Em nosso penúltimo Assuntos! do ENAPOL apresentamos uma entrevista a Mauricio Kartun –dramaturgo e diretor de teatro argentino– na qual conta a origem de sua peça teatral Terrenal, com o comentário emoldurado por conceitos psicanalíticos, de Oscar Zack. A obra mostra a história aggiornada de como Caim continua matando Abel, já em outro tempo. Situa a origem nas contingências, mitos e seus próprios assuntos de família. Finalmente, sustenta Kartun, “o um sozinho cresce monstruoso ” e isso implica cair no dois que sempre leva a brigas e diferenças. Inquietante familiaridade do semelhante como conjuntura da rivalidade fraterna, segundo Cristina Gonzáles. O que está em jogo entre eles, diz Ennia Favret, é a “sonoridade” entre a verité e la jouissance.

Nos textos, Blanca Musachi seguindo Freud, situa como a chegada de um irmão afeta o campo do saber, do desejo e do objeto. Débora Nitzcaner sustenta que à psicanálise interessa a “irmandade” por seu reverso, ou seja, por aquilo que sai da fila dos enredos identificatórios do Édipo.

Por um lado, então, a assonância. Como diz Lacan em…ou pire, “somos irmãos de nossos pacientes na medida em que somos, como eles, filhos do discurso”. [Lacan, 1971-1972: 230]

Por outro, a orientação pela dissonância que implica situar o gozo singular, velado pelo redemoinho de contingências com que cada um constrói suas marcas de família.

Nós nos encontraremos muito em breve!

Viviana Mozzi
Diretora do VIII ENAPOL

No Evangelho segundo São Mateus há um diálogo entre o discípulo e o mestre:

-Mestre, qual é o mandamento mais importante da Lei?

Jesus respondeu: Amarás o Senhor com todo teu coração, alma e mente.

Este é o primeiro mandamento, mas há outro: Amarás teu próximo como a ti mesmo. Concluindo: nisso se fundamentam a Lei e os Profetas.

O amor fraterno elevado ao pináculo do bem assinala o caminho que demarca o laço entre os congêneres, aparentando-se com o imperativo categórico kantiano: “Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta”.

Um mandamento apoiado na razão pretende ser una guia para a ação do homem na busca do bem geral, ao preço de desconhecer a singularidade do gozo que afasta o sujeito de toda ilusão humanista. Contudo, é preciso saber que a pulsão é como o diabo que coloca o rabo que põe em xeque o bem como valor soberano.

O discurso analítico pôs a descoberto a existência da ferocidade que costuma habitar os laços associativos supostamente unidos pelo amor, como se constata nos assuntos de família, entre irmãos, amigos e em toda estrutura habitada pelos seres falantes. O gozo articulado à pulsão de morte questiona, em parte, o binarismo vítima-vitimário, que ocupa um lugar princeps no mundo atual.

Quem é uma vítima no seio familiar? Excluindo dessa descrição aqueles que padeceram da mesma, vítima é aquele que é participante da agressão a um outro anônimo ou encarnado no partenaire adequado.

É ele que comunga a crença, ou a superstição, que supõe que seu destino está marcado desde o lugar de um Outro maligno chamado vitimário. Posição fantasmática que tenta evitar sua responsabilidade subjetiva no relato que o concerne. A análise ensina que o passível de ser modificado é o relato que cada um se faz acerca de sua novela familiar. “Modificar o passado”, escreveu J. L. Borges, “não é modificar um só fato: é anular suas consequências que tendem a ser infinitas”.

O que é um irmão?

Para delinear uma resposta, tomo como referência uma obra de teatro, versão folclórica da lenda de Abel e Caim, intitulada Terrenalpequeno mistério anarquista, de Mauricio Kartun.[1]

Segundo Flavio Josefo, historiador romano do ano 90 A. C., Caim significa “possessão” e Abel significa “nada”.

Os bíblicos irmãos expressam a rivalidade estrutural, demoníaca, entre dois eu, onde um encarna a possessão e o outro encarna o nada.

Na obra, se capta que uma das causas do ódio de Caim, que culmina no assassinato de Abel, se funda na preferência de Deus Pai para com este último.

No texto vai sendo gerado, a partir dos diálogos, um clima que vai antecipando o desenlace fatal. Transita-se um trajeto lento, mas irremediável, que vai desde a agressividade íntima à agressão mortífera.

Paradoxalmente, é Caim quem tenta honrar os mandamentos paternos, sendo Abel o rebelde para com os mesmos.

A isso, é preciso agregar a distinta valorização a respeito do ter, do acumular bens, que está no fundamento – nesse caso – da rivalidade fraterna.

“Nós dois nunca nos entendemos”, diz Caim.

“Deveríamos. Porque essa é a lei primeira. Somos irmãos”, responde Abel.

O autor põe na boca deste uma sentença que define como, no laço fraterno, se põe de manifesto a agressividade.

Diz Abel: “Somos irmãos aos golpes”.

O drama cresce até o momento em que Caim, provido de uma arma, se dispõe a matar Abel. Nesse instante, Deus-Pai faz sua aparição. Sua fala introduz, por um instante, uma aresta simbólica que posterga o ato assassino.

Mas o assassinato se consuma. Ao consumar-se o assassinato, Deus-Pai diz a Caim: “”Lutar é ser par. O bofetão é vida. Sem choque não há faísca. Nada se move sem combate”. “A miséria não é lutar, a miséria é matar o par. O um cresce do a dois. O dois lutando é harmonia”.

Caim é ejetado para a solidão do exílio, mudando de vitimário à vítima …, vítima de seu gozo. “Tu és a tua sentença”, diz Deus-Pai, “Tu és o fruto do que plantastes”.

O não dialetizável do ódio fraterno põe de manifesto como a violência, efeito da singularidade do gozo, do mortífero da pulsão de morte, transborda a precariedade dos limites simbólicos, denunciando, nesta ocasião, a exaltação do Eu e a inexistência do Outro da lei.

O mundo atual promove uma idealização do eu ao tentar situá-lo como o Sujeito Suposto Saber do gozo. Quem disse eu sou eu se afirma em um delírio de identidade[2]posicionando-secomo vitimizado, logo encontrará seu vitimário.

Um novo mandamento, orientado pela pulsão, assoma: “Odiarás teu próximo como a ti mesmo”. Expressão retórica que afirma que em cada sujeito habita um Caim.

Esta matriz, presente nos assuntos de família, produz enredos na prática, põe de manifesto a presença do Outro feroz, portador de um gozo obscuro que habita o sujeito, embora se esconda sob o semblante do amor familiar.

O sujeito perturbado que costuma se apresentar como vítima do Outro, permite captar a hiância entre o real e a realidade, assim como a hiância entre uma vítima e outra.

“Para milhões e milhões de seres humanos, o verdadeiro inferno é a terra “, diz Arthur Schopenhauer.

Tradução: Vera Avellar Ribeiro

NOTAS

  1. Kartun, M. Terrenal. Pequeño misterio ácrata. Buenos Aires: Atuel. 2014.
  2. Miller, J.-A. Donc. Buenos Aires: Paidós. 2011, p. 119.

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