Esse excelente filme nos brinda com a oportunidade de abordar a área onde assuntos familiares se entrelaçam com os aspectos mais delicados e insondáveis do humano, essa área que nos ocupamos diariamente como analistas e que interessa, sobremaneira, ao próximo ENAPOL.
Uma pequena comunidade – Manchester by the sea, próxima de Boston, EUA – é o cenário onde se desenvolve uma tragédia moderna que articula fatalidade e contingência, um clássico em plena atualidade.
Desde o início, a trama está centrada em Lee (Casey Affleck), seu protagonista. Apresentado como um personagem tenso, solitário e praticamente à margem das questões cotidianas da vida. Seu trabalho como encarregado da manutenção de edifícios ocupa todo seu tempo, detido aos dejetos dos quais deve ocupar-se – o lixo, os vasos sanitários, os canos entupidos -, segue com seus afazeres, insensível aos desejos alheios que encontra levando adiante a sua tarefa, em especial das mulheres. Sua única distração parece ser sair para beber em bares, onde uma e outra vez ignora a sutileza do desejo, transformando-a na oportunidade para tomar-se ferozmente por socos.
A irrupção de um acontecimento familiar – a morte do irmão – rompe a rotina que Lee sustentava com tanta determinação e nos revela a trama em que se sustenta sua decisão subjetiva.
Antes de morrer, seu irmão buscou expressar sua última vontade: que Lee assuma os cuidados de seu filho de 16 anos. Esse ato está repleto de consequências, pois convoca Lee ao lugar donde com tanto empenho buscava se afastar: seu povo, sua história, seus afetos, sua responsabilidade subjetiva. É o laço fraterno que o traz de volta ao mundo dos vivos.
A partir de então, o filme aborda os esforços de Lee no momento presente: suas tentativas de esquivar-se deste chamado, seu consentimento ao pedido do irmão, o exercício de assumir o lugar de tutor e, ao mesmo tempo, a recordação do que o levou a sua posição melancólica.
Lee tinha sido um homem despreocupado, teve uma família, uma mulher e três filhos que amava. Em uma noite, depois de uma reunião com amigos, álcool e drogas em sua casa, decide sair para comprar mais cerveja no intuito de sossegar ainda mais para poder dormir. Antes, se ocupa para que sua família não sinta o frio e acende um fogareiro. Caminha, pois temia os efeitos do álcool se dirigisse. No caminho, lembra-se que se esqueceu de colocar o protetor de faíscas no aparato, mas descarta sua preocupação, não aconteceria nada. Ao retornar encontra o inferno: a casa em chamas, sua mulher em uma ambulância e as crianças que não conseguiram escapar do fogo.
Na delegacia, conta o que aconteceu com detalhes. Os policiais o escutam atentamente e lhe respondem: você recebeu o pior castigo possível, pagou caríssimo o erro que cometeu. Posso ir? Pergunta Lee, incrédulo. Sim, lhes dizem.
Sua passagem ao ato assinala a diferença entre a responsabilidade que determina a lei social e o sentido da responsabilidade subjetiva. Lee levanta atordoado, agarra a arma e tenta disparar em um policial. Nem a intoxicação, nem a sorte lhe servem de álibi, ele é julgado culpado e pagará. Apesar de não conseguir disparar a arma, ali terminou sua vida, até a morte de seu irmão: um irmão que sabia da solidão e desamparo, e cujo desejo lhe oferece uma nova chance.
A continuação do drama assinala que avançar por um lugar aberto pelo desejo do outro requer a decisão subjetiva de ocupá-lo. O amor de Lee por seu sobrinho e o amor do jovem pela vida reconstroem algo do lugar do desejo; até que a carta marcada de um encontro casual com sua ex-mulher volta a confrontar Lee com sua encruzilhada.
Ela, grávida, desculpa-se pelos insultos proferidos e então, lhe diz que entende que ele também sofreu muito e que lhe ama; Lee, atordoado, sussurra que não, que não é nada disso. O álcool volta a apresentar-se ali como um instrumento do superego: Lee se embriaga e desmaia. Um sonho traumático marca o momento de uma nova partida, “pai, não vês que estou queimando?” lhe disse sua filha – “não posso vencê-lo”, disse Lee; pretende vencer a pulsão e, impotente, se retira. Não sem dar um novo lugar ao sobrinho.
O filme expõe de modo trágico o que nos fala Lacan quando assinala o homem “livre” da sociedade moderna – livre de suas determinações, livre das opacidades da palavra, livre dos laços e levado a uma relação imediata com o gozo – “É essa vítima comovente, evadida de alhures, inocente, que rompe com o exílio que condena o homem moderno à mais assustadora galé social, que acolhemos quando ela vem a nós; é para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação à qual sempre somos por demais desiguais” [1]: A figura do irmão de Lee evoca essa fraternidade, que Lacan retoma o em seu texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”[2] e, mais tarde, na aula XVI do Seminário “… ou pior”[3], onde indica que é por meio do laço que permite alojar esse ser do nada, esse dejeto, sem julgá-lo; que pode ser interrogada a articulação entre o gozo e a culpa nas diferentes formas que pode tomar.”Nosso irmão transfigurado, é isso que nasce da conjuração analítica, e é isso que nos liga àquele que chamamos, impropriamente, de nosso paciente”.[4]
Tradução: Luis Francisco Camargo
NOTAS
- Lacan, J., “A agressividade em psicanálise”. In: _____. Escritos: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 126.
- Lacan, J., “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. In: ______. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1998, p. 151. Lacan irá formular ali a ideia de “fraternidade eterna”.
- Lacan, J., “O seminário, livro 19. … ou pior”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 213-227.
- Ibid, p. 2227.