EDITORIAL

Carmen Silvia Cervelatti

Está chegando o momento de concluir, de colher os frutos de mais de um ano de trabalho que nos une no Império das Imagens. Imagens e Imaginário, diferentes entre si, se enlaçaram na imensa produção que os 11 flashes publicaram e perscrutaram: as relações com o corpo, com o olhar, com o mundo e com a atualidade, dentre outras particularidades. Como nem tudo é possível de ser dito, também nem tudo pode ser visto, a não ser…

Monica Torres, no texto Imagens deslumbrantes, eclipse das palavras, nos conta sobre suas leituras sobre o tema; além dos autores, leu revistas e notou que a programação cultural em Buenos Aires, ao menos naquela semana, se dedicava às imagens, nem sempre deslumbrantes. “O mundo é daquilo que se vê e se faz ver”. Há uma avidez por imagens, eis o império das imagens em suas vertentes de imperativo e de predomínio, poder e dominação. Nossa civilização se apoia no olhar, no tudo a ver, no tudo a controlar, mas nem tudo se vê – há o real que não se rende às imagens. Elas o velam e também podem tocá-lo, conclui a autora.

Lacan disse que o mundo é imaginário, também que o mundo é omnivoyeur e, Fernando Gómez Smith acrescenta, exibicionista Tudo a ver e tudo dar a ver! Em seu texto O ampay, termo do argot popular, nomeia-se a mostração nas TeVê´s daquilo que não seria para ser mostrado, o privado é “publixado”, como bem querem os paparazzis. Ao final, Fernando observa que o olhar absoluto, o Outro absoluto, fora do Simbólico, faz emergir o estranho, o Unheimlich.

Vemos, então: Na época do império das imagens, um homem sem vergonha (Liliana Bosia). Bem a calhar! Este Outro, primordial, não julga, vê e dá a ver, mas é sem-vergonha! Isso é feito para gozar, mediante o olhar: está nas redes sociais, nos reality shows… Lizbeth Yanet aproxima a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras, como querem a publicidade e o discurso capitalista, da imagem para o autista. Para o sujeito autista, uma imagem (é) sem valor porque não há a dimensão de sugestão, não há Outro, simplesmente é.

Maria Fátima Pinheiro mostra a diferença entre imagem visível e invisível articulando as imagens invisíveis à exposição de Sophie Calle Pour la dernière et pour la première fois. Depois de ressaltar a condição para que uma imagem evoque o indizível e o inexprimível, estar atrelada ao Simbólico, demonstra que a intrusão do significante no corpo dá à imagem o poder de perturbar.

E Joyce? A inevitável modalidade do imaginário é o mote de Mayra de Hanze quando remete a Miller, que cita Joyce “a inevitável modalidade do visível”, para localizar a prática psicanalítica: “a modalidade inevitável do dizível”, que, ao final, “a imagem é uma inevitável modalidade do fantasma”. Imaginário, visível, dizível e fantasma são termos que se superpõem frente à função do impossível a evitar, ou seja, fazer consistir o corpo, mais além do sentido. Da imagem ao imaginário seria um bom articulador destes textos.

E, mais além dos escritos, o que “ouvivemos”?: Raúl Antelo (professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina) que participará do VII Enapol conversando com Maria Adelaide Amaral (periodista, escritora, dramaturga) e Regina Silveira (artista multimídia, gravadora, pintora), na plenária A Arte e o Império das Imagens. Boa leitura e até logo! Já que nem tudo é imagem, imaginário, dizer, ouvir, ver, fantasia, arte…

Vídeoflash 10 – Raúl Antelo Edición de Marcelo Veras para Flash 11

Qual é tua relação visual hoje? Hoje e agora! Now!

Buscava, desde que recebi o convite, como encontrar algo novo a dizer sobre este tema. Falando, há dez dias, com meu querido amigo Fabián Fajnwaks por telefone, os dois, como costuma nos acontecer, estávamos com a mesma dificuldade. O que mais se pode dizer do imaginário? Não é a mesma coisa o imaginário e a imagem.
Em intensão podemos dizer que no ensino de Lacan a construção borromeana substitui o estádio do espelho, trata-se do corpo gozante. Disso falaremos em nosso próximo Congresso. Há uma relação entre as imagens e o gozo do corpo falante.
Em extensão, tenho lido e lido. Gerard Wajcman, que sempre leio, publica em Enlaces com assiduidade, admiro o que escreve. É imprescindível ler “O olho absoluto”. Falarei algo sobre ele.
Mas, busquei outros autores: Boris Groys, Hito Steyerl, Roland Barthes, temo que poderia passar meus quinze minutos dizendo nomes da extensa bibliografia. Palavras, palavras que falam das imagens.
No final de semana passado lia a Revista do Jornal La Nación: tudo era sobre as imagens: Rubius no festival de youtubers. Uma recente estreia em Buenos Aires: International Fashion Festival, uma competição de curtas publicitários.
Uma nota sobre Marina Abramovic e suas performances: uma guerreira da arte, era o título da nota. Ela, suponho que vocês a conheçam, trabalha com seu corpo…
Enfim toda a Revista do fim de semana do dia 11 e 12 de abril dedicada às imagens… Deslumbrantes? Nem sempre…
Terei pois, que fazer um recorte que não exceda meu tempo… veremos o que se produz na conversação. Vou me concentrar em Hito Steyerl que segue as linhas do seu principal mentor Harun Farocki.

O museu e a fábrica

Esta artista nascida na Alemanha, de origem japonesa, cita em um dos seus ensaios do livro “Os condenados da tela”[1], o qual recomendo, o filme “A hora dos fornos” de Pino Solanas e Octavio Getino do grupo Cinema Liberación. Filmado em 1968, a autora nos recorda que em toda a projeção era preciso colocar o cartaz “Cada espectador é um covarde ou um traidor”, Tercer Cine[2]. Onde esse filme era exibido? Nas fábricas.
É verdade, dou fé.
Atualmente, os filmes políticos não se exibem em fábricas. Exibem-se no Museu ou em galerias: em espaços de arte. Em qualquer tipo de “Cubo branco”, assim chamados.
Em primeiro lugar, a fábrica quase desapareceu no ocidente, são usadas frequentemente como museus, e filmes políticos se exibem nestas fábricas, que já não são o que eram. Ainda que sejam as mesmas, já não o são.
Antes essas fábricas eram um lugar de trabalho industrial.

Agora as pessoas passam nesses espaços os seus momentos de ócio, de frente para uma tela.
Antes, gente trabalhando em uma fábrica, agora gente trabalhando em casa no computador, ou em seus momentos de ócio, vendo com avidez esses filmes antigos frente à tela da televisão, em um museu.
A Factory (fábrica) de Andy Warhol fez-se realidade.
Está nos quartos, nos dormitórios, nos sonhos, nos afetos e efeitos. No museu como fábrica algo continua se produzindo: instalações, vídeos, etc. Um supermercado da imagem.
Há uma instalação Harun Farocki “Trabalhadores saindo da fábrica” (1995-2006). Instalação esta que toca o real, exibida em vários países, inclusive na Argentina. Nela podem ser vistas as filmagens de trabalhadores saindo da fábrica, em numerosos filmes de diferentes épocas. Mas agora os operários que saem da fábrica vão ao museu. Retornam talvez à mesma fábrica. A fábrica Lumière, que antes produzia filmes fotográficos foi declarada monumento histórico. Tem uma sala de cinema que pode ser contratada por empresas. A publicidade diz “Um local carregado de história e emoção para seus almoços, coquetéis e jantares”.

Os operários que saiam da fábrica em 1895 voltaram a emergir dentro do mesmo espaço, agora são um espetáculo. Pelo menos nos EUA e Europa.
As políticas cinematográficas são pós-representacionais, não pretendem “educar” a multidão: produzem a multidão. O que falta no museu como fábrica? Uma saída. Se a fábrica incessante de produção de imagens não se detém, não há como escapar.
O resultado? Não se trata de imagens deslumbrantes, e sim de imagens pobres. De baixa resolução. Estão desfocadas como o personagem de Woody Allen em “Dirigindo no escuro” (Hollywood ending)[3], ou em “Desconstruindo Harry”[4] cujo protagonista crê ter alguma enfermidade por ver tudo fora de foco, sendo um diretor de cinema! Em um é cego, no outro vê tudo borrado.

Voltemos às imagens pobres. Por que pobres? Porque as formas de consumo tem ido contra as imagens deslumbrantes ou ricas. O cinema se fez quase invisível.

A privatização e a pirataria nos provisionam de cópias pobres que circulam amontoadas no Youtube, muitas obras de cinema vanguardista têm sido ressuscitadas como imagens pobres. Contudo, a aparição do streaming de vídeo – on line (por exemplo Netflix) pode nos prover ainda de imagens ricas ou deslumbrantes, mais ou menos…

Mas são as imagens pobres, também imagens populares, as que circulam por exemplo, no Youtube e expressam as emoções das massas contemporâneas: oportunismo, narcisismo e ao mesmo tempo, absoluta novidade e submissão. Do mesmo modo: intensidade, decisão, distração, mas também paranoia e medo. (Ver Black Mirror)

A foto ou a imagem é “anterior” ao fato como no conto “As babas do diabo”, de Julio Cortázar que Antonioni levou ao cinema como “Blow up”.

Ver-ser visto: O direito à imagem.

Ser visível é a preocupação atual.

Wacjman também se refere a Andy Warhol “Cada um teria no futuro seus quinze minutos de fama”.

É mais do que isso: o narcisismo se eleva à dimensão de arte, o exibicionismo é um esporte de massas ou multidões.

Para viver, para existir, temos de ser vistos. Direito de olhar e direito ao olhar. Estamos em uma civilização do olhar.

Lacan esclareceu a esquize do olho e do olhar. Mas, entre ver e ser visto havia uma solidariedade e ao mesmo tempo uma oposição irreconciliável.

O exemplo de Wajcman é claro: na Inglaterra, a vídeo vigilância permite que, além de exercer seu voyeurismo habitual, uma pessoa sentada em frente à sua televisão possa se ver filmada por uma câmara de vigilância instalada em frente à sua casa, isso porque existem redes de televisão que difundem tais imagens. O espectador da televisão é ao mesmo tempo voyeur e exibicionista.

O mundo é daquilo que se vê e se faz ver.

Também é possível olhar conservando a distância… e isso vale para o adolescente fechado em seu quarto, como para os drones com que o exército de Estados Unidos pode atacar os talibãs do Afeganistão, e o piloto estar a 11.000 quilômetros de Kabul. E, ainda, tudo isso pode ser visto de suas casas se conseguirmos a série “Homeland” ou a mais popular, “House of cards”. É interessante ler “Três notas para introduzir a forma “série”. Enlaces nº 15, artigo de Wajcman.

Wajcman nos dá outro exemplo: ele chama o GPS de “O grande pensador supremo”.

A máquina nos ensina onde ir com sua voz imperativa, nos diz que poderia chamar-se GSM (global sadomasoquismo).

Ao mesmo tempo, o GPS nos diz onde estamos, mas além de nós sabermos, o sistema sabe. O sistema procura guardar a memória de todos os movimentos.

Na Inglaterra não se usam documentos de identificação, a foto da identidade hoje é obsoleta em muitos países. Discutiu-se isso no parlamento e consideram que é um ataque à privacidade do indivíduo!

Mas as câmeras tem controle dos cidadãos o tempo todo. Todos os cidadãos, a todo momento.

Tudo sob controle. Mas, realmente tudo pode estar sob controle?

Onde está o piloto? A tragédia da Germanwings.

Ultimamente existem aviões que desaparecem, começou-se a perder aviões.

Ocorreu com um avião da Air France em 2009, morreram 228 pessoas. Há pouco desapareceram um ou dois aviões da linha aérea da Malásia. Produziu-se aquilo que Wacjman chamou de um efeito “Titanic”. Os aviões desapareceram das telas do radar.

O que não se suportou foi “não ver”. Recordemos Miguel Strogoff de Julio Verne ou o filme “De olhos bem fechados” de Kubrick.

No século XX ninguém viu nada.

Wajman reproduz o roteiro de “Hiroshima, mon amour”:

ELE: Não viste nada em Hiroshima. Nada.

ELA: Vi tudo. Tudo…Vi o hospital. Estou certa.

O hospital existe em Hiroshima. Como poderia não tê-lo visto?

ELE: Não viste nenhum hospital em Hiroshima. Não viste nada em Hiroshima…

O século XX não viu nada. E aquilo que viu, não o viu.

O século XXI quer ter os olhos bem abertos. Isso, nunca mais! E Wajcman acrescenta, a cada dia o mundo dá provas que isso segue ainda e sempre. A cegueira continua de outro modo.

Depois de 11 de setembro, que também não foi visto se aproximando. Eu mesma quando vi o ataque às Torres pela televisão, acreditei que era uma reedição da primeira performance, aquela que Orson Welles fez pelo rádio em 1938: A guerra dos mundos. Pretendi que se tratasse de uma ficção, pelo menos por instantes acreditei nisso.

E o que aconteceu há um mês?! O avião de Germanwings, subsidiaria da Lufthansa, a melhor das companhias aéreas, um orgulho alemão, conste, desconsiderou o fator humano. Não viu que havia um suicida perigoso na cabine transportando 150 passageiros.

A porta fechada para evitar o terrorista que se infiltrou entre os passageiros do 11-S e a frase de Zizek “Bem-vindos ao deserto do real”, também se enfiaram na cabine desta vez.

Fechou-se a porta então, o co-piloto se trancou na cabine e não foi visto, não se pôde ver que este homem, um louco, um megalomaníaco suicida, era o terror dentro da cabine.

Estupor do mundo, alemães, franceses, espanhóis, no fim, o mundo inteiro decidiu que o controle dos pilotos e dos co-pilotos devem ser mais certeiros.

Li um artigo no “La Nación” que dizia que se estava pensando em um avião dirigido por robôs, e que já se pensara em substituir o co-piloto por uma máquina, e talvez poder-se-ia também substituir o piloto.

Os aviões como drones. Para evitar o fator humano. Mas quem comanda os drones?

Um mundo de máquinas onde tudo possa ser visto e controlado.

Não se pode controlar o real.

É absolutamente necessário para um sujeito que o Outro não possa ver tudo.

Será necessário proteger o íntimo …

Cada um encontrará sua solução singular.

Não há solução universal.

Essa possibilidade seria de estremecer, sabemos disso. Assim creio.

O psicanalista deve guiar-se pelo real. Real que as imagens em geral velam. Ainda que, às vezes, as imagens toquem o real.

Tradução do espanhol: Paola Salinas


[1] Alusão a “Los condenados de la tierra” de Fanon.

[2] Movimento latino-americano nos 1960s- 70s, que denuncia o neocolonialismo, o sistema capitalista e o modelo de Hollywood do cinema como mero entretenimento para ganhar dinheiro. O termo foi cunhado no manifesto Hacia un Tercer Cine (Rumo a um Terceiro Cinema), escrito na década de 1960 por cineastas argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, membros do Grupo Cine Liberación e publicado em 1969 na revista Tricontinental cinema pela OSPAAAL (Organização de Solidariedade com o Povo da Ásia, África e América Latina).

[3] Em espanhol: “La mirada de los otros”, o olhar dos outros.

[4] Em espanhol: “Los secretos de Harry”, os segredos de Harry.

“Uma imagem vale mais do que mil palavras” é uma expressão comum que não somente os nativos do mundo digital usariam.

Não ouço vozes

Nem silêncios

Apenas o espetáculo

De fazer amor

Com a morte (1)

À frequente expressão inicial que hoje cobra uma vigência absoluta, responde com palavras a construção poética que, sem dúvida, nos leva à atualização de Miller ao citar Joyce: “a inevitável modalidade do visível” a faz passar na prática analítica por “uma modalidade inevitável do dizível”, sem deixar de precisar que, no final, a imagem seja uma inevitável modalidade do fantasma. (2)

Joyce permite que nos interroguemos sobre a condição de se ter um corpo solto do registro imaginário.

Se seguimos Miller no aspecto de que o imaginário é o corpo, seria preciso dizer que o parlêtre adora seu corpo, e isso porque o Um-corpo é a única consistência do parlêtre, e é o que o ser humano traz para a análise.

Ao Um-corpo como única consistência, Lacan acrescenta que esta consistência é, além do mais, mental, o que quer dizer que não se trata de uma consistência física.

Deste modo, o parlêtre adora seu corpo porque crê que o tem. Em realidade, não o tem, mas seu corpo é a única consistência mental.

Dizer isso é estabelecer que o laço mais estreito com este Um-corpo não é simbólico, mas, antes, imaginário. Disso se desprende a tese de Lacan segundo a qual a adoração do Um-corpo é “a raiz do imaginário”, e o pensamento não faz mais do que transmitir essa adoração.

Miller nos dirá que Lacan faz do pensamento uma potência da ordem do imaginário: “tudo o que pensamos somos obrigados a imaginar. Apenas não pensamos sem palavras”.

O sentido necessita de palavras, mas o que nele tem função de conteúdo é extraído do imaginário do corpo.

O real se encontra nos enredamentos do verdadeiro. Por isso, na análise, o real depende que alguém tenha se esforçado por dizer o verdadeiro, ou seja, que se tenha enredado o suficientemente nele.

No seminário O sinthoma, Lacan oferece uma gênese do sentido nestes termos: o sentido “é aspirado pela imagem do orifício corporal que o emite”; dá uma ideia, então, de um sentido que deve tudo ao imaginário, ao imaginário do corpo, ao qual se opõe o olhar, com sua dinâmica que qualifica de centrífuga. O olhar, de fato, se derrama, abre o espaço “fora de”.

Logo, deve-se entender o sentido ao contrário do olhar, e este depende de um orifício de dinâmica centrípeta. Volta-se a tragar o sentido depois de tê-lo emitido, e isso aponta para a noção de que o olho tem uma visão instantânea do espaço, e que o espaço procede também com esta dinâmica centrífuga instantânea. Daí advém a ideia de que o espaço é imaginário, de que o espaço é o espaço da imagem. Mas pode-se observar que o espaço também cavalga entre o imaginário e o simbólico, entre a construção verbal e a elaboração visual.

Lacan tentará, até o final de seu ensino, elaborar um modo de pensamento separado do imaginário, um pensamento que não esteja baseado na elaboração do Um-corpo, mas, sim, emparelhado com a escritura, com a ideia de que isso permitiria alcançar o real, e alcançar o real não é alcançar o verdadeiro, este real com o qual lidamos, que se anima com os enredamentos do verdadeiro. (3)


1- CINO A., Maritza. Poesía Reunida. Guayaquil: Casa de la Cultura Ecuatoriana, 2013.

2- MILLER, J.-A. Elucidación de Lacan; La imagen reina. Buenos Aires: Paidós, 1998.

3- MILLER, J.-A. Un-cuerpo. In: El ultimísimo Lacan. Cap. VII. Buenos Aires:Paidós, 2012.

Tradução para o português: Adriano Messias

Uma imagem vale mais do que mil palavras, como diz o ditado usado frequentemente no campo da publicidade, o que indica, tal como articula Lacan, que é a economia que funda o valor[1], dizendo, de passagem, que é uma prática sem valor o que se trataria de instituir para os psicanalistas. A imagem assim evocada faz parte do discurso capitalista, e, como todo discurso, tem um efeito de sugestão: é hipnótico, ressoa no sentido, de onde advém sua marca, sua operacionalidade. Por outro lado, o inconsciente é isso, diz Lacan: “aprendeu-se a falar e, devido a isso, alguém se deixou sugerir pela linguagem por todo tipo de coisas”.

Uma certa tendência de se pensar que a imagem não engana, que não se presta a mal-entendidos, que é garantia de todo dado real, é um blefe que, de fato, tem sucesso nos meios de informação: introduzir a imagem entre as palavras, suave ou bruscamente, tentando-se produzir um efeito de verdade, evoca a tentativa de se escamotear a aliança da imagem com o dormir, e ela é apresentada como aquilo que diz: “acorde!”. Escutamos, no mesmo sentido, dizer-se ao sujeito que venha nos ver com a prova rainha em suas mãos, o que dá sustentação e firmeza a seus brios: “não me contaram, eu vi!”. Instante de ver que se erige airoso, que determina o sentido, e que pretende deixar a pretensa liberdade de quem vê a imagem, a compreensão e a conclusão. Mas, daí, nada; a cartilha já está dada, já se julgou a partida de antemão. A imagem, assim concebida, é uma imagem dotada de corpo, de gozo, de alma, e ainda de um estático brilho. Atribui-se a ela uma história, um antes, um depois, e esta se torna animada com o sopro do movimento, convertido em evocação.

Certamente, a dimensão de sugestão à qual Lacan alude não está dada para o sujeito autista. Não há valor da imagem. Nada de Outro. Para ele, uma imagem não diz nada em troca de outra coisa (de mil palavras, por exemplo), não substitui nada, simplesmente é; de tal maneira, que a célebre autista Temple Grandin diz em Pensar con imágenesPensar com imagens[2][3] (título de seu livro mais famoso): “Quando não posso converter o texto em imagens, costuma ser porque o texto não tem um significado concreto”[4]. Assim estabelecido, a conversão da qual se trata não é uma transformação, não há um pano de fundo, nem uma cartilha, nem dois níveis em jogo; aqui, o suporte e o material são a mesma coisa (que é o contrário de se pensar a letra como suporte material do significante). Encontramos também o caminho que Naoki Higashida, o garoto autista japonês, autor do belo e inspirador livro La razón por la que salto[5]O que me faz pular[6], assinala: “as letras, os símbolos e os signos são meus melhores aliados, porque nunca mudam. Ficam como estão, e se fixam em minha memória. Com minhas letras não me sinto sozinho[7]. E acrescenta: “esta simplicidade, esta claridade, nos é reconfortante”[8]

É claro que os tratamentos para o autismo que promovem o uso indiscriminado dos pictogramas como único elemento de comunicação eficaz são baseados na observação deste aspecto de interesse, de pregnância que a imagem pode ter para um sujeito autista; entretanto, o próprio Naomi adverte, e é preciso escutá-lo: “… pode ser que alguns autistas pareçam mais felizes com imagens e diagramas, de onde se supõe onde deva estar em cada momento, mas, de fato, isso acaba nos limitando. Faz-nos sentir como robôs que têm cada uma de suas ações pré-programadas” (p. 56). É claro que o uso dos pictogramas como meio de comunicação para o sujeito autista, como via que conduz a uma intenção comunicativa, cobra, na medida em que se pretende universal, o valor do discurso. De onde provém sua enunciação, e esta é, com efeito, a marca indelével do Outro. Por isso, para o autista, “a vida em si mesma é uma batalha”, conclui Naomi.

Tradução do espanhol: Adriano Messias


[1] LACAN, J. L’Insu… Sem24 1976-1977. p. 43 (ed. inédita).

[2] GRANDIN, Temple. Pensar con imágenes. Mi vida con el autismo. Alba Editorial: Barcelona, 2011.

[3] No original, Thinking in pictures. (N.T.)

[4] Pág. 37

[5] HIGASHIDA, Naoki. La razón por la que salto. Roca Editorial: Barcelona, 1ª edição, abril de 2014.

[6] HIGASHIDA, Naoki. O que me faz pular. São Paulo: Intrínseca, 2014. (N.T.)

[7] Ibid. p. 26.

[8] P. 42.

A exemplo da prática clínica que nos ensina sobre os sintomas contemporâneos, a partir do afetamento dos sujeitos pelo imperativo das imagens, a arte também nos ensina sobre os efeitos das imagens no corpo. As imagens contemporâneas em sua avalanche midiática e imperativa nos leva, cada vez mais, a refletir sobre o “vasto oceano do registro imaginário”[1]. O poder da imagem se manifesta hoje desde a televisão, onde a imagem passa por frações de segundos e se processa em um contínuo, o telejornal se mistura com o anúncio de sabão em pó, que por sua vez se confunde com a transmissão de futebol, – até chegar à internet com a pulverização das imagens fakes.

William John Thomas Mitchell[2], crítico de arte norte- americano, e editor do Critical Inquiry, em seu livro Iconology, ao questionar o valor da imagem, faz uma distinção muito precisa entre image picture , distinção que não costumamos fazer na língua portuguesa uma vez que usamos a palavra “imagem” de forma ampla. Ele a situa da seguinte forma: você pode dependurar uma picture, mas não pode dependurar uma image. Pareceu-nos bastante interessante o fato deste pensador do campo das artes, influenciado por Marx e Freud, separar a imagem da ordem do visível, como um objeto do mundo, da imagem que é da ordem da invisibilidade, fora do campo da representação. Esse apontamento diferencial embora não esteja fundamentado na concepção lacaniana do imaginário recorta aquilo que da imagem escapa à produção de clichês, questão que o olhar como objeto desvela. É no ponto onde as imagens contemporâneas estão integradas ao sistema de produção de clichês que a arte vem justamente cavar um vazio. Como sabemos a arte, assim como a psicanálise, permite um acesso ao real pela via do objeto. O real em jogo no objeto pulsional, o real do gozo, como afirma Miller[3], não é da ordem de um objeto do mundo, não é um objeto da representação.

A francesa Sophie Calle, artista conceitual e performer, em sua exposição Pour la dernière et pour la première fois[4] , no Museu de Arte Contemporânea de Montreal (2015), há dois meses atrás, reuniu dois de seus mais recentes projetos: La Dernière Image (2010), uma série de fotografias, acompanhadas por textos e Voir la mer (2011), um conjunto de filmes digitais (2010), que questionam a relação do sujeito com a imagem, onde a imagem é tratada a partir da linguagem, ou seja, com aquilo que lhe escapa. Esses dois trabalhos encontram particular ressonância na era da produção e consumo de imagens, entre o excesso e a falta delas, e realizam uma reflexão poética sobre a cegueira em sua articulação com a beleza e o sublime. Esses trabalhos ganham relevância na medida em que uma imagem só pode evocar o inexprimível ou o indizível se ela estiver atrelada ao universo simbólico da linguagem.

A pesquisa que precedeu os dois trabalhos de Sophie Calle foi iniciada há aproximadamente trinta anos com o projeto Les Aveugles (1986), onde a artista faz uma exploração da problemática da cegueira a partir de seu caráter traumático e testemunhal. A artista realiza essa pesquisa a partir de um inventário dos efeitos, não unicamente metafóricos, mas sim aqueles que recaem sobre a experiência do corpo. Sophie Calle solicita a um grupo de pessoas cegas que lhe responda qual seria, para cada uma delas, a imagem da beleza. Alguém que não havia nascido cego, mas que ficou cego, responde-lhe: “La plus belle chose que j’ai vue c’est la mer, la mer à perte de vue” – frase escolhida para ser o primeiro depoimento do livro Aveugles, de leitura braille; já outro, cego desde a nascença, afirma: “La mer, je l’imagine belle, belle au-delà de la description qu’on m’en faite. J’aurais tendance à aimer le bleu à cause d’elle“[5]. Em 1991, na obra La Couleur Aveugle, Calle trata a cegueira total, confrontando os relatos dos cegos com textos sobre a monocromia de Borges, Klein, Malevich, Manzoni, e Rauschenberg.

Em La Dernière Image (2010), o primeiro projeto apresentado na exposição Pour la dernière et pour la première fois, no Museu de Arte Contemporânea de Montreal, a artista viaja para Istambul e lá, a partir da conversa com pessoas que haviam perdido a visão repentinamente, pede a cada uma, para descrever a última coisa que haviam visto antes de perder a visão. Os vários testemunhos são acompanhados de fotografias que sugerem a última visualização, recriadas pela artista.

Em Voir la mer (2011), segundo projeto da exposição, que contou com a participação de Caroline Champetier, colaboradora, entre muitos, de Jean Luc-Godard e Philippe Garrel, há uma série de vídeos com sujeitos cegos, que aparecem voltados de costas para o espectador, frente ao mar, sob o som incessante das ondas. Em um dado momento cada um dos sujeitos se volta, à sua vez, para o espectador, mostrando o quanto foram afetados por essa experiência. Todas estas pessoas desprovidas da visão, filmadas pela artista, conhecidas por ela, no interior da Turquia, nunca tinham visto o mar.

La Dernière Image e Voir la mer , ao criarem imagens do invisível, apresentam-se como uma resposta a impregnação das imagens uniformemente aceleradas e sem espessura do império das imagens de nossa época. Esses trabalhos revelam que, se de fato as imagens tem um poder perturbador, é porque elas estão enlaçadas às significações que cada cadeia significante introduz no corpo.

Ao final do vídeo Voir la mer a artista apaga as imagens através de um fade gigantesco, branco, e escreve o vazio no espaço da galeria. Não é sem consequências que Lacan, em 1975, tenha salientado que a boa maneira de inscrever o corpo seria referindo-o ao conjunto vazio. Conjunto vazio, que a arte pode suscitar ao permitir “elaborar uma estrutura em que os significantes possam repetir a diferença a respeito dele”[6].


[1]Bassols, M. O império das imagens e o gozo do corpo falante. Enapol. 2015.

[2]Mitchell, W. Iconology: Image, Text, Ideology. Chicago: U. of Chicago P, 1986.

[3] Miller, J. A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 71.

[4] http://www.macm.org/expositions/sophie-calle-pour-la-derniere-et-pour-la-premiere-fois/

[5] Depoimentos de cegos de nascença: Calle, Sophie, Aveugles. Verona: Edição Actes Sud, 2011, p.17

[6]  Miller, J. A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013., p. 70

A vergonha, como diz Miller em sua “Nota sobre a vergonha”, é um afeto primário da relação com o Outro, um Outro primordial que não julga, mas vê ou se faz ver. A vergonha aparece como efeito da repressão que proíbe o gozo da exibição.

Assim como no sonho é a repressão que põe limite ao gozo, na vigília é a vergonha que demarca o gozo.

É por isso que a nudez provoca vergonha: porque é Outro quem olha provocando com esse olhar vergonha no sujeito por seu gozo.

No século XXI, caracterizado pelo Outro que não existe, entre o olhar e a vergonha não há relação, há um corte.

Portanto, em nossos dias, encontramo-nos com a impunidade generalizada do olhar televisivo, o mesmo que encontramos nas redes sociais (Facebook, Twitter): olhar que não julga, mas vê o que se faz ver.

O que acontece nesses sites? Neles, os sujeitos fazem ver o seu gozo com ausência de vergonha. Sem – vergonha, a TV de hoje é um reality show. Nela há hoje um empuxo a dizer tudo e a mostrar tudo.

Então, o que existe, e cito textualmente Miller “é um olhar castrado de seu poder de envergonhar”. Este sem – vergonha permite que se instale como valor supremo o “primeiro viver”, onde o sujeito deixa de ser representado por um significante mestre.

Porém, esse olhar dos reality, das redes sociais, não é somente um olhar que não envergonha, é, além disso, um olhar que goza. Não existe Outro que olha senão outro sujeito, um semelhante que olha e goza.

Por conseguinte, goza o que se exibe e goza o que olha. Nesta época do império das imagens, da sem-vergonhice, da sociedade do espetáculo, existe um chamado, um empuxo ao gozo do olhar.


Bibliografia:

Miller, J.-A. “Nota sobre la vergüenza”, Freudiana # 39, Paidós.

Márquez Victoria, “La vergüenza ha muerto”, Enlaces # 14, ICBA.

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

Na programação de um canal de TV aberta no Peru existe um programa que, durante muitos anos, foi o de maior audiência. Tinha um formato no qual a apresentadora mostrava o que ela chamava de o “acusado”, quer dizer, vídeos de personagens da vida pública do país, especialmente do espetáculo, esportistas e, às vezes, políticos em situações comprometedoras, especialmente cenas sexuais ou consumindo alguma substância tóxica.

De sua tribuna televisiva coloca-se no lugar de um olho omnividente, que tudo vê para sancionar, controlar e ter uma suposta vigilância da moral social, uma vez que com seus comentários alimenta a morbidade do telespectador. Por outro lado, e a partir do imaginário do corpo, a apresentadora do programa, ao passar do tempo, realizou uma série de intervenções drásticas no corpo com a finalidade de conseguir ter, para o olho do Outro, uma “figura” atraente, a tal ponto que poderíamos dizer que seria muito difícil reconhecê-la.

Muitos personagens públicos, a partir da difusão dos vídeos, se viram envolvidos em escândalos, estando na primeira página da imprensa amarela e na boca de um bom número de peruanos. É claro que muitos deles, mesmo que se coloquem no lugar de vítimas, utilizam desse meio para ter publicidade constante e assegurada.

Por sua vez, tinha um sistema muito efetivo. Na realidade a maioria dos peruanos trabalhavam para ela, pois se alguém lhe enviava algum dado cujo resultado acabava sendo uma notícia de impacto, porque mostrava cenas que alimentavam a morbidade peruana, recebia uma “substancial” compensação econômica. Mais de 8 milhões de olhos peruanos prontos a colaborar com ela, não só como cúmplices informantes, mas, principalmente, como parte de seu auditório.

Este é um exemplo como outros onde o campo visual fica enquadrado pelo que poderíamos chamar hoje em dia “o espetáculo do mundo”, constituindo-se uma fonte de gozo, a escopia corporal funciona como provocação a um gozo destinado a saciar-se na modalidade do mais-de-gozar. O mundo é “omnivoyeur”, dizia Lacan[2], porém devemos acrescentar que tornou-se também exibicionista, obsceno, isto é, que se dá a ver, excita o olhar e esse se dar a ver apaga as barreiras entre o público e o privado.

Vivemos em uma época na qual o imaginário ocupa o primeiro plano. É o corpo que, de entrada, se introduz como imagem. Corpo imaginário onde as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório com o modelo da unidade do corpo. E é através de sua imagem que o corpo participa pela primeira vez na economia do gozo.

O visual se incrustou na cena social de forma relevante. No “omnivoyeur” podemos reunir a tecnociência e o discurso capitalista, onde o olho omnividente está a serviço do controle e da vigilância.

O olhar absoluto é o olhar não marcado pelo registro do simbólico, é o olhar do Outro que se faz presente em todos os lugares, irrompe do invisível na ordem do visível, aparecendo em uma dimensão de Unheimlich, o estranho, o sinistro, invadindo o quadro da realidade do sujeito e produzindo seu desvanecimento.

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista


[1] Acusado! [Ampay] Termo do jargão popular (e de jogos de esconder) que faz referência à ação de encontrar alguém realizando atos proibidos, imorais e que, certamente, não deseja ser descoberto.

[2] Lacan. J, O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, JZE,

1985, p. 83.