O erro comum como defesa ante o real.

É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. Sua paixão, a do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado.
Jacques Lacan[1].

A psicanálise sustenta o impossível da relação sexual como o real da psicanálise; real que é da ordem do traumatismo ou, como Lacan o denominou, do troumatisme, aludindo ao vazio de significação proveniente do impacto do real.

A questão para pôr em debate nesta conversação, é o modo de abordar e assumir a sexualidade, enfrentar o desejo, o amor e o gozo, e os efeitos no corpo que o discurso de gênero sustenta.

A relação com o próprio gozo, tanto para o sujeito masculino como para o feminino, coloca sempre uma relação perturbada, nos diz Lacan, entre o ser falante e seu corpo. Lacan passa este gozo sexual ao escrito, no sentido de que cada um guarda uma relação particular com este gozo e é com este com quem se faz uma parceria; é isso justamente o que faz a barreira à relação “direta” entre os sexos.

A dificuldade reside em aceitar o significante que dará conta da diferença sexual anatômica.

“A presença ou ausência de pênis não é um dado natural, senão um dado significante e por esta razão a diferença sexual anatômica traz consequências no nível da lógica dos gozos e da constituição do desejo de um e do outro lado.”[2]

Quando Lacan se refere à mal-dição do sexo em Televisão, não o faz nos termos da etimologia, mas sim em termos lógicos, entendendo mal-dição como o impossível, e esta impossibilidade é que entre os sexos femininos e masculinos não existe uma proporção que permita uma relação. “O que têm em comum a maldição e o impossível é que os dois termos designam algo que escapa ao alcance do sujeito”. É no Seminário 20, Mais, ainda, onde ele desenvolve esta falha fundamental da estrutura – a não relação sexual –, a partir das elaborações sobre a sexualidade feminina, sobre o gozo feminino, porque não há como nomear a mulher sem que se a mal-diga, ou seja, que só se pode nomeá-la desde o lado masculino, do lado fálico, portanto, a se mal-diz.

A sexuação, para Lacan, assume-se a partir do significante fálico, isto é, dependerá da maneira como cada sujeito, independentemente do seu sexo biológico, se localize em relação a este significante; o sujeito escolhe, de uma maneira insondável, acerca do significante e do gozo. Mas a questão crucial tem a ver com o estrutural do feminino, enquanto encarna o real impossível de ser nomeado, situa-se para além do sentido e do nome.

“De fato, a clínica demonstra até que ponto as posições sexuadas são ambíguas e vacilantes em função do companheiro que está em frente e em função da estrutura”[3].

Todos os sujeitos, seja qual for sua anatomia, estão localizados no lado masculino, porém, para a mulher, as coisas se complicam, há um dualismo, que concerne ao parceiro sexual e aos filhos. A mulher tem distintos modos de abordar o falo, e aí está a coisa toda. “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá a toda. Mas há algo mais”[4].

Há, para uma mulher, sempre “algo mais”, algo para além desse lugar de objeto a pelo qual é tomada segundo o fantasma de seu parceiro, algo que aloja seu ser feminino e ao qual o homem deve consentir. Esse algo mais Lacan propõe escrever como Ⱥ. “É a instância que um homem não pode apontar em seu fantasma; entretanto, que ele leve em conta esse Ⱥ, é o melhor que ele pode fazer por amor a uma mulher: aceitar que ela seja Outra, radicalmente estrangeira para ele, heterogênea ao fantasma que sustenta seu desejo de homem”.

Sem dúvida, o encontro com a diferença sexual anatômica produz um efeito de subjetivação particular para cada sujeito. Mas não se trata de ter ou não ter pênis, mas sim de a mulher ser não-toda fálica.

Se existe Outro radical, o propriamente hetero para ambos os sexos, inclusive esse gozo feminino que nem sequer se inscreve no significante, então não há partenaire complementar. O inconsciente não sabe do feminino porque não está inscrito. Este impasse é o que, por sua vez, permite as ficções ao redor do partenaire. O real como impossibilidade da relação sexual, produz ficções pseudo-sexuais, edípicas que servem como instrumentos para construir o fantasma e se alojam em um gozo. O fantasma, ao ser uma significação cristalizada, garante a estabilidade com a que se sustenta uma realidade e é desta maneira que se pode entendê-lo “como trejeito do real”[5].

O que está implícito na noção de gender é a possibilidade de atribuir uma palavra amo às diferentes variedades de gozo, deixar de lado a diferença do binário masculino e feminino e postular uma pluralização sob o significante gênero, com a aspiração de encontrar uma identidade sexual “livremente determinada”, a salvo das influências culturais e sociais. Implica também, portanto, “mudar de gênero”, para livrar-se do “lastro” do real do gozo do corpo, sempre mais ou menos distante, extimo, estranho, inominável. Precisamente, este é o campo da psicanálise.

Os esforços nominalistas dos estudos de gênero por alcançar a chamada identidade são vãos no sentido de que a supracitada identidade não evita a divisão do sujeito frente ao amor, o desejo e o gozo.

Diz Lacan, no Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante: “a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, ‘homem’ e ‘mulher’. É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é próprio do destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres. Para compreender a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher e vice-versa. Nada nos permite abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento”[6].

A experiência falante tem a ver com as contingências em relação ao seu encontro com o gozo, e o Outro sexo, para além da anatomia.

“Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. É isso que constitui a relação com a outra parte. É à luz disso, que constitui uma relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-homem. Desse parecer-homem, um dos correlatos essenciais é dar sinal à menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na dimensão do semblante.”[7]

O que ordena esse jogo de semblantes é o falo, o semblante por excelência tanto para os meninos quanto para as meninas “Para os homens, a menina é o falo, e é isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o falo, e ele é também o que as castra, porque elas só adquirem um pênis, e isso é falho. No começo, nem o menino nem a menina correm riscos, a não ser pelos dramas que desencadeiam; por um momento eles são o falo.”[8]

Pelo contrário, percebe-se que em muitos dos estudos culturais dedicados ao gênero a problemática sexual tende a diluir-se em discursos que outorgam prioridade aos direitos individuais ou a elaborações de índole social ou cultura. Como assinala M. Barros, o tratamento da questão sexual em termos de relações de poder é, na realidade, um empuxo “à desexualização do conflito”.[9]

Trata-se de algo que, ao seu próprio modo, igualmente se colocam as teorias performativas de Judith Butler e Jean Copjec. A esse respeito diz Butler: “Gostaria de sugerir que em todos os debates relacionados com a prioridade teórica da diferença sexual sobre o gênero, do gênero sobre a sexualidade ou da sexualidade sobre o gênero, subjaz outro tipo de problema, que é o problema que coloca a diferença sexual, a saber, a permanente dificuldade de determinar onde começa e onde termina o biológico, o psíquico, o discursivo e o social”[10].

Ou como diz J. Copjec: “As alternativas [entre] o sexo como substância/o sexo como significação, são as únicas possíveis? Se não for assim, que outra coisa pode ser o sexo? Ou existe um modo diferente de conceber a divisão dos sujeitos em dois sexos que não responda a uma heterossexualidade normativa? A identidade sexual se constrói da mesma maneira ou opera no mesmo nível que a identidade racial de classe; ou a diferença sexual difere destes outros tipos de diferença?”[11]

Como se observa, ambas as autoras se perguntam pela questão real do sexo. Podemos assinalar, junto com M. Barros[12], que a face real do sexo é o que não entra em nossos cálculos e que o usa da palavra “gênero” no lugar de “sexo” obedece a uma lógica repressiva que pretende expulsar a diferença dos sexos, a mesma que nunca se apresenta ante o sujeito sem angústia. “A posição subjetiva do ‘progressista’ mostra certo puritanismo latente. O forçamento da palavra ‘gênero’ expulsa o corpo e constitui o paradigma de um processo de neutralização e desexualização da linguagem. Instaura-se então uma retórica descafeinada que substitui ‘negro’ por ‘afro-americano’ ou impõe leis de cotas. Mas a diferença suprimida retorna da pior maneira através dos fenômenos de violência manifesta ou disfarçada”[13].

O debate basicamente se opõe a distribuição de masculino e feminino para os sujeitos repartidos pelo significante fálico. Deste ângulo, como assinala novamente M. Barros, “cabe estabelecer uma estreita relação entre sexuação e castração (…) Zizek adverte que o verdadeiramente promovido [por trás da pluralidade sexual] é o unissex (…) porém antes de recorrer ao fetiche cultural da dominação masculina devemos considerar a perspectiva da aspiração ao não-sexo, a um aquém da sexuação, a uma expulsão decididamente forclusiva do ‘sexuante'”[14]

Existe a tendência a sustentar que sem repressão não haveria dificuldades na sexualidade, seria possível o encontro entre os sexos, harmonia dos gozos, entretanto “… a função das palavras amo é também a de mortificar o gozo. Quando o S1 é reprimido, a mortificação do gozo-castração já não opera. A consequência no nível do corpo é decisiva. Já não há nenhum limite para a produção de objeto a mais de gozar. É a exploração a morte. Porque o que está implicado não é somente o ter senão também o ser. O sujeito, ao não estar identificado a nenhum amo em particular, está mais liberado da palmatória do amo absoluto”[15]. Como assinala Barros “[há ideais que regem nossa época] e são muito fortes. Podemos mencionar, entre outros, o ideal do direito à felicidade, o da igualdade dos gêneros, o do direito à autodeterminação dos sujeitos. Estes ideais podem constituir a condição para a repressão do sexual, ainda mais eficazmente que os da tradição”[16].

Esta é a exigência dos discursos de gênero: capturar com estes significantes os modos de gozo dos sujeitos “normalizando” suas escolhas como, por exemplo, com o chamado “falo lésbico”[17]. O que se obtém é deixar de lado o corpo como sexuado, aspirando, desse modo, a suprimir o mal-estar do corpo e do gozo no falasser.

Uma sujeito que se declara lésbica por achar “asqueroso” o pênis, fato que, segundo considera, é o único impedimento que encontra para ter uma relação com um homem – o que a impediu de ter suas primeiras experiências sexuais com rapazes –, acha que seu rechaço se deve ao temor de repetir o lugar passivo que a mãe tem em relação ao seu pai. A escolha lésbica fecha esta questão, mas não consegue obter prazer do corpo feminino e isso precisamente constitui o motivo da consulta. Segundo G. Morel: “o fato de que haja duas inscrições a respeito da significação fálica não contradiz a possibilidade de que um sujeito mantenha uma posição ambígua no caso da neurose, ou que se invente uma sexuação inédita e fora da norma, no caso da psicose”[18].

Em junho deste ano, a CNN divulgou a história de um transexual peruano que depois de viver por mais de 28 meses, com reconhecimento legal e matrimônio, agora solicita às autoridades que lhe devolvam legalmente o nome e o sexo com que nasceu. Diz que ao escutar a mensagem da Bíblia, caiu desmaiado e ao despertar não se reconheceu como uma mulher. Passou por uma série de cirurgias previamente autorizadas por médicos e psicólogos para voltar a ter aspecto masculino, e só lhe falta o reconhecimento legal. É agora um pastor que prega a palavra de Deus e quer salvar os homossexuais e lésbicas que caíram em pecado.

Na psicose, a falta de Nome do Pai, a identificação do sujeito “À mulher”, amarra o Simbólico e o Imaginário, mas o Real fica solto. A demanda de correção cirúrgica busca amarrar o Real com os outros dois. Como observa C. Millot, o sintoma transexual funciona como uma tentativa de aliviar a ausência de significante do Nome do Pai, na medida em que o transexual tende a encarnar A Mulher toda inteira, precisamente a que Lacan disse que não existe[19].

Na apresentação do tema do Congresso da AMP, disse Miller: “O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. É um furo no saber incluído no real. Lacan utilizou a linguagem matemática que é a mais favorável à ciência. Nas fórmulas da sexuação, por exemplo, procurou captar os impasses da sexualidade em uma trama lógico-matemática. (…) [Porém] isso é uma construção secundária que intervém depois do choque inicial do corpo com a lalíngua que constitui um real sem lei, sem regra lógica. A lógica se introduz somente depois, com a elucubração, a fantasia, o sujeito suposto saber e a psicanálise.”[20]

Assim se expressa Hélène Cixous: “Predizer o que acontecerá com a diferença sexual dentro de um tempo outro (dois ou trezentos anos?) é impossível. Mas não há que enganar-se… não se pode seguir falando da mulher e do homem sem ficar presos nos adereços de um cenário ideológico no qual a multiplicação de representações, imagens, reflexos, mitos, identificações, transforma, deforma, altera sem cessar o imaginário de cada um e, de antemão, torna caduca toda conceitualização”[21].

A deriva sexual desse século é tomada pelo discurso de gênero assim como pela tecnologia científica, que sustenta uma diversidade sexuada baseada na genética e/ou na anatomia tratando de produzir um sujeito universalizável. Não podemos desconhecer o debate que está nos discursos de gênero, as mudanças na ordem simbólica, para além do que escutamos em nossa prática analítica, onde os sujeitos homossexuais de alguma maneira se atribuem estes postulados que deixam de lado a divisão que produz o encontro com o desejo, o gozo e o Outro sexo.

Acrescenta Miller na apresentação do tema do nosso Congresso de 2014: “Porém, no século XXI, cabe à psicanálise explorar outra dimensão: aquela da defesa contra o real sem lei e fora de sentido. Lacan indica essa direção com sua noção do real tal como Freud o faz com o conceito mítico da pulsão”[22].

Não há saber no real. Há uma constância nessa variabilidade mesma que indica que não há um saber prescrito no real e que a contingência decide o modo de gozo do sujeito. O real da não relação sexual, da incompatibilidade dos sexos.

A orientação da psicanálise é uma demonstração do impossível pela contingência, uma aposta do ato analítico que, via transferência, possa pôr ao trabalho em um analisante as saídas sintomáticas frente ao seu encontro singular com o “erro comum”.


Bibliografía

  1. Lacan, J. O Seminário, livro 19, …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p.17.
  2. Barros, Marcelo. La condición Femenina. Buenos Aires: Editorial Grama, 2011. p 58.
  3. Idem, p. 77.
  4. Lacan, J. O Seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 80.
  5. Lacan, J. Televisão. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 511.
  6. Lacan, J. O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 30-31.
  7. Idem, p. 31
  8. Idem, p. 33.
  9. Barros. Marcelo. Psicopatología: clínica y Ética. Fabián Schejtman (comp.). Buenos Aires: Editorial Grama, 2013, p.253.
  10. Butler, J. Deshacer el género. Barcelona: Editorial Paidós, 2006, p 262.
  11. Copjec, J. Imaginemos que la mujer no existe. Buenos Aires: Fondo de cultura Económica, 2006.
  12. Barros, M., op. cit, p. 252
  13. Ibidem, p. 257.
  14. Ibidem, p. 258.
  15. Aflalo, A. El Orden simbólico en el siglo XXI. Volumen de VIII Congreso de la AMP. Buenos Aires: Editorial Grama, 2012, p 270.
  16. Barros, M. op. cit, p. 250.
  17. Braidotti, R. Metamorfosis. Madri: Ediciones Akal, 2005.
  18. Morel, G. Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manantial, 2002.
  19. Millot, C. Ensayo sobre transexualismo. Barcelona: Ediciones Paradiso, 1984.
  20. Miller, J.-A. O real no século XXI. Opção Lacaniana. n. 63. São Paulo: Eolia, 2012.
  21. Cixous, H. La risa de Medusa. Barcelona: Anthropos Editorial, 2001, p 19.
  22. Miller, Idem.