Ana Lydia Santiago – RUMO AO VII ENAPOL – “O IMPÉRIO DAS IMAGENS”

Ana Lydia Santiago

“Irritadas com a beleza da vizinha, duas adolescentes resolveram atacá-la a facadas. A jovem bonita demais teve seu rosto cortado e deformado. As imagens foram postadas pela irmã da vítima, na Internet[1]. Esse fato, divulgado recentemente na mídia argentina, também já foi pauta de colunas policiais de jornais brasileiros. No caso referido, uma imagem admirável constitui-se ameaça e impõe resposta agressiva. Pela passagem ao ato programada e anunciada, as agressoras eliminam tal ameaça, substituindo-a por algo repulsivo e, assim procedendo, cumprem a intenção de transformar uma imagem graciosa numa réplica da de Chucky, o boneco assassino, um dos ícones do terror mundial.

O insuportável em face da imagem perfeita, por outro lado, contrasta com o prazer associado à divulgação de fakes, um fenômeno atual de uso de imagens de pessoas bonitas e famosasque possibilita a criação de perfis simulados que ocultam a identidade real de usuários da Internet. O fake é exemplo de uma nova maneira de inventar-se um “eu” e, mesmo, de acreditar-se nessa nova forma, a partir de imagens perfeitas e globalizadas, que imperam como estampas consagradas de fama, sucesso e poder. Na mesma vertente, também é comum a simulação de currículos e agendas, para fazer crer a outros um perfil falso de profissionais, empresários ou intelectuais bem-sucedidos.

A literatura fornece, igualmente, algumas expressões de falsa identidade ̶ entre outras, a do assassino Scharlach, personagem enfatuado e vingativo de “A morte e a bússola”, de Jorge Luiz BorgesSegundo Ricardo Piglia, essa figura exemplifica o herói contemporâneo, pois vive na pura representação, sem marcas pessoais, sem identidade: “Herói é quem se dobra ao estereótipo, quem inventa para si uma memória artificial e uma vida falsa”. Essa dissolução da subjetividade, tomada como produto da política de massa, é apontada por esse autor como um tipo reinventado de consciência, que se caracteriza por ambiguidade e duplicidade: “Todos sentem a mesma coisa e recordam a mesma coisa, e o que sentem e recordam não é o que viveram”[2].

São diversos e acessíveis os recursos que, hoje, favorecem a profusão de imagens, a criação de realidades virtuais, à disposição das mascaradas, das fantasias, dos duplos, dos simulacros e dos fetiches do corpo. Em que esse quadro mudou, se comparado ao de há 20 anos?

Não há como negar que mudanças no âmbito da Internet criaram novas condições numéricas, em que as informações, estruturadas por dados entre zero e um, de maneira binária, passaram a circular em uma rede que se torna cada vez mais universal. Alguns sociólogos sustentam que isso, sem dúvida, contribui para a ideia geral de uma ausência de diferenciação entre o virtual e o real. Patino[3], entre eles, defende que as modernas condições numéricas provocaram uma perturbação na própria condição humana. Antes, acreditava-se que a Internet era apenas uma mídia. Contudo essa rede mostrou-se um espaço social em que coabita uma infinidade de coisas, inclusive relações amorosas, e, por isso, se mostra propício ao compartilhamento de imagens, testemunhos, informações e outros dados, bem como à compra de objetos e itens os mais diversos. O quem, consequentemente, implica diferentes impactos, que transformam não só a vida dos indivíduos como tais, mas também sua condição social e política. Tal constatação sugere que, em decorrência de uma sociedade tão conectada e da produção de modos de vida diferentes dos anteriormente vivenciadosalgo novo está em curso de criação   ̶ uma nova sociedade, um novo poder econômico, uma nova distribuição de poder político.

O que interessa à psicanálise, nessa esfera, são os sintomas resultantes de tais transformações. E, a propósito, pode-se perguntar: o que esse novo domínio, em que se destacam as imagens na linguagem e nas relações com os objetos, introduz de novo no tocante às formas de manifestação de sintomas e à correlação entre estes e o gozo? No império das imagens, o que os sintomas esclarecem acerca do real do inconsciente?

O empenho em se confrontar a incidência do imaginário em sintomas do tempo atual, tendo-se como parâmetro o que acontecia 20 anos atrás, tem uma razão: foi precisamente em 1995 que Jacques-Alain Miller[4] isolou três imagens diferenciadas na psicanálise. Para fazer jus, na época, ao tema por ele proposto para o V Encontro do Campo Freudiano –, denominou-as “imagens rainha” e definiu-as como “aquelas imagens que sobrevivem ao naufrágio do mundo das imagens, na psicanálise”[5]. Ao privilegiar o dizer em detrimento do ver, a experiência analítica promove uma verdadeira deflação no mundo das imagens. As que sobrevivem a esse efeito são especialmente correlacionadas com o gozo investido na satisfação autoerótica da fantasia e realizam a captura significante do gozo, sob o império do olhar, já que este, como se sabe, se caracteriza por ser essencialmente “sem imagem”. Miller extrai três imagens rainha referentes ao corpo ̶ o próprio corpo, o corpo do Outro e o falo. Assim, destaca que é no corpo que o imaginário se amarra ao gozo. Para cada uma dessas imagens, ele designa um operador lógico, cuja função é a de destacá-las, conferindo-lhes valor de unidade: “A partir do momento que há uma imagem Una, ela é significantizada”[6].

No caso da primeira imagem rainha, o operador que age no campo da visão é o espelho. O próprio corpo é o corpo do estágio do espelho, concebido por Lacan como uma forma visual adquirida não sem o gozo do júbilo, que constitui a matriz do “eu” e a ideia de si mesmo como corpo, com que o falasser mantém uma relação de adoração[7].

No que concerne à segunda imagem, o corpo do Outro é aquele sobre o qual o sujeito faz a leitura óptica da castração e, ao mesmo tempo, a anatomia é o que atua no campo da visão, possibilitando a formalização significante, pois se constitui suporte de uma presença e, simultaneamente, de uma ausência. O operador lógico que age no campo da visão é, então, o véu. A roupa vela o nada, em alguma coisa, fazendo-o existir.

O falo, a terceira imagem rainha, é a forma erigida do órgão masculino, transformada em significante ̶ o “significante imaginário”, como propõe Lacan ̶ , que conserva todas as articulações imaginárias, de que derivam os objetos chamados fetiches[8]. O operador lógico do falo é o escabelo. Miller enumera uma série de expressões para designar o que age no campo da visão com relação ao falo ̶ apoio, pedestal, fenda, janela, […] enfim, toda uma série de operadores visuais que delimita e isola o que, por seu oficio, pode ser oferecido exposto como uma imagem una. É nesta série que encontramos os operadores que, de fato, fazem, da melhor maneira, significantes com as imagens”[9].

Com vistas a contribuir para o aprofundamento da reflexão sobre o tema do VII Enapol – “O império das imagens” –, saliento uma última indicação de Miller a respeito dessas três imagens rainha da psicanálise: o fato de elas realizarem uma captura do gozo precisamente porque estão sob o império do olhar. Na extensão da polaridade entre o ver e o mostrar-se, deixo o convite para os analistas esclarecerem, com base na prática da psicanálise, o que há de novo na clínica sob o império das imagens.


[1] Publicado no site El Clarín, diário argentino, e em O Tempo, jornal de Belo Horizonte/MG/Brasil, de 1º de outubro de 2014, p. 29. http://www.clarin.com/sociedad/Desfiguraron-chica-anos-linda_0_1222077855.html.

[2] PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 45.

[3] Cientista político, autor de livro sobre as transformações antropológicas, sociais e econômicas induzidas pela entrada na era numérica. Ver: FOGEL, Jean-François; PATINO, Bruno. La condition numérique. Paris: Grasset, 2013.

[4] Conferência proferida no V Encontro do Campo Freudiano, realizado no Rio de Janeiro/Brasil, em abril de 1995, e publicada em: MILLER, Jacques-Alain. Lacan elucidado. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 575-595.

[5] MILLER, op. cit. p. 578.

[6] Ibidem, p. 579.

[7] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 64.

[8] MILLER, op. cit. p. 579.

[9] Ibidem.

2021-09-02T09:45:28-03:00

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