelo ódio da elite ou pelo ódio de objetos intercambiáveis…”.

Valeria a pena aprofundar nessa vertente do “primado do ódio” e, a ele, articular tanto a cólera quanto a indignação como manifestações de um sujeito atabalhoado por seu gozo.


Notas

¹ N. A.: Argumento do IX ENAPOL. Disponível em: https://ix.enapol.org/argumento/

² LACAN, J. O seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

³ ________ Nomes-do-Pai. Op. cit., 2005. p. 55 e seguintes.

⁴ ________ Ibid.

⁵ ________ “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Outros Escritos. Op. Cit. 2003. p 263.

⁶ ______ “Nota sobre o Pai”. In: Opção Lacaniana, nº 71, nov. 2015.

⁷ MILLER, J.-A. “Racismo”. Extimidad. Buenos Aires: Paidós Ed., 2010. p. 48.

⁸ LAURENT, É. “L’Europe a l’epreuve de la haine” (Partie II). In: Lacan Quotidien, nº 822. Disponível em: lacanquotidien.fr