A ênfase dos textos preparados por nossos colegas para o ASUNTOS! #18 continua girando em torno do que é uma família, sobretudo na contemporaneidade. Seja pela via de uma tradição oral, entrevistas, seja pela via da escrita, textos, o diálogo entre as três Escolas se dá de modo contagiante.

Sergio Laia nos transmite suas idéias sobre o que constitui uma família, discorrendo sobre a ética do celibatário ou sobre a natureza de uma família composta por um casal. A dimensão do encontro de corpos no dia-a-dia é destacada pelo colega brasileiro. Em franco diálogo com ele, em tempo e lugar distintos, Tudanca se questiona sobre a diferença entre um pai e a função paterna. O que entra em declínio? um pai ou a função paterna? O que vem no lugar de uma função paterna quando esta não é encarnada? Pontos instigantes para se discutir no VIII ENAPOL.

Aníbal Leserre e Marisa Chamizo nos trazem contribuições que implicam, na discussão, a teoria da clínica com crianças. Que idéia de família pode-se depreender de uma leitura atualizada do texto de Lacan “Nota sobre a Criança?” Somos todos frutos de uma má formação do desejo e entramos no mundo pelo desamparo, nos lembra Chamizo. Toda família guarda em si um segredo, que diz sempre respeito ao que é da ordem do gozo, sendo esta a unidade da família no inconsciente, nos lembra Giraldo. Se o eixo é o moderno, Cristina Giraldo, num contraponto, se debruça sobre a família colonial de Medellin. Cristiana Cardoso Pittella, a partir de contos infantis clássicos nos leva a refletir sobre o mito da inocência infantil, destacando que o mal e a solidão acompanham há tempos nossas crianças. A queda dos ideais identificatórios, o desamparo e a solidão levam ao engajamento no tráfico como no DAESH.

A experiência de Betina Perona, Diretora da Associação Civil EL ARCA, que acolhe meninos de rua, dialoga diretamente com o filme de 2002, Cidade de Deus, comentado por Ernesto Derenzensky. A importância de destacar que, para que toda experiência seja bem sucedida, a presença de um desejo não anônimo é fundamental, é a tônica desta parceria.

Diante de tanta riqueza epistêmica, convidamos todos à leitura do boletim Assuntos! #18!

Tânia Abreu (EBP)

Cidade de Deus é um filme magnífico, dirigido por Fernando Meirelles, baseado em uma novela de Paulo Lins que trata, de um modo ficcional, fatos da realidade. Tudo se desenrola no Rio de Janeiro, no decorrer dos anos 60, quando a favela Cidade de Deus começou a ser povoada por famílias rurais que ali haviam se instalado. Essa comunidade, como em muitas outras cidades da América Latina, carece dos mais elementares serviços. Sem água potável, gás, luz, as ruas sem asfalto e a polícia que, mais do que promover a segurança, é parte do problema. O filme nos faz escutar, através de Buscapé, um menino da favela, como nesse mundo violento e sem horizontes certas palavras ainda têm valor. Seu irmão lhe diz: “você tem que estudar e nunca tocar numa arma”. Buscapé é marcado por essas palavras e, frente à opção que se apresenta a muitos moradores da favela, ser um policial ou um criminoso, faz uma escolha: ele será fotógrafo. Vemos como seu irmão não funciona como outro com minúscula, um semelhante, mas ocupa o lugar do Outro que assinala uma proibição, uma impossibilidade, e, ao mesmo tempo, habilita o caminho da lei e o desejo. Vemos, assim, como um irmão pode, em certas ocasiões, funcionar como um pai para um sujeito.

As drogas e as armas são objeto de consumo e de gozo que reinam na favela. Os meninos que ingressam no narcotráfico se agrupam em clãs que, por vezes, se tornam famílias substitutas. Entram como moleques de recados, os que levam as mensagens, vigilantes para avisar a entrada da polícia na favela, são camelos que transportam e vendem droga. Em outra escala, já são soldados armados para matar. É interessante destacar certos ritos de iniciação que, na falta de referências simbólicas, marcam o passo dos meninos para a vida adulta. Um menino que aspira ser soldado narco diz: ” eu fumo e cheiro, já roubei e matei, não sou uma criança, sou um homem”.

Há outra passagem do filme muito significativa, quando Dadinho e seu amigo Bené, vão se encontrar com um feiticeiro. Exu, o Diabo, é a luz que chega e diz a Dadinho: ” você quer poder, eu te darei meu protetor, mas você não pode fornicar com ele, porque, se você o fizer, você morrerá. Este menino já não se chama Dadinho, mas Zé Pequeno”.

Vemos como se produz uma nomeação, não pela via do Nome-do-Pai, mas por esse feiticeiro. Exu, o que encarna uma ordem de ferro, lhe dá um poder que o levará a converter-se no mais importante narcotraficante da favela, mas não o habilita na ordem do amor e do desejo, pois está a serviço da pulsão de morte.

Dois bandos rivais, com seus chefes Zé Pequeno e Cenoura, se lançam em uma guerra sem quartel. A Cidade de Deus será o cenário da batalha. Os dois bandos se armam e são os policiais em contato com os vendedores de armas que as introduzem na favela. Eles também fazem seu negócio. E não tem nenhuma importância o número de mortos. O filme culmina com uma repetição infernal. O verdadeiro reinado da pulsão de morte. Um bando de meninos assassina Zé Pequeno e estes serão os novos chefes da droga na favela. A Cidade de Deus se transforma em um inferno na terra.

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