EDITORIAL
Ariel Bogochvol
Enquanto tc o texto e o vejo soletrado na tela do computador, a tv anuncia a descoberta de um planeta gêmeo da terra, o Kepler-452 b, situado a 1400 anos-luz e que orbita uma estrela pouco maior que o sol. Leio no google do iphone que esse sistema estelar tem seis milhões de anos, 1,5 mil milhões de anos mais do que o sistema solar e parece reunir as condições para a existência de vida. As imagens transmitidas pelo telescópio espacial Kepler, lançado há 20 anos, são belíssimas: um planeta estranhamente familiar, em rotação, orbitando um astro que, em função da distancia, é menos brilhante que o sol e, ao fundo, o escuro estrelado do universo. A reportagem evoca outro feito da NASA anunciado há uma semana: o vídeo do sobrevoo de Plutão simulado a partir das fotos de alta resolução tiradas pela sonda New Horizons que viajou durante 9 anos por quase 5 bilhões de km para se aproximar do planeta-anão. Nova manchete da tv: EI divulga vídeo da decapitação de oficial sírio por uma criança no Iraque. Assisto a barbárie no youtube, onde se encontram todos os vídeos das decapitações realizadas pelo grupo. Uma vídeo-coletânea do horror! Os reféns vestidos de uniforme laranja ajoelhados lado a lado com seus respectivos carrascos cobertos de preto, as armas em punho, ao fundo o deserto. Espetáculo com cenografia, vestuário, música, coreografado e encenado diante da câmera com golpes precisos, ritmados e letais. Outra manchete: atirador solitário ataca instalações do exército e marinha dos EUA, mata quatro soldados e morre em Chattanooga, Tennessee. A câmera mostra o corpo coberto e a movimentação do aparato policial contrastando com a tranquilidade de um lugar perdido no sudeste americano. Pausa para os comerciais! Em 10 minutos, no pequeno espaço de uma escrivaninha, com apenas três aparelhos – tv, computador e iphone – tenho acesso às imagens do mundo e do cosmos e sou bombardeado por elas. Continuo a tc o texto.
Há uma enxurrada de imagens sucessivas, simultâneas, fragmentadas, belas, horrorosas, desproporcionais, intrusivas, diáfanas, bizarras, pornográficas, artísticas, realistas, surrealistas, eróticas, enigmáticas, grotescas, banais, que impactam, fascinam, traumatizam, capturam, anestesiam, despertam, afetando as subjetividades e os corpos. São produzidas e reproduzidas por variados aparelhos – tv, cinema, vídeo, câmera, celular, computador, telescópio, microscópio, tomógrafo, ressonância magnética, eco-doppler, satélites – criados pela ciência e tecnologia e se projetam sobre todos os campos, do mais êxtimo ao mais íntimo. “Império das Imagens” (AMP), “Sociedade do Espetáculo” (G. Debord), “Império do Efêmero” (G. Lipovetsky) tudo se transforma em imagem num mundo “onde não existem, não se produzem e não se consomem mais do que imagens” (R. Barthes).[1]
O termo império deriva do latim imperium que significa poder, autoridade. Representa primariamente um território geográfico mais ou menos extenso contendo um conjunto de nações étnica ou culturalmente diversas governadas por um soberano ou imperador. Diferente dos antigos impérios, o Império pós-moderno não estabelece um centro de poder territorial, não se apoia em limites ou barreira fixas e é um aparato de dominação descentralizado e desterritorializado que progressivamente incorpora todo o domínio global em suas fronteiras abertas e em expansão. O Império gerencia identidades híbridas, hierarquias flexíveis e trocas diversas, por meio de suas redes de comando em ajuste permanente e não exerce seu poder através da espada dos monarcas ou do terror próprio dos conquistadores, mas pelos meios de comunicação de massa, pela internalização dos mecanismos de controle e pelo biopoder, uma forma de regular a vida social a partir de seu interior, acompanhando-o, interpretando-o, absorvendo-o.[2] O Império é a expressão jurídica da economia globalizada, uma nova forma de lei supra-nacional que reflete a complexa interdependência do comércio e dos fluxos do capital transnacionais. Sua legitimação política só pode ser alcançada através do apelo a uma rede dispersa de poder e não pode ser decretada por uma única nação ou por um punhado de nações imperialistas. (Negri e Hardt).[3] Se há consenso acerca do caráter inédito desse imperialismo, há dissenso em relação aos seus efeitos nas sociedades e subjetividades contemporâneas.[4] Os novos tempos são saudados com louvor, horror, esperança, desconfiança. Anuncia-se o paraíso e o apocalipse now.
Os trabalhos apresentados em flash 10 atravessam diversos planos do Império das Imagens. Na abertura, um trailer do filme A Loucura entre Nós de Fernanda Vareille, baseado no livro homônimo de Marcelo Veras, que traz a experiência de sete anos de um analista lacaniano na direção do hospital psiquiátrico Juliano Moreira em Salvador. Como transformar um livro sobre uma experiência clínica, institucional e política em filme? Como passar das palavras às imagens e às cenas? A câmera passeia pelos corredores do hospital; em off o diretor faz sua narrativa. O status quo ante é de uma instituição asilar, “a casa dos objetos a de Lacan”: a voz e os gritos, o olhar multiverso dos pacientes e panóptico da instituição, fezes, urina, pedaços de corpos, corpos rodopiando, se desnudando, sem discurso ou erótica a enlaçá-los. O filme acompanha a transformação da instituição na voz dos sujeitos que vivem ali. Encadeiam-se depoimentos de pacientes e fragmentos do cotidiano na instituição. “Quero trabalhar e ter dignidade”, “prefiro a morte do que não ter dignidade”, a “dignidade é mais importante do que a fama…fama…fama…” diz uma paciente cuja boca se enche da saliva seca dos neurolépticos. Outra paciente, com uma máscara cobrindo o rosto, bem produzida, fala com orgulho “sou o subproduto da sociedade, o lixo da civilização…sou louca…soy louca…”. Um grupo se junta e uma paciente anuncia “todos somos loucos”… O trailer anuncia um filme que parece ser um elogio da loucura, da loucura singular de cada um, e que documenta os efeitos da orientação lacaniana numa instituição e nos sujeitos que a habitam. Pela potência das imagens e da voz, uma reflexão sobre a clínica, a política, sobre o próprio cinema e que introduz “a loucura entre nós” no âmago do Império das Imagens.
Imagens deslumbrantes, eclipse das palavras – Roland Barthes e o unário da imagem de Fabian Fajnwaks parte do problema da relação entre a imagem e o real: “de que modo a imagem vem velar o real?” “O real, o impossível de ser simbolizado, pode ou não se representar?” Perguntas sobre as modalidades de velamento do real e, de forma aparentemente paradoxal, sobre a representabilidade do irrepresentável (um oximoro) e sobre os indícios do irrepresentável na representação. Retoma um debate entre G. Wajcman e C. Lanzmann, diretor do filme Shoah (1985) e G. Didi-Hubermann, um especialista em imagens e pintura, sobre a exposição Memórias dos Campos. Imagens dos campos de concentração e de extermínio. É possível representar o horror absoluto? O shoah? Ou o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki? Surpreendentemente, em Hiroshima mon amour, filme de A. Resnais, a personagem feminina dizia: «não vi nada em Hiroshima». É possível, diante do horror, não ver nada?
As imagens podem velar, desvelar e revelar o real. O muro das imagens serve tanto para ver como para não ver. Responde, por um lado, ao ideal da full vision, sem zonas de opacidade; por outro tampona o que é para ser visto. Fabian pergunta: “Se as imagens mentem, como lê-las, como atravessar o muro das imagens para ver emergir um pedaço do real”? Encontra uma resposta em R. Barthes que distingue o studium – aquilo que a fotografia dá a ver, ensina, instrui – do punctum- elemento que o fotógrafo não busca, mas que vem procurá-lo e o atravessa como uma seta em seu interesse, em seu olhar. O punctum pontua a imagem, a descompleta, indica uma borda, um litoral, um ponto de fuga. Isola, assim, o “particular absoluto”, “a soberana contingência”, a “tyché”, “o real em sua expressão infatigável” o que se opõe à “fotografia unária” e às “imagens unianas”, hegemônicas no muro das imagens.
Império das imagens e fluidez das identificações de Julio Cesar Lemes de Castro aborda a relação entre a imagem e a identificação (primária e secundária). Partindo da distinção entre o eu ideal i(a) – matriz de identificação primária cujo exemplar inaugural é a imagem do corpo no espelho – e o ideal do eu I(A) – matriz da identificação secundária, resultado da introjeção simbólica desdobrada no supereu que acrescenta a sanção garantidora do cumprimento da norma – Julio Cesar analisa os efeitos das mudanças de regime do poder sobre o processo de identificação. Na modernidade, o poder é exercido nas instituições disciplinares como a fábrica, a escola, o quartel, o hospital (M. Foucault) e cada uma dessas instituições valoriza um certo tipo de ideal do eu, acoplado a um supereu repressivo que zela pela adesão aos padrões normativos. Na pós-modernidade, a sociedade disciplinar dá lugar à sociedade de controle (G. Deleuze) e há um declínio do supereu repressivo que se acompanha da escalada do imaginário e do desgaste das referências simbólicas. A injunção superegóica do gozo se torna dominante viabilizada pela proliferação das imagens.
Na medida em que, na sociedade de controle, o ideal do eu está acoplado a um supereu que ordena o gozo enquanto o efeito normatizador do supereu repressivo se eclipsa, há uma multiplicação dos modelos de identificação. À maior latitude do ideal do eu corresponde a plasticidade do eu ideal, que não precisa mais se adequar a moldes preestabelecidos, mas pode modular-se de acordo com as circunstâncias. Amplia-se a margem social de manobra do investimento narcísico, pois cabe a cada um promover seu capital humano, segundo a fórmula do empreendedorismo de si.
El selfie: narcisismo o autoerotismo de Angela Fischer analisa a relação entre a imagem, o narcisismo e o autoerotismo a partir da selfie, o auto-retrato, que se tornou um fenômeno social com a difusão das câmeras digitais, dos celulares e do compartilhamento das fotos em redes sociais. Toma como ponto de partida um curta metragem protagonizado por Kirsten Dunst e realizado por Matthew Frost, “Aspirational” postado no youtube: duas jovens passeando de carro vêem a atriz na rua, param, aproximam-se, fazem seus respectivos selfies, compartilham as fotos, se afastam da atriz. Ela pergunta se querem fazer alguma pergunta; elas agradecem e se retiram olhando suas próprias selfies diante do olhar perplexo de Kirsten. O fundamental era o gozo de olharem-se a si mesmas juntas com a atriz e serem olhadas assim nas redes. Nenhuma relação com a atriz além do uso de sua imagem. Pela potência das imagens, o curta mostra o decaimento do vínculo com o outro e o Outro. O selfie é uma mostração de como as mudanças tecnológicas, os gadgets, podem incidir no gozo de forma massiva. A prática de capturar a própria imagem através da câmera, por si mesma, está relacionada com o autoerotismo: a boca que beija a si mesma… o olho que olha a si mesmo… olhando. Angela pergunta: “quais os efeitos subjetivos dessa incessante captura de imagens vazias que produzem curto circuitos em relação aos outros e ao Outro e deixam o sujeito em uma experiência de gozo solitário? ”
Uma nota sobre a identificação narcisista de Claudia Velásquez também aborda a relação entre a imagem e o narcisismo. Inspira-se na condessa de Castiglione, nobre italiana que viveu na França em meados do século XIX, uma bela mulher, amante de Napoleão III, que posou centenas de vezes para um reputado fotógrafo da época representando personagens diversas. Ia ao estúdio com frequência para contemplar sua própria imagem. Depois de sua morte, um poeta comprou mais de 400 de suas fotografias. Se existisse câmera digital no século XIX, a condessa de Castiglione seria precursora do selfie. Ela ilustra a identificação narcisista: não precisa de ninguém para olhá-la; olha-se a si mesma, goza de si mesma, “foto-grafando-se”. A partir desse exemplo, Cláudia retoma o circuito do olhar na perspectiva de Lacan e sua analogia com a câmera fotográfica, o instrumento com o qual se é “foto-grafado”.
El secreto de imagen de Clara M. Holguin aborda a relação entre a imagem e aquilo que ela não revela. Parte da hipótese de que, mais além da sua multiplicidade e variedade, o poder das imagens se baseia no segredo que escondem e conservam. Antes de responder à questão “o que a imagem esconde?” Clara tenta esclarecer o que a imagem promove. No campo animal, uma imagem do “outro exemplar da espécie” tem influencia sobre o organismo. Na espécie humana, produz “efeitos de vida” como no exemplo do bebê que, sob o domínio da imagem do outro, manifesta um gozo no corpo, visível em seus movimentos desordenados. Trata-se da imagem antes da captura por parte da imagem do corpo próprio na experiência do espelho. Essa imagem fundamental do corpo vela o que não existe (a castração) e faz existir o que não se pode ver (objeto a). Como imagem, mantém o corpo junto fazendo o invólucro de pele que o protege da fragmentação e cobre o organismo em sua material real. Dá consistência ao corpo, permitindo que se exerça uma “nova ação psíquica”, o amor a si mesmo. O privilegio da imagem é unificar as peças soltas e tapar una falta essencial. Seu segredo é o buraco.
São alguns flashes do flash 10.
[1]Citado em Imagens deslumbrantes, eclipse das palavras – Roland Barthes e o unário da imagem de Fabian Fajnwaks
[2]Midiaindependente.org
[3]idem
[4]Sergio Laia –– O que é império? O que são imagens? textos