ÓDIO/ODIO

LACAN, J. As flutuações da libido. In: O Seminário, livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 209.

“Explicar as coisas assim, quer dizer que é de uma maturação interna ligada à evolução vital do sujeito que depende o preenchimento, e mesmo o transbordamento, da hiância primitiva da libido do sujeito imaturo. A libido pré-genital é o ponto sensível, é o ponto de miragem entre Eros e Thánatos, entre o amor e o ódio. É a maneira mais simples de fazer compreender o papel crucial que desempenha a libido dita de-sexualizada do eu na possibilidade de reversão, de viragem instantânea do ódio em amor, do amor em ódio. É o problema que pareceu colocar a Freud o maior número de dificuldades a resolver – reportem-se ao seu escrito Le Moi et le Soi….”

LACAN, J. Primeiras intervenções sobre Balint. In: O Seminário, livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 235.

“O caráter controla as relações do homem aos seus objetos. O caráter significa sempre uma limitação mais ou menos extensiva das possibilidades de amor e de ódio. Portanto, o caráter significa limitação da capacidade for love and enjoyment, para o amor e para a alegria…”

LACAN, J. A verdade surge da equivocação. In: O Seminário, livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 309.

“Sabemos que a dimensão da transferência existe de cara, implicitamente, antes de qualquer começo de análise, antes que a concubinagem que é a análise a desencadeie. Ora, essas duas possibilidades do amor e do ódio não vão sem essa terceira, que se negligencia, e que não se nomeia entre os componentes primários da transferência – a ignorância enquanto paixão. O sujeito que vem para a análise se coloca entretanto, como tal, na posição daquele que ignora. Nenhuma entrada possível na análise sem essa referência – não se diz isso nunca, não se pensa nisso nunca, quando ela é fundamental.”

LACAN, J. O conceito da análise. In: O Seminário, livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 315-316.

“Bem, o ódio, é a mesma coisa. Há uma dimensão imaginária do ódio, na medida em que a destruição do outro é um pólo da estrutura mesma da relação intersubjetiva. É, eu lhes indiquei, o que Hegel reconhece como o impasse da coexistência de duas consciências, donde ele deduz o seu mito de luta de puro prestígio. Aí mesmo, a dimensão imaginária é enquadrada pela relação simbólica, e é por isso que o ódio não se satisfaz com o desparecimento do adversário. Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento, seja a sua desorientação, o seu desvio, o seu delírio, a sua negação detalhada, a sua subversão. É nisso que o ódio, como o amor, é uma carreira sem limite”.

“… Não obstante, os sujeitos não têm, nos nossos dias, de assumir o vivido do ódio no que pode ter de mais abrasador. E por quê? Porque já somos muito suficientemente uma civilização do ódio. O caminho da corrida para a destruição não está verdadeiramente bem traçado entre nós? O ódio se reveste no nosso discurso comum de muitos pretextos, encontra racionalizações extraordinariamente fáceis. Talvez seja esse estado de floculação difusa do ódio que satura em nós o apelo à destruição do ser. Como se a objetivação do ser humano na nossa civilização correspondesse exatamente ao que, na estrutura do ego, é o pólo do ódio”.

“Entendam bem que, falando-lhes de amor e de ódio, eu lhes designo as vias da realização do ser, não a realização do ser, mas somente suas vias”.

LACAN, J. A significação do falo no tratamento. In.: O Seminário, livro 5: As Formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 452.

No parágrafo anterior, Lacan comenta a linha superior do grafo do desejo.

“É para fixar alguma coisa que falo aqui de amor. O ódio, nesse caso, tem o mesmo lugar. É unicamente nesse horizonte que a ambivalência do ódio e do amor pode ser concebida. É também nesse horizonte que podemos ver chegar ao mesmo ponto um terceiro termo, homólogo do amor e do ódio em relação ao sujeito, que é a ignorância”.

LACAN, J. A mediação fálica do desejo. In.: O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016, p. 139-140.

No parágrafo anterior Lacan está comentando sobre a fantasia de espancamento, “bate-se numa criança”, precisamente a primeira fase: “o pai bate na criança que eu odeio”.

“Eis-nos, portanto, conduzidos por Freud do ponto inicial até o âmago mesmo do ser, ali onde se situa a qualidade mais intensa do amor e do ódio. Com efeito, a outra criança está representada aqui como submetida, pela violência, pelo capricho do pai, ao máximo da degradação, da desvalorização simbólica, como absolutamente frustrada, privada de amor. O ódio a visa no seu ser, visa nela o que é demandado para além de toda demanda, a saber, o amor. A chamada narcísica cometida aqui contra o sujeito odiado é total”.

LACAN, J. De uma função para não escrever. In.: O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 98.

Essa passagem se encontra na discussão que Lacan faz da Carta Roubada.

“O ministro, por ter sido apanhado, foi apanhado, mas isso lhe indiferente […], ou então, se realmente nutrir por ela um desses sentimentos que são da ordem do que chamo, por minha vez, de o único sentimento lúcido, a saber, o ódio, como lhes expliquei muito bem, se ele a odiar, ela só fará amá-lo ainda mais, e isso lhe permitirá ir tão longe que, de todo modo, ele acabará desconfiando que a carta já não existe há muito tempo”.

CÓLERA/COLERA

LACAN, J. A angústia na rede dos significantes. In.: O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 23.

“A cólera, eu lhes disse, é o que acontece nos sujeitos quando os pininhos não entram nos buraquinhos. O que quer dizer isso? É quando, no nível do Outro, do significante – ou seja, sempre, mais ou menos, no nível da fé, da boa fé –, não se joga o jogo. Pois bem, é isso que provoca a cólera”.

LACAN, J. De uma função para não escrever. In.: O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 97.

“Ou seja, de que, pelo simples fato de ter passado pelas mãos de Dupin, a carta o feminizou, por sua vez, o bastante para que seja exatamente nesse momento que ele não consegue se conter e manifesta uma certa raiva do ministro, o qual acredita já ter posto alguém à sua mercê o bastante para não deixar mais vestígios, mas que é tal que ele, Dupin, sabe tê-lo privado daquilo que poderia permitir-lhe continuar a desempenhar seu papel, se algum dia lhe fosse preciso mostrar suas cartas”.

Lacan, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. P.129,130.

A psicologia dos afetos, teremos, talvez, um dia, de estudá-la juntos. Gostaria simplesmente, para forçar o caráter inadequado do que foi efetuado nessa ordem até hoje, e especialmente na análise, de propor-lhes incidentemente alguns temas de meditação, por exemplo, sobre um afeto como a cólera. São pequenos exercícios práticos, laterais, que lhes forneço. O emprego das categorias precisas às quais os incito a se referirem poderia, talvez, explicar porque na história da psicologia e da ética, se interessaram tanto pela cólera e porque nos interessamos tão pouco na análise.

O que Descartes, por exemplo, articula sobre a cólera satisfaz plenamente a vocês? A hipótese de trabalho que lhes sugiro, a qual seria preciso ver se cola ou se não cola, é a de que a cólera é certamente uma paixão que se manifesta por meio de tal correlato orgânico ou fisiológico, por meio de tal sentimento mais ou menos hipertônico, e até mesmo relativo, mas que necessita, talvez, como que de uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real. Em outros termos, a cólera está essencialmente ligada ao que expressa essa fórmula de Péguy, que o disse numa circunstância humorística – é quando as cavilhazinhas não entram nos furinhos.

Reflitam sobre isso e vejam se pode servir-lhes. Isso tem todo tipo de aplicação possível, até mesmo e inclusive de se ver aí o índice de um esboço de organização simbólica do mundo nas raras espécies animais em que se pode efetivamente contestar algo que se assemelhe com a cólera. Pois é bastante surpreendente que a cólera esteja notavelmente ausente do reino animal no conjunto de sua extensão.

Lacan, J. (1985 [1963-64]). O Seminário, livro11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

“A transferência negativa, é-se mais prudente, mais temperado, na maneira que se tem de evocá-la, e não se a identifica jamais com o ódio. Emprega-se antes o termo ambivalência, termo que, mais ainda que o primeiro, mascara muitas coisas, coisas confusas cuja manipulação não é sempre adequada” (p. 120, 1o parágrafo).

“As pulsões nos necessitam na ordem sexual – isso, isso vem do coração. Para nossa maior surpresa, ele (Freud) nos ensina que o amor, do outro lado, ele vem do ventre, é o que é rom-rom.

Isto pode surpreender, mas nos esclarece sobre algo fundamental à experiência analítica, é que a pulsão genital, se ela existe, não é de modo algum articulada com outras pulsões. E isto, malgrado a ambivalência amor-ódio. Em suas premissas, e em seu próprio texto, Freud se contradiz propriamente quando ele nos diz que a ambivalência pode passar por uma das características da reversão da Verkehrung da pulsão. Mas quando ele examina, ele nos diz mesmo que não são de modo algum a mesma coisa, a ambivalência e a reversão” (p. 179, 2o e 3o parágrafos). 

“A reversão da pulsão é coisa completamente diferente da variação de ambivalência que faz passar o objeto do campo do ódio ao do campo do amor e inversamente, conforme ele seja ou não aproveitável para o bem-estar do sujeito” (p. 196, 1o parágrafo). 

LACAN, J. Seminário livro 17 O avesso da psicanálise. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1992, p.128.

“… O analista – chegarei a dizer que pude xperimentá-lo em mim mesmo? -, o analista não tem essa paixão feroz que tanto nos surpreende quando se trata de Yahvé. Yahvé se situa no ponto mais paradoxal em relação a uma outra perspectiva que seria, por exemplo, a do budismo, em que se recomenda purificar-se das três paixões fundamentais, o amor, o ódio e a ignorância…”

LACAN, J. Seminário livro 17 O avesso da psicanálise. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 131.

“O ponto importante é o uso do ‘ich de que falávamos outro dia. A novidade de Oséias, se entendi bem, é, em suma, esse chamado de um tipo bem particular. Espero que todo mundo vá procurar uma pequena Bíblia para ter uma ideia do tom de Oséias. É uma espécie de fúria invectiva, realmente tripudiante, a da palavra de Yahvé falando a seu povo em um longo discurso. Quando falei de Oséias antes de ter o livro de Sellin, disse – Eu, em Oséias, nunca li nada que se pareça nem de longe com o que Sellin achou, mas em compensação assinalei de passagem a importância da invectiva, da imputação de ritos de prostituição sagrada que vai de uma ponta a outra, e em contraposição, uma espécie de exortação pela qual Yavé se declara o esposo. Pode-se dizer que é aí que começa essa longa tradição, bastante misteriosa em si mesma, cujo sentido não me pareceu com evidência que pudéssemos realmente situar, que fez de Cristo o esposo da Igreja, e da Igreja, a esposa de Cristo. Isso começa aqui, não há rastro disso antes de Oséias”.