Tomando como referência o título do VII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) – O império das imagens – pareceu-me importante elucidar o que concebemos como “império” e como “imagens”. Apresentarei, aqui, algumas notas de um trabalho ainda em curso, considerando que estamos nos preparando para esse evento. Assim, é oportuno que este texto seja o desdobramento de uma atividade realizada no Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade (CLIN-a), um dos Institutos do Campo Freudiano em São Paulo, porque esse seu ponto de partida me permitiu aproximar do tema abordado como eu faço geralmente em uma aula, ou seja, muito mais por uma apresentação de referências, argumentos e princípios de elaboração que de um trabalho propriamente concluído. Assim, vou desenvolver algumas referências que venho estudando, hipóteses que tenho formulado, investigado e que gostaria de compartilhar com outros interessados nesse tema do “império” e das “imagens”, mas destaco que ainda me encontro, digamos assim, em um momento de construção ou, como demarca uma expressão inglesa, trata-se de um work in progress, de um “trabalho em andamento”.

Nova ordem mundial da segregação

Meu ponto de partida para elucidar o que seria o termo “império” é uma passagem de Lacan que encontra no escrito intitulado “Alocução sobre as psicoses da Criança”[1], apresentado em 1967 em uma Jornada sobre psicose infantil organizada por Maud Mannoni que, à época, ainda partilhava uma proximidade com Lacan. Destaco-lhes que esteve também presente, nesse evento, David Cooper, o célebre antipsiquiatra cuja prática se concentrou na Inglaterra e Jean Oury, um dos principais sustentáculos da não menos contestadora experiência de La Borde com a loucura. Lacan começa com uma discussão sobre a loucura e a liberdade e, por isso, lembro-lhes que David Cooper e Jean Oury estavam naquela Jornada[2]. A data dessa alocução e seu tema também nos permitem uma menção ao que será maio de 1968, uma vez que Lacan a inicia com o tema da liberdade. Nesse contexto, ele diz que o progresso da ciência implicava um questionamento das estruturas sociais e que isso era vivido como alguma coisa absolutamente nova e surpreendente.

Sustentaria, portanto, que há algo da subjetividade da época do final da década de 1960 que, além de se consolidar, vai se radicalizar, quando consideramos o que se passa em nos nossos dias. Afinal, é interessante observar também que enquanto àquela época vivia-se a discussão, o “questionamento das estruturas sociais” como uma demonstração do que seria a liberdade, Lacan dizia, nessa mesma ocasião, que esse tipo de questionamento acabava por nos confrontar, ”tão longe quanto nosso universo se estender”[3] (ou seja: até hoje e ainda no futuro que temos pela frente) com a segregação. Então, temos um paradoxo, e com ele Lacan apresenta certa dissonância em relação ao nosso ainda atual entusiasmo pela liberdade: questionamos as estruturas sociais como um modo de experimentar que somos livres, mas esse questionamento nos conduz também à segregação que não é propriamente compatível com o que concebemos, experimentamos e aspiramos como liberdade. Porém, essa articulação que Lacan faz entre o avanço da ciência, o “questionamento das estruturas sociais” e a expansão planetária da segregação não implica, de sua parte, nem da orientação psicanalítica por ele sustentada, um posicionamento conservador em defesa de uma ordem que já não existiria mais – trata-se de uma interpretação quanto ao que, hoje até mais que em 1967, se apresenta como sintoma na cultura.

É ao explicitar essa referência à segregação, que serão introduzidos os termos “império” e “imperialismos”[4]. Recordo-lhes que terminológica e politicamente “imperialismo” tinha uma presença muito maior que “império”, no final da década de 1960 e ao longo de toda a década seguinte. Hoje, como demonstrarei mais adiante, se tomarmos como parâmetros o que se discute e se mobiliza como “globalização”, é justo o contrário, especialmente se levarmos em conta proposições de dois autores contemporâneos com os quais vou também trabalhar aqui. Mas, atendo-me ainda apenas à alocução de Lacan, a citação do termo “império” aparece efetivamente na seguinte passagem:

“os homens se engajam em um tempo que é chamado de ‘planetário’, onde eles vão ser informados de alguma coisa que surgiu de uma antiga ordem social, que eu simbolizaria pelo Império, tal como sua sombra se perfilou por muito tempo, em uma grande civilização”[5].

Certamente, essa alusão ao “Império” está associada à Roma na Antiguidade e, nesse “tempo” já qualificável, em 1967, como “planetário”, assistiríamos à destruição de uma “ordem social” ainda norteada por uma tal concepção imperial, bem como à sua substituição por algo bem diferente, e que não teria de modo algum, segundo Lacan, o mesmo sentido: no lugar do “Império”, aparecem “os imperialismos”.

Para os “imperialismos”, segundo Lacan, o que importa é a seguinte questão: “como fazer para que as massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não somente geográfico, mas ocasionalmente familiar, permaneçam separadas?”[6]. Portanto, os “imperialismos” visariam promover a separação das massas humanas tanto no âmbito geográfico quanto no âmbito familiar e me parece possível dizer que essa separação, ou seja, essa segregação, é o que, em suas diferenças e multiplicidades, os define. Mas, e o “Império”? Embora não tenhamos exatamente uma definição do que é esse termo para Lacan, parece-me possível sustentar que, por relacioná-lo ao Império Romano, a questão é bem diferente. Afinal, esse Império, na Antiguidade, pôde se estender preservando, nos diferentes povos que dominou, a referência a esse Um que era Roma: a unificação das massas humanas, mesmo com a manutenção de suas diferentes línguas, seus variados costumes, suas diversas formas de vida, se realizava em torno de Roma. Em outras palavras: se Roma se destacou como uma referência para “Império”, é porque pôde manter um equilíbrio entre a diversidade dos povos dominados e a unidade sustentada pelo que era considerado “romano”. Por exemplo, quando visitamos ainda hoje as ruínas do Império Romano, podemos constatar como os deuses locais, específicos de cada povo dominado, eram integrados ao panteão romano e, no culto ao imperador romano, essa multiplicidade era orquestrada. Ora, o que selava a célebre ordem imperial romana não era justamente esse respeito por alguma diferença entre os povos dominados por Roma? Não estaria nesse acolhimento de diferentes deuses em um mesmo panteão a manutenção de um amor por Roma?

Esse acolhimento do múltiplo no Um é, em um belo romance em que Pablo Montoya reconstrói o exílio de Ovídio – Lejos de Roma (Longe de Roma), também o que esse célebre poeta da antiguidade romana vai apresentar a uma questão que lhe coloca Emilia, nascida em Éfeso e com um pai cuja proveniência da Capadócia não o impediu de se romanizar “graças a seu ir-e-vir como comerciante pelo Império”[7]. A questão de Emilia, que não deixa de reverberar o que ela recebe como herança paterna, se coloca assim: “O que é ser romano?”[8]. A resposta de Ovídio, mesmo como um proscrito, um segregado de Roma, é exemplar para uma elucidação sobre o modo como o Um do Império romano se armava com o múltiplo de suas próprias conquistas e de sua própria extensão:

“Roma é Pérsia…, é Egito, é Lusitânia, é Mauritânia, e ser romano é ser de todas as partes, pelo menos daquelas onde a humanidade e a civilização são a expressão de um abraço mais ou menos afortunado. Roma é teu nome e os traços de teu corpo. Roma é teres nascido em uma das províncias da Ásia e poder falar em latim comigo… Ser romano… é sobretudo saber que o latim é a morada em que se pensa, se sente e se sonha. Daí, nossas pretensões de sermos tão cultos como os gregos, ou tão misteriosos como os egípcios, ou tão hospitaleiros como os persas”[9].

Não é que em Roma a segregação estivesse ausente (o próprio exílio de Ovídio pelo Imperador Augusto nos mostra justo o contrário), mas, segundo Lacan, ela se radicaliza, muitos séculos depois, com os chamados “imperialismos”, uma vez que nestes últimos o Um se fragmenta e a dominação se faz com a imposição de um “padrão” que descaracteriza as diferenças entre os povos dominados: no “imperialismo yankee”, por exemplo, todos se guiariam pelo american way of life – a variedades das línguas, as diversidades religiosas, entre outras diferenças, podiam até ser mantidas localmente, em cada país dominado, mas não no panteão do dominador e era deste último que emanava um modo de vida a ser experimentado por todos. Assim, um país dominado pelo “imperialismo yankee” passava adotar a cultura por ele propagada, mas o dominador – ao contrário do que o Ovídio recriado por Montoya responde à Emilia – jamais se dirá, como relação a algumas de suas próprias características, que contém ou admira um traço sequer do país dominado.

Um contraponto atual

Considero importante, hoje, ao abordar o termo “Império”, levar em conta o livro homônimo publicado, em 2000, por Hardt e Negri[10]. Ele pode ser lido, a meu ver, como um contraponto ao que pude encontrar em Lacan porque seus autores sustentam que estaríamos vivendo o fim dos “imperialismos” e um retorno ao “Império”, enquanto que a posição de Lacan, em 1967 (mas que, conforme procurarei demonstrar, me parece ainda atual), era justo o inverso.

Hardt e Negri, já no Prefácio do livro, afirmam que o processo de globalização de trocas econômicas e culturais envolve um “mercado global” e “circuitos globais de produção”, criando “uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando”, “uma nova supremacia” das quais “o império é a substância”[11]. Verificamos, assim, uma diminuição gradual da soberania dos Estados-nação porque, embora eles sejam ainda eficientes, cada vez mais “os fatores primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens –” se sobrepõem às fronteiras nacionais, diminuindo o poder do Estado-nação de lhes regular os fluxos e exercer uma “autoridade sobre a economia”[12]. A crescente valorização do mais amplo G20 (grupo das 19 maiores economias mundiais e da União Europeia) frente ao seleto G7 (grupo formado pelas consideradas sete nações mais ricas do mundo ­­– Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Império Britânico, Itália e Japão), a proeminência dos chamados BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no cenário mundial, bem como a força da internet na difusão de notícias, costumes, atitudes ou os modos como o que acontece na Bolsa de um país asiático e o aquecimento do planeta afetam a economia mundial a ponto de redes transnacionais serem criadas para se buscar soluções mostram-nos como isso que, reunindo dois termos utilizados por Hardt e Negri, chamarei de substância-Império se imiscui por todo o planeta sem se deixar localizar especificamente em um único Estado-nação ou país, sem emanar de um mesmo ponto ou de um centro.

Esse assolamento dos Estados-nação pela substância-Império – que os mobiliza, ultrapassa e ao mesmo tempo é por eles preservada e propulsada – permite a Hardt e Negri atribuírem ao termo “Império” um valor determinante para se apreender o que está em jogo hoje no mundo. Essa valorização os fazem descartar o termo “imperialismo” porque este último se consolida, nos dois últimos séculos, com a extensão dos Estados-nação. Assim, entre os séculos XVI a XVIII, o mapa-múndi era colorido de acordo com a colonização promovida por cada país-imperialista – a dominação britânica era indicada em vermelho; a francesa, em azul; a portuguesa, em verde e, assim, a cada “imperialismo”, correspondia uma cor básica. Com a extensão dos Estados-nação ao longo do século XIX e em boa parte do século XX, os “imperialismos” passam a se impor para além de suas fronteiras. Assim, o que na década de 1960 e 1970 era chamado de “imperialismo yankee” não se circunscrevia apenas aos países nos quais os Estados Unidos da América exerciam um domínio político, militar, econômico e cultural: ele se difundia através de filmes, costumes, ideais, políticas e a todo e qualquer outro produto made in America consumido para além das fronteiras norte-americanas. Nesse mesmo viés, especialmente a partir da segunda metade do século XX, a dominação colonialista, ainda tributária dos chamados Estados-nação, desaparece progressivamente do mapa-múndi, evidenciando assim, para Hardt e Negri, senão o fim, certamente a decadência e a fragilização dos “imperialismos” em nossa atualidade.

A preferência de Hardt e Negri pelo termo “Império” se vale de seu conceito e, por isso, mesmo que sua propagação hoje implique semelhanças entre a ordem mundial atual e os Impérios Romano, Chinês e Americano, interessa-lhes muito mais destacar e trabalhar com o “conceito” de império: ausência de fronteiras espaciais e temporais; exercício de um poder ilimitado no espaço e no tempo, funcionando em todos os estratos da vida social; governo de todo o mundo dito “civilizado”, de modo a administrar não apenas “um território com sua população”, mas também “o próprio mundo que ele [o império] cria”; além da regulação das “interações humanas”, é decisivo “reger diretamente a natureza humana”; mesmo que a prática do “Império” se faça continuamente com o derramamento de sangue, o “império”, como conceito, “é sempre dedicado à paz – uma paz perpétua e universal, fora da História”[13].

Nesse contexto, o que prefigura a disseminação da substância-Império na nossa atualidade ou, nos termos de Hardt e Negri, o que “faz avançar a transição para um sistema propriamente global” no qual se veicula tal substância é a Organização das Nações Unidas (ONU)[14]. Essa prefiguração não deixa de implicar um contrassenso na medida em que, do ponto de vista de sua missão e de seus propósitos oficiais, a ONU não teria qualquer pretensão imperial, tampouco seria imperialista, mas, se ela for apreendida, como almejam Hardt e Negri, sob a ótica das características do “conceito” de “Império”, será mais fácil discernir o que os levam a situá-la como uma prefiguração do que hoje é o “Império”. Afinal, a ONU resulta de uma crise da ordem internacional, tal como se pôde constatar, por exemplo, com o fracasso da Liga das Nações frente ao advento da Segunda Guerra Mundial. Ela visa promover, então, uma “ordem global”, “supranacional”, uma validação “do direito acima do Estado-nação”, permitindo ao “conceito jurídico de Império… ganhar forma”[15]. Ainda assim, para Hardt e Negri, mesmo sendo uma transição para essa nova ordem mundial que é o Império, a ONU não consegue efetivamente acompanhar “o ritmo acelerado, a violência e a necessidade” com que esse “novo paradigma imperial funciona”[16]: o “Império” radicaliza e pode mesmo contrariar a ONU que o prefiguraria.

A concepção atual do “Império”, segundo Hardt e Negri, comporta um “novo paradigma” porque coloca em cena “uma nova noção de direito…, um novo registro de autoridade e um projeto original de produção de normas e de instrumentos legais de coerção que fazem valer contratos e resolvem conflitos”[17], uma “garantia de justiça para todos”[18], “um permanente estado de emergência e exceção, justificado pelo apelo a valores essenciais de justiça” de modo que mesmo “o direito de polícia” torna-se “legitimado por valores universais”[19]. Mas a força atual do “Império” não está dissociada da sua própria corrupção: não há mais propriamente uma “ascensão” e depois um “declínio” ou uma “queda” – “o Império nasce e se revela como crise”[20], e crise, portanto, que se trata de concomitantemente administrar e fazer proliferar, manejar e manter, combater e insuflar, conforme se processam suas ações nesse novo mundo globalizado. O “Império” descrito por Hardt e Negri em 2000 se vale, então, insistentemente do que Miller e Laurent localizaram, cerca de dois anos antes, em 1998-1999, como a proliferação dos “comitês de ética” em um mundo do “Outro que não existe”[21].

Mas por que – mesmo considerando o esforço político-intelectual de Hardt e Negri – me parece mais instigante manter e atualizar a proposição de Lacan sobre a substituição do “Império” pelos “imperialismos”? A meu ver, se Hardt e Negri criticam a insuficiência do termo “imperialismo” para dar conta do que hoje se impõe como “Império”, é porque eles se baseiam na fragilização atual de muitos “Estados-nação” que histórica, política e economicamente dominavam e devastavam, sem dúvida, o mundo com seus respectivos “imperialismos”. Em outros termos, a globalização enfraquece de modo bastante considerável o poder imperialista de um Estado-nação porque, sobretudo nas três últimas décadas, o que um país, por exemplo, faz ou deixa de fazer em outro país pode afetar não apenas essas duas nações, mas todo o planeta. Porém, as concepções lacanianas de “império” e de “imperialismo”, embora evoquem e mesmo joguem com as acepções político-sociais desses termos, se valem ou nos convidam a tomá-los muito mais em uma dimensão que eu qualificaria de “pulsional”.

É essa dimensão pulsional que, a meu ver, faz Lacan localizar como orientação dos “imperialismos” manter separadas as massas humanas destinadas, segundo ele mesmo ressalta, a um mesmo espaço não apenas geográfico, mas também familiar. Como corolário, considero possível estimar que, em uma ordem social pautada pelo que Lacan, evocando Roma Antiga, chama de “Império”, não havia esse esforço para separar as massas geográfica e familiarmente. Portanto, mesmo com todo o banho de sangue que perpassou a instauração, a manutenção e a queda do Império Romano, este não deixava de se pautar no que eu chamaria de amor ao pai, ou seja, em um investimento pulsional no que Roma simbolizava e irradiava. Daí, por exemplo, essa tendência imperial romana de incluir, em um único panteão, mas mantendo suas diversidades, os deuses de outros povos cujos territórios foram anexados a tal Império. Ora, com a ascensão dos “imperialismos” e a destruição de uma ordem social que ainda se valia desse amor ao pai bastante destacado desde o Império romano, intensifica-se o interesse de que as massas humanas sejam separadas não apenas geograficamente, mas ainda no espaço familiar. Considero que esse tipo de separação é uma das modalidades do que Lacan chamou de “segregação”, ou seja, desse processo que, como vimos, se recrudesce com “questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência”[22].

Sem dúvida, a segregação já existia em um mundo enredado no amor ao pai, mas ela tendia a se realizar bem alhures, nesse mundo Outro onde os romanos, por exemplo, situavam os “bárbaros” ou, nos limites do Império Romano, na presença cotidiana dos “escravos” ou dos “exilados” que também não deixavam de ser, no mundo dito “civilizado”, a presença da “barbárie”. Porém, com o declínio do amor ao pai como um regulador da ordem social, com o progresso da ciência e com o questionamento das estruturas sociais, a segregação se intensifica, se expande, se pluraliza, passando a se instalar na própria intimidade das famílias: o estranho se imiscui no espaço familiar, mas não é apenas, como nos tempos de Freud, privilégio do que se apresenta pontualmente no espaço noturno dos sonhos ou nos contos soturnos de um Hoffmann – o estranho é interpolado ao familiar em escala planetária.

Não é sem razão, portanto, que Lacan, em um pronunciamento voltado para as psicoses da infância, vai articular questionamento das estruturas sociais, avanço da ciência, liberdade, segregação e loucura: a liberdade do psicótico perante o amor ao pai o torna um alvo privilegiado dos processos segregativos – o laço social lhe é uma impostura e, assim, um psicótico tanto pode se isolar do que a trama social enreda, não encontrando, como se diz, um “lugar no mundo”, quanto se identificar tão tenazmente a uma função social que faz dela “o” mundo sem o qual sua vida desaba e, seja nessa posição de isolamento, seja nessa identificação[23], um psicótico pode ainda ser apresentado como aquele do qual muitas vezes se prefere tomar a maior distância, inclusive no âmbito da sua própria família.

Os “imperialismos” substituiriam o “Império”, na perspectiva lacaniana, não apenas porque alguns Estados-nação se consolidariam como referências históricas, econômicas e políticas. Essa substituição se faz porque o mundo deixa de ser ordenado pelo amor ao pai, favorecendo com que, no circuito mesmo da intimidade familiar, seja alojada toda uma série de estranhezas que, para a ordenação da vida social, devem ser segregadas. Se, em 1967, a referência de Lacan para ressaltar a trama inquietante entre liberdade, avanço do ciência e segregação era ainda a loucura, estimo que hoje, por exemplo, no progressivo aumento de crianças medicadas com Ritalina e diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), temos uma amostra de como se radicalizou, inclusive com o apoio e a busca dos próprios familiares, esse interesse de se manter as massas separadas no espaço mesmo das famílias.

Quanto à substituição do “Império” pelos “imperialismos”, destacada por Lacan, será que ela exigiríamos excluir a referência ao “Império” ou que tomássemos este último unicamente como correlato do amor ao pai? Sustento que podemos, com Lacan e o que nos ensina a experiência analítica, manter o termo “Império”, assim como atualizá-lo, para além dessa referência ao pai, juntamente com o que esse psicanalista vislumbrou, já em 1967, a propósito do termo “imperialismo”. Vimos que Hardt e Negri consideram o “Império” como a “substância” do que hoje se apresenta como uma ordem concomitantemente globalizada, múltipla e dispersiva. Esse termo “substância” me parece então usado por eles em uma acepção filosófica: é o que define, o que é invariante, sempre presente. Assim, para eles, mesmo o que se apresenta como o mais local reverbera, seja como manutenção da ordem, seja como seu questionamento ou sua destituição, o global e esse global comporta também, por sua vez, vários pontos de fuga, vários furos, não é propriamente compacto. Entretanto, eu me sirvo aqui da concepção do “Império” como substância para articulá-la a essa substância que Lacan designou como como gozo, como um modo de satisfação pulsional[24].

Nesse viés, se Hardt e Negri insistem que não vivemos mais o tempo dos “imperialismos”, mas o do “Império”, eu sustentaria, como psicanalista de orientação lacaniana, que nessa nova ordem imperial, sobretudo pela escalada planetária da segregação, os imperialismos pululam, mas não propriamente como domínios privilegiados de alguns Estados-nação: eles pululam como pluralizações não só da substância-Império, mas ainda dessa outra substância que é o gozo. Para essa sustentação, me valho do modo como Lacan nos ensinou a escutar no significante por excelência imperial, ou seja, no significante-mestre, no significante-ordenador, no S1 (em francês es un) a homofonia essaim (“enxame”)[25]. Em outras palavras: no mundo atual, o “Império” se propaga como um enxame de “imperialismos” porque a desterritorização do poder, o declínio da função paterna, a vacilação da ordem simbólica fazem com que o imperativo do supereu (“Goza!”) se apodere indiscriminada e pulverizadamente de todos os corpos, validando a segregação, então, em uma proporção planetária, disseminando-a inclusive na intimidade das famílias. Por fim, articulando essa elaboração ao título mesmo do VII ENAPOL, eu diria que a proliferação global das imagens, os diferentes modos como as investimos e clamamos por sua presença em nossas vidas são decisivos para essa nova configuração do “Império” e, assim, o Império das imagens pode ser tematizado também como Império de Imperialismos ou, ainda (sem que com isso eu pretenda uma equivalência entre “imagem” e S1), como Império do S1-Enxame.

Japão

O Oriente implica “um sistema simbólico inaudito, inteiramente desprendido do nosso” e no qual se pode visar à “possibilidade de uma diferença, de uma mutação, de uma revolução na propriedade dos sistemas simbólicos”, dando lugar não a “outros símbolos”, mas à “própria fissura do simbólico” – essa citação parece ser de Lacan, além de evocar o que trabalhamos, no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) de 2012[26], como “a ordem simbólica no século XXI” não ser mais o que era; contudo, trata-se de uma passagem proveniente de um livro de Roland Barthes, dedicado ao Japão – O império dos signos[27]. Mencionado explicitamente por Lacan em “Lituraterra”[28], o considero também uma referência importante para responder o que é “Império”, o que são “imagens”.

Entre o que o Japão, segundo o próprio Barthes, o fez escrever[29], destaco, para os propósitos deste texto, o que ele redige sobre o embrulho de presente para os japoneses: não se trata mais do “acessório passageiro do objeto transportado”, mas “do objeto mesmo; o envoltório (enveloppe), em si, é consagrado como coisa preciosa, ainda que gratuita”, de modo que “é a caixa que se torna o objeto do presente, não o que ela contém”[30]. Daí, a proximidade encontrada por Barthes entre o pacote japonês e sua definição de signo: “como envoltório, tela, máscara”, a caixa “vale pelo que esconde, protege e entretanto designa” – ela “realiza a troca, faz tomar uma coisa por outra (donne le change)” e, assim, “achar o objeto que está no pacote ou o significado que está no signo” é “descartar” (jeter), respectivamente, o objeto e o significado[31]. Nesse contexto, “o que os japoneses transportam, com uma energia formidável, são em suma signos vazios”[32]. Não é portanto sem razão que, na última parte de seu livro, à pergunta se o Japão seria o “Império dos signos”, é a essa coalescência signo-vazio que Barthes retorna para responder: “Sim, caso se entenda que esses signos são vazios e que o ritual é sem Deus”[33].

Esse vazio dos signos e a inexistência de Deus nos rituais parecem-me evocar, por um lado, os fluxos muitas vezes sem sentido, a desterritorialização, a ausência de um centro articulador de tudo e de todos na concepção que Hardt e Negri têm sobre o “Império” na nossa atualidade globalizada. Por outro lado, esse vazio e essa inexistência também nos mostram como o “Império”, hoje, diferente do que acontecia na antiguidade romana, pode se tramar mais além da referência a um amor ao pai e, ainda, na argumentação aqui proposta, como Império de imperialismos ou Império do S1-Enxame.

O que vai, então, caracterizar esse “Império” onde proliferam os imperialismos e onde o S1, o significante-mestre, ordenador, imperativo – propagando-se como um enxame – nos faz experimentar incessantemente mais a desregulação que a ordem? Sabemos que o mais comum é constatarmos uma proeminência do Ocidente sobre o Oriente, uma espécie de ocidentalização do mundo. Entretanto, considero pertinente dizer que assistimos também a um movimento contrário porque esse “ritual sem Deus” e a proliferação de um “esvaziamento dos signos” – tão próprios, segundo Barthes, ao Japão – ganham um alcance mundial em nossos dias e, nesse viés, me parece possível afirmar que o mundo se “orientalizou”.

Para elucidar o que estimo ser essa espécie de “orientalização” do mundo, me valho ainda de Lacan. Em “Lituraterra”, ele sustenta que Barthes escreveu sobre o Japão como “Império dos signos”, mas “querendo dizer: Império dos semblantes”[34]. Antes de supor a Barthes esse novo título, Lacan faz menção à divisão do sujeito pela linguagem, ressalvando que “um de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, à fala”[35]. A utilização lacaniana do termo “registro” me leva a sustentar que o “registro” pelo qual a divisão subjetiva se satisfaz com a referência à escrita é aquele das imagens (ou seja, o Imaginário); o registro através do qual a satisfação, nessa mesma divisão, se processa na referência à fala é o do Simbólico; por fim, a menção à satisfação não deixa de ter a ver com o gozo, implicando, assim, o registro do Real. Mas por que “semblantes”, em uma acepção lacaniana, seria mais pertinente que “signos” para explicitar o que o Japão fez Barthes escrever? Se Lacan, em “Lituraterra” (1971), antecipa sua menção ao semblante com a proposição de que, dividido pela linguagem, o sujeito se satisfaz tanto com a escrita quanto com a fala e, nessa proposição, temos o que concerne aos registros do Real (satisfação, gozo), do Imaginário (escrita) e do Simbólico (fala), no Seminário 20 (1972-1973), semblante é justamente o que se encontra na base perpendicularmente situada com relação ao Imaginário e que compõe o vetor que vai do Imaginário ao Real[36]:

Portanto, “semblantes” efetivamente é melhor que “signos” para designar o que impera no Japão e na “orientalização” atual de nosso mundo.

A proximidade que aqui proponho entre escrita e imagem não deixa de ir na contramão da tendência maior, mesmo nos meios lacanianos, mas sobretudo na crítica literária que se proclama influenciada por Lacan, de aproximar a escrita do registro do Real. Para favorecer essa minha proposição, o Japão é particularmente oportuno ao dar lugar a uma cultura na qual a caligrafia é praticada na literalidade implicada nesse termo: escrita-bela – no Japão, e não só pelo uso dos ideogramas, a letra escrita do modo mais cotidiano se apresenta radicalmente como uma imagem, como o que deve ser belo de se ver, como o que aparece não só para dar corpo ao que se quer comunicar, mas também para satisfazer o olhar. Nesse viés, e desdobrando um pouco mais minha hipótese com relação a uma “orientalização” do mundo, me pergunto se a força com que as imagens tomam nossos dias hoje, o modo como imperam e satisfazem a divisão subjetiva não se deve, exatamente, ao fato de que cada vez mais elas se apresentam como formas cifradas, ou seja, escritas e que satisfazem os corpos ao nomeá-los, ao se alojarem neles como acontece, por exemplo, com o termo “anorexia”, o uso disseminado da “tatuagem”, a proliferação das mensagens de WhatsApp, etc.

Lacan, a propósito do que o Japão provocou em Barthes, destaca ainda o  “sentimento inebriado de que em todas as suas maneiras o sujeito japonês não faz envoltório de nada”[37]. Laurent relaciona esse sentimento provocado pelo Japão em Barthes com uma espécie de fetichização generalizada existente nesse país onde tudo parece desvelado, sem envoltório, sem véu e Miller, na mesma ocasião, o articula à apresentação do Japão como “um mundo sem real… apenas… feito de semblantes”[38]. O que situei sobre o modo como Barthes apreende o uso do embrulho de presente pelos japoneses também pode elucidar essa referência de Lacan: se o pacote concomitantemente efetiva uma troca e faz tomar uma coisa por outra (pois é tão precioso quanto seu conteúdo), esse envoltório, no Japão, nada esconde e, ao mesmo tempo, como um fetiche e muitas das “imagens” que imperam hoje, não deixa de enganar. Em outros termos, o presente, diferente do que acontece em geral no mundo ocidental, não é o que vem com o embrulho a ser descartado, jogado fora, mas também o próprio embrulho e, por conseguinte, parece-me possível dizer que não haveria, para os japoneses, “embrulho de presente” ou “embrulho para presente” e, dentro dele, o “presente”, mas, sim, “embrulho-presente”, “presente-embrulho” ou, ressaltando ainda mais a função do engano própria do fetiche, uma “embrulhada”. Logo, os japoneses não envolveriam nada porque o próprio envoltório já se apresenta, digamos assim, como a coisa e, por esse viés, poderemos constatar também como, no Japão, os objetos a, ou seja, os semblantes, provavelmente antes mesmo da consagração da ciência no mundo, já se espalhavam e proliferavam no zênite social[39] dessa parte do Oriente.

Entretanto, por mais atraentes que sejam, imperem nas “imagens” contemporâneas, incitem e até proporcionem algum gozo, os semblantes não são propriamente uma solução para a psicanálise de orientação lacaniana. Nesse contexto, a referência ao Japão continua sendo preciosa porque, embora Lacan, valendo-se do livro de Barthes, localize esse país como “o Império dos semblantes”, é também nele que se pratica intensamente o que, nos termos de “Lituraterra”, é bem diferente do semblante: o “vazio escavado pela escrita” e que se apresenta como um “godê sempre prestes a dar acolhida ao gozo ou, pelo menos, a invocá-lo com seu artifício”[40]. Aqui, a referência à escrita, diferente do que antes apresentei, não a toma como “imagem”, pois o que está em jogo não é o que aparece como escrito, mas o que a escrita pode escavar: o vazio. Nesse novo contexto, a diferença entre gozo e semblante também poderá ser melhor tematizada: mesmo que este último, como um artifício, tanto quanto as imagens, sobretudo hoje, possa invocar o gozo, eles – semblantes e imagens – não são gozo. Por isso, no Império das imagens, estas últimas, por maior que seja sua pregnância com o que faz gozar, são incessantemente tomadas por uma instabilidade, um fluxo intenso, uma urgência jamais respondida de modo satisfatório – elas clamam pelo gozo, tentam, tal qual acontece com o fetiche, localizar o gozo que, embora possa lhes fazer de veículo, elas não são.

Essa diferença entre gozo e semblante, cara à psicanálise de orientação lacaniana, não deve ser restringida a uma oposição ou uma polaridade. Afinal, a experiência analítica mostra-nos como certo uso do semblante pode evocar, tocar o gozo e, em “Lituraterra”, Lacan localiza qual é esse uso: “ao se romper um semblante”, o gozo é evocado, tal qual “no real” (registro bastante afeito ao gozo) temos o “ravinamento das águas”[41], ou seja, quando as nuvens se rompem, desfazem-se as imagens que elas são tão propensas a nos evocar, a chuva cai, deixando o real da terra marcado pela erosão das águas. Assim, enquanto o “Império” hoje é aquele dos “imperialismos”, das “imagens”, do “S1-enxame” e dos “semblantes”, a psicanálise de orientação lacaniana não considera “imperialismo” exclusivamente o domínio de um Estado-nação para além de suas fronteiras, tampouco faz proliferar as imagens ou se entusiasma com a desterritorialização dos significantes-mestres sob a forma de enxames ou com o desmascaramento dos semblantes: trata-se de se valer ou, em outras circunstâncias, promover o rompimento de certos semblantes, singulares a cada caso ou situação, para se aceder ao vazio que acolhe o gozo e favorecer o fluxo dessa satisfação (e não seu imperativo) nos corpos vivos.

Outra passagem de “Lituraterra” que me interessa para tematizar o que proponho aqui como “orientalização” do mundo é aquela sobre o modo como o sujeito japonês se identifica: ele se apoia “em um céu constelado, e não somente no traço unário”[42]. Nessa passagem, diferente daquela sobre a referência à escrita, é a fala que, pelo menos inicialmente, aparece como uma referência privilegiada por Lacan – a fala como outro registro, diferente da escrita, no qual o sujeito dividido se satisfaz. Trata-se da fala porque, nessa menção de Lacan ao apoio japonês no céu constelado, o que está em jogo é o uso variado das “relações de polidez”[43] no Japão. Essa concisa menção à polidez japonesa me parece poder ser melhor elucidada pela seguinte distinção sustentada por Tae Suzuki, professor da Universidade de Brasília e que tem realizado, desde 1970, investigações importantes sobre a língua japonesa e as expressões de tratamento:

“Nas línguas ocidentais, quando se fala em tratamento, entende-se o tratamento respeitoso e a referência, em regra, aos pronomes de tratamento… como Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Santidade etc, bem como os pronomes de 2a pessoa, formais ou cerimoniosos [vós, senhor, senhora, etc] em oposição aos informais ou íntimos [você, tu, “cara”, “véi”, “brother”, etc]… Na língua japonesa, entretanto, o tratamento não só extrapola os pronomes de tratamento, bem como comporta outras formas além do respeito, genericamente falando, dirigido a uma pessoa considerada hierarquicamente superior”[44].

Assim, em japonês, “todas as expressões de tratamento se realizam no enunciado”, ou seja, “na realização concreta” do que é falado, mas uma dessas expressões “tem como alvo as pessoas que atuam no enunciado como sujeitos ou objetos da ação nele contida”, manifestando respeito ou modéstia, enquanto “a outra é um ato de tratamento mais afeto ao ato da enunciação”, apresentando “a maneira polida (donde a denominação expressões de polidez) de o locutor-destinador transmitir a palavra ao interlocutor na qualidade de simples destinatário” do que é falado[45]. No tratamento do enunciado, pelo viés do respeito ou pelo viés da modéstia, é estabelecida a distância que o locutor estima existir entre as pessoas do enunciado, tendo em vista o contexto que as permitem ser elevadas como superiores ou rebaixadas como inferiores. Por sua vez, no tratamento da enunciação, é traduzida a atenção daquele que fala em se dirigir polidamente a seu interlocutor, independentemente da hierarquia existente entre eles. Uma comparação ilustra a relação entre o tratamento do enunciado e da enunciação na fala de um japonês:

“diria que o tratamento do enunciado seria a boneca que quero dar a minha filha e o tratamento da enunciação, o papel e a fita que envolvem a boneca. O que quero fazer chegar a minha filha é a boneca (mensagem) porque hoje é seu aniversário e ela é uma criança do sexo feminino… e quero homenageá-la e dar-lhe alegria (consideração). O papel e a fita apenas envolvem a boneca para tornar mais significativo o ato (polidez), mas poderia dispensá-los sem que modificasse minha intenção de presentear a menina[46].

É interessante que Suzuki, antes mesmo de apresentar essa comparação, a qualifica como “grosseira”. Afinal, ele é um estudioso da língua japonesa e, como vimos, no Japão, o embrulho conta tanto quanto o que é por ele envolvido e, assim, no que concerne à fala, a polidez não é meramente um detalhe da mensagem enunciada, mas uma enunciação a ser transmitida tanto quanto o que é enunciado.

Como falar, no Ocidente ou no Japão, implica a identificação nas formas de tratamento, Lacan, considerando essa pluralidade com que um japonês tem que se haver ao falar, destaca o quanto este, em sua identificação, se apoia em um “céu constelado” enquanto nós, os ocidentais, nos valeríamos, em nossa identificação, do “traço unário”, ou seja, de uma referência ao Um e, na fala, a polidez se restringira, por exemplo, a situações relacionadas com diferenças hierárquicas ou com alguma distância entre do falante com seu interlocutor.

Evoco ainda, como outra referência da cultura ocidental, o uso que Kant faz, na Crítica da razão prática, ao “céu constelado” – “duas coisas enchem o coração (Gëmuth) de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão a elas se relaciona e se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”[47]. Entretanto, bem diferente do que acontece na identificação para um sujeito japonês, em Kant, o “céu estrelado”, no contexto da Crítica da razão prática, é a transposição astronômica da elevação que cada ser humano, como ser racional, experimenta em si mesmo ao tomar a lei moral como princípio de sua ação, ou seja, o céu constelado, em Kant, converge para o Um representado na lei moral enquanto que, para os japoneses, segundo Lacan, a identificação se multiplica, em suas referências, como as constelações no céu. Em “Os complexos familiares”, escrito bem antes de “Lituraterra”, Lacan faz menção às “constelações familiares”[48], mas sem que essa expressão comporte a diversificação que ele vai destacar, posteriormente, a propósito da identificação para os japoneses. “Constelação familiar”, no contexto de um primeiro Lacan, designa as referências que caracterizam e são transmitidas por uma família, ou seja, a organização de uma trama fundada em uma unicidade que, em momentos mais tardios do ensino de Lacan, o Nome-do-Pai, o traço unário e o que chamei aqui de amor ao pai vão procurar garantir.

Retornando, agora, ao que chamei de “orientalização” do mundo, o que temos hoje, de um modo geral, propagado pelo Império das imagens não deixa de evocar a identificação para o sujeito japonês. Afinal, o que caracteriza a subjetividade de nossa época é não se valer mais, em seus processos identificatórios, apenas do Um simbolizado pelo Nome-do-Pai e se voltar muito mais para o “céu constelado”. Sem dúvida, como quis mostrar Mishima ao suicidar-se[49], o Japão não é mais hoje o Japão, mas estimo agora – bem diferente desse escritor japonês – que o Japão deixa de ser o que era não apenas por causa de sua ocidentalização: ele se descaracteriza porque todo o mundo, na instabilidade e na multiplicidade características das identificações contemporâneas, se transformou, em certo sentido, no Japão. Por conseguinte, muitos dos desafios que a clínica psicanalítica enfrenta nos nossos dias têm a ver com as dificuldades implicadas nessa globalização do céu constelado como referência identificatória.

O lado negro do Império

Embora Hardt e Negri reconheçam e critiquem vários impasses e problemas apresentados pela versão contemporânea do “Império”, eles não deixam de ver essa substância com alguma simpatia, sobretudo porque nela se interpõe o que, mais recentemente, vão chamar de “multidão”[50]: ao mesmo tempo que temos hoje um aumento dos processos segregativos, há um aumento das formas de combate, de potência, de invenção de singularidades. Homero Santiago, em um dos textos de um dossiê da revista Cult dedicado a Antonio Negri, oferece-nos uma amostra dessa simpatia pelo modo como, no “Império”, as tensões dominador-dominado, capitalista-operário se colocam de forma inusitada quando comparada ao mundo que ainda não era tomado pela substância-Império:

“A esquerda sempre se preocupou com o capitalismo, e nisso fez bem; importa, contudo, inverter a perspectiva analítica: o ponto de vista operário vem antes, o ponto de vista do capital é segundo, pois é o primeiro, mediante uma potencia exprimida em suas lutas, que move o capital, faz que ele se mexa e inove tentando responder às lutas operárias. Num exemplo grosseiro: a automatização das fábricas não passa de resposta às greves dos trabalhadores, pois, como todos sabem, máquina não pede aumento de salário”[51].

Sob esse prisma, a automatização não é exatamente o que coloca em risco o trabalho realizado por humanos, pois pode ser abordada também como uma opção capitalista diante da potência reivindicativa dos trabalhadores.

Nesse mesmo dossiê em que Negri é destacado como “o pensador da potência política”, encontramos referências de como um “‘retorno a Spinoza’” perpassa muitas de suas concepções[52]. Ora, sabemos que Lacan foi também leitor e admirador de Spinoza, mas isso não o impediu, no Seminário 11, de tomar dele uma distância importante. De início, Lacan ressalta que a filosofia spinozista se pauta pelo “Amor intellectuallis Dei” e, assim, “na medida em que Spinoza diz – o desejo é a essência do homem”, esse desejo é colocado “na dependência radical da universalidade dos atributos divinos”[53]. Porém, declara Lacan, “essa posição não é sustentável por nós”, e a experiência analítica o levou então a escrever “Kant com Sade”, demarcando a face obscura e sacrificial desse Amor intellectualis Dei e, no que concerne a este texto, permitindo-me destacar, a la Georges Lucas, o que chamaria de “lado negro do Império” [54].

Ora, é justamente em “Kant com Sade” que encontraremos uma das primeiras assimilações do S1 ao enxame, do Um ao múltiplo, e ela já vem marcada por uma mescla de obscuridade e gozo. Afinal, logo após evocar o Ser-supremo-em-Maldade” com que Sade vai responder a que “Deus é sem rosto”, Lacan utiliza um termo alemão – Schwärmereien[55]. Sem mencionar que vamos encontrá-lo em diferentes textos de Kant para designar tanto a “loucura” quanto o “entusiasmo” da razão quando ela não é limitada e orientada por uma “crítica”, Lacan vai ressaltar-lhe a “presença na fantasia sadiana” e o traduz literalmente como “negros enxames” ou, se quisermos fazer valer a homofonia de essaims com esse un, “negros S1”.

Logo, a disseminação contemporânea da identificação ao céu constelado estimulada pelo Império das Imagens pode parecer uma grande liberdade, sob vários aspectos e, em muitas situações, não deixa mesmo de sê-lo. Porém, já aprendemos com a “Alocução sobre as psicoses infantis”, que a liberdade conquistada com o questionamento generalizado dos S1 não se faz sem segregação. Assim, no “céu constelado” no qual se pautam as identificações nesse mundo “orientalizado”, propaga-se sutil e ferozmente as múltiplas vozes dessa instância que Freud chamou de supereu: a disseminação planetária do direito ao gozo não se faz sem sacrifício.

Essa dimensão negra do enxame vai fazer com que o mundo atual “orientalizado” fique à mercê do que Lacan ressalta, no final de “Lituraterra”, a partir da referência a essa espécie de teatro de bonecos japonês chamado bunraku: “o sujeito se compõe justamente ao poder se decompor”[56]. Tal decomposição, no bunraku, se faz entre os corpos em movimento e o que é falado, pois o que os corpos dos bonecos encenam, amparados por corpos humanos vestidos de negro e que são visíveis, é recitado em voz alta, em outra parte do teatro. Trata-se realmente de uma experiência de decomposição não apenas no sentido de uma fragmentação corpo-fala, mas ainda de uma mortificação que perpassa o corpo e a fala. Parece-me que é exatamente esse tipo de decomposição que caracteriza os nossos tempos: aqueles que recebemos em nossos consultórios, nas instituições ou que irrompem nas chamadas “redes sociais” têm corpos, se movimentam também graças a outros corpos, mas cada vez mais o que falam ressoa como fora desses corpos e, então, eles se apresentam, decompostos como no bunraku – há um enredamento, onde muitas vezes imperam mais imagens que as palavras, mas ele não se desfia mais como no teatro ocidental tradicional ou ao modo de uma narrativa do tipo “romance familiar” em que discerniríamos mais claramente as “constelação familiar” que nortearia a vida de quem nos procura.

Nesse contexto, para demarcar a diferença que a psicanálise de orientação lacaniana visa sustentar frente ao bunraku que se propaga no Império das imagens, concluo com uma importante formulação de Miller, apresentada por ocasião de uma intervenção de Éric Laurent sobre esse teatro japonês e que também nos conduz ao próximo Congresso da AMP em 2016: “o que constitui o mistério do corpo falante é quando não há disjunção, mas, sim, que o corpo habite a linguagem e seja afetado por seus efeitos” enquanto que, no bunraku, temos a “ficção de um mundo onde os corpos não seriam afetados pela linguagem” e esta última “seria assumida de lado”, e não no corpo[57]. Logo, neste Império das imagens no qual se transmuta nosso planeta, é justamente desse bunraku globalizado que a psicanálise de orientação lacaniana nos permite experimentar uma oportuna e vivificante distância.

RESUMO:

Este texto propõe, baseado na psicanálise de orientação lacaniana, averiguar o que se coloca no mundo de hoje como “império” e como “imagens”. Destaca, ainda, como a experiência analítica permite-nos operar e intervir nesse “Império das imagens” no qual o mundo globalizado cada vez mais se transforma.

PALAVRAS-CHAVE

Império, imagem, semblante, escrita, gozo, Japão

* Este texto foi escrito após uma conferência, de mesmo título, pronunciada como primeira atividade preparatória para o VII Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL), no dia 29 de agosto de 2014, no Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade (CLINa). Para essa escrita – que modificou muitas passagens da conferência – foi muito importante a transcrição realizada por Flávia Seidinger e o estabelecimento, por Cynthia Farias, do que foi de início oralmente apresentado. Destinado agora à revista Entrevários, este texto é, portanto, resultado, literalmente, de um trabalho de muitos: obrigado Angelina Harari, Cynthia Farias, Flávia Seidinger, Luiz Fernando Carrijo, Rômulo Ferreira da Silva, por esse trabalho compartido e a oportunidade de apresentá-lo a outros colegas do CLINa, como conferência e, agora, sob a forma de texto, também para todos os leitores de Entrevários. Por fim, um reconhecimento especial à Márcia Szajnbok (in memorian), cujo convite para uma atividade no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) sobre Foucault e a psicanálise deu lugar, também, à já citada conferência.

** Analista Membro da Escola (AME), pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia e do Mestrado de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do ProPIC-FUMEC (Programa de Pesquisa e Iniciação Científica). E-mail laia.bhe@terra.com.br


[1] LACAN, J. (1967/2001). Allocution sur les psychoses de l’enfant. In: Autres écrits. Paris, Seuil, p. 361-371.

[2] Nessa discussão, Lacan também evoca outro escrito seu: LACAN, J. (1946/1966). Propos sur la causalité psychique. In: Écrits. Paris, Seuil, p. 151-193. Ver, a esse respeito, bem como para as menções a David Cooper e Jean Oury: LACAN, J. (1967/2001). Allocution sur les psychoses de l’enfant. In: Autres écrits. Paris, Seuil, p. 361-363.

[3] LACAN, J. (1967/2001). Allocution sur les psychoses de l’enfant. In: Autres écrits. Paris, Seuil, p. 362. Na tradução brasileira da Zahar, essa passagem está um pouco diferente: LACAN, J. (1967-2003). Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 360. Preferi, aqui, me aproximar do original francês, inclusive porque ele me pareceu ter mais o tom dessa amplificação, para um futuro bem longínquo, do que já acontecia em 1967.

[4] LACAN, J. (1967/2001). Allocution sur les psychoses de l’enfant. In: Autres écrits. Paris, Seuil, p. 363.

[5] Idem, ibidem, p. 362-363.

[6] Idem, ibidem, p. 363.

[7] MONTOYA, P. (2008). Lejos de Roma. Bogotá: Alfaguara, p. 104. Agradeço a Fernando Velasquez, da Nueva Escuela Lacaniana (NEL), sede Medellín, a indicação desse livro, quando percorríamos uma das livrarias dessa cidade.

[8] Idem, ibidem, p. 104.

[9] Idem, ibidem, p. 105.

[10] Hardt, M.; Negri, A. (200/2001) Império. Rio de Janeiro: Record.

[11] Idem, ibidem, p. 11.

[12] Idem, ibidem, p. 11.

[13] Idem, ibidem,, p. 14-15.

[14] Idem, ibidem, p. 23.

[15] Idem, ibidem, p. 24.

[16] Idem, ibidem, p. 26.

[17] Idem, ibidem, p. 27.

[18] Idem, ibidem, p.28.

[19] Idem, ibidem, p. 36.

[20] Idem, bidem, p. 38.

[21] MILLER, J.-A (1997-1998/2001). El Otro que no existe y sus comités de ética. Seminario en colaboración con Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós.

[22] LACAN, J. (1967/2001). Op. cit.,, p. 362.

[23] Para esse isolamento quanto à qualquer função social e essa identificação rígida a uma função social, na psicose, me valho das formulações de Miller sobre a “externalidade social” em: MILLER, J.-A. (2008/2009) Efeito de retorno sobre a psicose ordinária. In: BATISTA, M. C. D.; LAIA, S. (orgs) (2012). A psicose ordinária. Belo Horizonte, EBP/Scriptum, p. 399-429.

[24] LACAN, J. (1972-1973/1975). Le séminaire. Livre XX : encore. Paris, Seuil.

[25] LACAN, J. (1963/1966). Kant avec Sade. In: Écrits. Paris: Seuil, p. 773.

[26] Ver: http://congresoamp.com/pt/template.php (Acesso em 22 de abril de 2015).

[27] BARTHES, Roland (1970/1994). L’empire des signes. In: Oeuvres complétes, tomme II. Paris: Seuil, p. 747. Há uma edição brasileira desse livro de Barthes sobre o Japão: BARTHES, R. (1970/2007). O Império dos signos. São Paulo: Martins Fontes.

[28] LACAN, J. (1971/2001). Lituraterre. In: Autres écrits. Paris, Seuil, p. 19.

[29] Literalmente, os termos de Barthes a respeito do modo como foi produzido O império dos signos são: “o autor jamais, em sentido algum, fotografou o Japão. Seria antes o contrário: é o Japão que o irradiou com múltiplos flashes; ou, melhor ainda: o Japão o colocou no ponto de escrever”. BARTHES, R. (1970/1994). Op. cit., p. 748.

[30] Idem, ibidem, p. 780.

[31] Idem, ibidem, p. 780. A expressão francesa donne le change comporta, como Barthes mesmo ressalta, tanto um sentido “monetário”, quanto o sentido “psicológico”. Por isso, em português, a traduzi duplamente por “realiza a troca” e “faz tomar uma coisa por outra”, engana, abusa.

[32] Idem, ibidem, p. 780.

[33] Idem, ibidem, p. 821.

[34] LACAN, J. (1971/2001). Op. cit., p. 19.

[35] Idem, ibidem, p. 19.

[36] LACAN, J. (1972-1973/1975) Op. cit.

[37] Idem, ibidem, p. 19.

[38] Ver, para essa leitura de Barthes por Laurent e Miller: MILLER, J. (1998-1999/2003) La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 288 e 294.

[39] Para essa referência dos objetos a no zênite social como uma característica do mundo contemporâneo, ver: MILLER, J. (2004/2005). Uma fantasia. Opção Lacaniana, n. 42, p. 7-18.

[40] Idem, ibidem, p. 19.

[41] Idem, ibidem, p. 17.

[42] Idem, ibidem, p. 19.

[43] Idem, ibidem, p. 19.

[44] SUZUKI, T. (1995). As expressões de tratamento na língua japonesa. São Paulo, EDUSP, p. 10. Para as informações sobre esse autor, consultei: http://lattes.cnpq.br/9032314285452365 (Acesso em 1º de maio de 2015).

[45] Idem, ibidem, p. 16-17.

[46] Suzuki, p. 20.

[47] KANT, I. (1788/1985). Critique de la raison pratique. Paris: P.U.F., p. 173.

[48] LACAN, J. (1938/2001). Les complexes familaux. In: Autres écrits. Paris: Seuil, p. 62.

[49] Ver: STOKES, H. S. (1974/1986) A vida e a morte de Mishima. Porto Alegre, L&PM. Indispensável também, a respeito da relação de Mishima com as tradições japonesas e sua crítica à ocidentalização do Japão: MISHIMA, Y. (1968/1986). Sol e aço. São Paulo: Brasiliense. Por fim, permito-me citar um artigo meu, publicado já há alguns bons anos: LAIA, S. (1996). Mishima e o império dos semblantes. Correio, EBP; esse texto encontra-se também disponibilizado na internet (Acesso em 1º de maio de 2015):

http://ebp.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/Sergio_Laia_Mishima_e_o_imperio_dos_semblantes2.pdf

[50] Ver: HARDT, M.; NEGRI, A. (2004) Multitude: War and Democracy in the age of Imperium. New York: Peguin Press; NEGRI, A. (2004) Para uma definição ontológica de multidão. Lugar Comum, Rede Universitária Nômade, n. 19-20, p. 15-26.

[51] SANTIAGO, H. (2014) O que é, quem é a multidão. Cult, n. 189, abril 2014, p. 31

[52] Idem, ibidem, p. 31. Ver, ainda, a entrevista, realizada por Thiago Fonseca e Guiseppe Cocco com o próprio Antonio Negri, intitulada “Na volta a Espinosa, a construção do comum”: Cult, n. 189, abril 2014, p. 38-41.

[53] LACAN, J. (1964/1973). Le séminaire. Livre XI: les quatres concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, p. 247.

[54] Idem, ibidem, p. 247. Ver, também: LACAN, J. (1963/1966). Kant avec Sade. In: Écrits. Paris: Seuil, p. 765-790. Por sua vez, a referência a George Lucas, se vale de toda a saga apresentada nessa constelação de seus filmes intitulada Guerra nas estrelas.

[55] LACAN, J. (1963/1966) Op. cit., p. 773.

[56] LACAN, J. (1971/2001) Op. cit., p. 20.

[57] MILLER, J. (1998-1999/2003) La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, p. 288.