I
Bipolaridade tornou-se palavra de uso comum, corriqueiro, falada nas ruas, mídia, consultórios. ‘Ser bipolar’ não produz espanto. Pelo contrário, em meio às variações ciclotímicas da economia global proliferam, na net, comunidades de bipolares e, na psiquiatria, diagnósticos de bipolares. Há uma epidemia bipolar. Todos bipolares? [2] A bipolaridade parece ter se transformado num modo privilegiado de nomear o dasein e o sosein pós-modernos.

O termo é utilizado em áreas diversas: botânica, física, política, economia, medicina.[3] O sucesso atual se deve à difusão do discurso da ciência. Toc, pânico, depressão, tdah, autista, bipolar se difundiram da psiquiatria para o domínio público. Significantes da moda, sofrem da vulgarização dos termos usados fora de seu campo e modulam a percepção do homem contemporâneo sobre si mesmo. Há uma invasão da psicopatologia na vida cotidiana e, correlativamente, uma tendência à psiquiatrização das relações sociais.

Na psiquiatria, não se utiliza o substantivo bipolaridade, mas o adjetivo bipolar. O Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), criado por Leonhard em 1957, adotado em 1980 no DSM III e em 1992 no CID 10 substituiu a Psicose Maníaco-Depressiva (PMD), termo outrora consagrado, mas que definhou. Por um lado, em função dos postulados das novas classificações de serem descritivas, ‘ateóricas’, evitando a utilização de termos ‘problemáticos’ como psicose, neurose, histeria, doença, e optando por termos mais neutros como distúrbios ou transtornos. Por outro, pela constatação de que, entre pacientes diagnosticados como PMD, não ocorriam, necessariamente, manifestações psicóticas como delírios e alucinações.

O TAB (F 31) é classificado, no CID 10, entre os transtornos de humor (afetivos) ( F30 – F 39), “nos quais a perturbação fundamental é uma alteração do humor ou do afeto, no sentido de uma depressão com ou sem ansiedade associada ou de uma elação que se acompanha, em geral, de uma modificação do nível global de atividade. A maioria dos outros sintomas é secundário às alterações do humor e da atividade ou facilmente compreensível no contexto destas alterações. Tendem a ser recorrentes. [4]

TRANTORNOS DE HUMOR (AFETIVOS)
CID 10
EPISÓDIO MANÍACO
F 30
TRANSTORNO BIPOLAR
F 31
EPISÓDIO DEPRESSIVO
F 32
TRANSTORNO DEPRESSIVO RECORRENTE
F33
TRANSTORNO DE HUMOR PERSISTENTE
F 34

O critério utilizado é a evolução: episódica (episódio depressivo ou maníaco isolado), recorrente (uni ou bipolar) ou persistente. Como os demais transtornos do grupo, o TAB tem tipos, classificados de acordo com sua apresentação atual, gravidade e presença ou ausência de manifestações psicóticas.

Até o DSM II e o CID 9, a classificação era baseada nas distinções estabelecidas pela clínica psicodinâmica para a qual existiam três categorias bem diferenciadas onde estas síndromes se incluíam. No caso das depressões: reativas, neuróticas e psicóticas. A partir dos anos 80 a psiquiatria passou a abordar os transtornos de humor não a partir do funcionamento subjetivo e da estrutura (como a psicanálise) ou das modalidades de existência (como o existencialismo), mas na intensidade do humor. [5] Seriam variações quantitativas de uma função psíquica (afeto, humor), provocadas por variações quantitativas de neurotransmissores como serotonina e noradrenalina, de causas múltiplas, especialmente genéticas. É uma clínica calcada nos psicofármacos, capazes de modificar a neurotransmissão e interferir na função psíquica transtornada de forma independente da estrutura, da existência ou do sujeito.

Regularmente são lançados novos estabilizadores de humor, antidepressivos e antimaníacos. Reconhece-se a eficácia dos estabilizadores, mas pouco se sabe acerca de seus mecanismos de ação. Curiosamente, a maior parte são medicações antiepilépticas apesar de não haver relações causais demonstradas entre epilepsia e bipolaridade. [6] As demandas e ofertas terapêuticas, bem como as prescrições e a polifarmacoterapia aumentaram significativamente.

II
O TAB e suas variantes – mania e depressão/melancolia – tem uma longa tradição. São necessários cuidados para manejar termos tão antigos. É uma ilusão supor que o mesmo termo nomeie uma mesma ‘coisa’ em contextos tão diversos, como se estivesse ali desde sempre, imutável. De origem grega, mania significa loucura e melancolia, bile negra, uma referência a teoria hipocrática que acreditava que estados patológicos eram causados pelo desequilíbrio de humores do corpo. Atribui-se também a Hipócrates (460 aC – 370 aC) a primeira discriminação entre mania, melancolia e paranóia. Aristóteles (384 aC – 322 aC) associou a melancolia ao homem de gênio – a tristeza melancólica seria uma pré-condição da capacidade criativa e a criação uma resposta à dor de existir – inaugurando uma tradição que séculos mais tarde desembocaria em um culto da melancolia, como na literatura romântica do século XVIII.[7][8] Desde a antiguidade foram observadas as relações entre a melancolia e a mania, mas estas ‘doenças’ ficaram separadas até meados do séc. XIX. Em 1854, J. P. Falret e Baillarger descreveram, quase ao mesmo tempo, a mesma doença, chamada de loucura circular pelo primeiro e de loucura de dupla forma pelo segundoNa Alemanha, muitos autores estudaram a entidade sob o nome de psicose periódica.

Foi Kraepelin, em 1899, pela descrição e análise minuciosa dos estados de transição e das imbricações das crises maníacas e melancólicas, quem chegou à noção dos estados mistos e demonstrou a identidade destas duas formas. Agrupou todas as loucuras descritas como intermitentes, circulares, periódicas, de dupla forma ou alternadas em uma doença fundamental, e propôs classificá-las no quadro da loucura maníaco-depressiva, considerada um quadro essencialmente endógeno ou constitucional.[9] Nomeou a entidade como ‘loucura’ e não ‘psicose’ [10] e utilizou ‘melancolia’ e ‘depressão’ como sinônimos.[11]

loucura maníaco-depressiva “compreende, de um lado, o domínio completo da loucura periódica e da loucura circular e, de outro, a mania simples, a maior parte dos estados patológicos designados pelo nome de melancolia e também um número considerável de casos de amência. Classificamos aí, igualmente, algumas disposições de humor mais ou menos acentuadas ora passageiros ora duráveis que podem ser pensados como o primeiro grau de problemas mais graves e que, de outro lado, se baseiam sem limites nítidos com o conjunto das disposições naturais do indivíduo.” [12] Descreveu várias formas clínicas que, apesar da diversidade fenomênica, eram manifestações de um mesmo processo patológico. [13]

Mania Estado misto Melancolia
Hipomania Melancolia simples
Mania aguda Estupor
Mania delirante Melancolia grave
Mania confusa Melancolia paranoide
Melancolia fantástica
Melancolia confusa

A concepção ampla da loucura maníaco-depressiva, abarcando praticamente todos ‘transtornos afetivos’ não se estabeleceu sem controvérsias. Até 1900, Kraepelin diferenciava a depressão da loucura maníaco-depressiva, caracterizada por intensa inibição, de outras formas de depressão, marcadas pela agitação e angústia. [14] É um debate de seu tempo, que prossegue ainda hoje e que se traduz no contínuo remanejamento dos quadros e dos termos nas várias classificações e propostas de classificação como, mais recentemente, a de Akiskal e seu espectro bipolar que amplia ainda mais o campo bipolar. Freud participou deste debate ressaltando, em Luto e Melancolia (1915), o estatuto problemático da melancolia: “sua definição é variável, assume muitas formas clínicas, e seu agrupamento numa única unidade não parece ter sido estabelecido com certeza, algumas formas sugerindo afecções antes somáticas do que psicogênicas.” [15] “Sua característica mais notável e aquela que mais precisa de explicação é sua tendência de se transformar em mania, seu oposto, o que não acontece com toda a melancolia. Alguns casos seguem seu curso em recaídas periódicas, entre cujos intervalos sinais de mania estão ausentes. Outros revelam a alteração regular de fases melancólicas e maníacas que leva à hipótese de uma insanidade circular.” [16] Nas nosografias que formulou, o lugar da melancolia/ loucura maníaco-depressiva variou de acordo com o momento de sua teoria: neurose atual (diferenciada das psiconeuroses); psicose ou neurose narcísica, junto com a paranóia e a esquizofrenia (diferenciada das neuroses de transferência); neurose narcísica (diferenciada da psicose e da neurose).[17]

III
A questão psicanalítica não é nosográfica, mas nosológica, psicopatológica e referida ao sujeito. A psicanálise procura esclarecer a lógica própria destes transtornos mais do que encontrar seu justo lugar entre entidades mórbidas. Não propõe uma abordagem descritiva ou classificatória, mas psicológica e metapsicológica. Não concebe as alterações do humor e estados afetivos como alterações da regulação biológica do corpo, mas como efeitos da posição do sujeito. Não participa da forclusão do sujeito operada pela psiquiatria contemporânea.

Freud tratou da melancolia muito mais do que a mania e a bipolaridade. Desde os Rascunhos e a Correspondência com Fliess referia-se à melancolia. Os textos dedicados à mania são pouco numerosos: algumas páginas de Luto e Melancolia, de Psicologia das Massas e do Ego e o Id. Lacan é ainda mais econômico: nenhum seminário ou escrito dedicados especificamente a estes temas; apenas algumas linhas nos Complexos Familiares, Sobre a Causalidade Psíquica, Seminário 10, Televisão, RSI. [18]

Em Luto e Melancolia, Freud procura lançar alguma luz sobre a melancolia comparando-a ao afeto normal do luto.[19] Já o fizera 20 anos antes, no rascunho G: “o afeto correspondente à melancolia é o do luto – ou seja, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Deve tratar-se de uma perda, uma perda na área da vida instintual. Consiste em luto por perda da libido.” [20] A analogia permitia ressaltar as identidades e as diferenças e, apesar do seu pequeno valor comprobatório, parecia fecunda.

Advertia para o alcance limitado das suas conclusões, baseadas na observação de um pequeno número de casos de “melancolias indiscutivelmente psicogênicas” [21], termo que não definiu, mas que se referia aos quadros desencadeados por uma perda reconhecível. Diferindo do seu estilo habitual, não partia de um caso, mas de uma casuística, nem aplicava a psicanálise a um sujeito, mas a um quadro clínico. Não há na obra freudiana nenhum caso paradigmático de melancolia ou mania [22] Os traços que definem a melancolia freudiana são: um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição do sentimento de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando em uma expectativa delirante de punição”.[23] O luto, por sua vez, é definido como uma “reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido como o país, a liberdade ou o ideal de alguém”.[24] Exibia os mesmos traços da melancolia com exceção da perturbação da auto-estima. A melancolia freudiana é uma forma clínica bem definida. Na classificação kraepeliniana, corresponde à melancolia grave; no CID 10, ao episódio depressivo grave com sintomas psicóticos.[25]É uma das formas da melancolia, não toda a melancolia.

Num conjunto de casos, a melancolia constituía uma reação à perda do objeto amado ou à perda de natureza mais ideal. Em outros, entretanto, acreditava-se que uma perda desta espécie ocorrera, mas não se vislumbrava o que foi perdido, permanecendo uma incógnita. Mesmo quando cônscio da perda, o sujeito “sabia quem ele perdeu, mas não o quê perdeu”. [26] Diferente do luto, o desencadeante da melancolia podia ser obscuro, ‘endógeno’.

Freud analisa a melancolia sem referir-se a um caso concreto nem ao terreno onde a crise eclode. No artigo, sua perspectiva não é diacrônica, mas sincrônica. Tenta responder aos mistérios da melancolia, percorrendo-a em sua intimidade, microscopicamente. A melancolia é descrita não como um sintoma, formação do Ics que obedece às leis do recalque/retorno do recalcado como na neurose, mas como um efeito de perda no eu. [27] A variação de humor, por sua vez, é concebida como secundária à perda do objeto e aos efeitos desta perda, diferente da psiquiatria contemporânea que a concebe como primária.

Em termos lacanianos, o objeto de amor ocupa o lugar de onde o sujeito se vê como amável, como ideal de eu, I(a). É o traço do Outro que situa o eu ideal para o sujeito, i(a), o objeto imaginário amado pelo Outro e com o qual o sujeito se identifica. I(a) e i(a) são funções fundamentais que concernem à organização da subjetividade e do campo de realidade. São vértices do quadrilátero MimI que delimita o campo da realidade R conforme o Esquema R de J. Lacan.[28]

O buraco produzido no Outro pela perda do objeto provoca um abalo de I(a) e i(a), do circuito a-a’ em que se localiza o eu e seus objetos [29]e, portanto, um abalo profundo do funcionamento psíquico, da homeostasia, das relações consigo e com o mundo. O destino luto ou melancolia vai depender das formas de responder a este abalo. O luto relaciona-se essencialmente com i(a), com a imagem, com o objeto de amor em sua estrutura narcísica e corresponde à perda do objeto através de um carnaval imaginário e narcísico. [30] O –phi, velado até então pelo objeto, é desvelado e todo o processo vai mobilizar o enfrentamento da castração. Na melancolia, não existe um i(a) sustentado pela função fálica da castração e a perda do objeto faz o sujeito se deparar com a forclusão.[31] São duas formas de responder à perda o que permitiria dividir as depressões em dois grandes grupos segundo o mecanismo em jogo (o que Freud não fez por não ter formulado o mecanismo específico das psicoses).

“No ponto em que é chamado o NP pode, pois, responder no Outro um puro e simples furo [Po] , o qual, pela carência de efeito metafórico provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica [Φo] “.[32] “É a falta do NP neste lugar que, pelo furo que abre no significado dá início à cascata de remanejamento do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário”. [33] [34] “Está claro que se trata aí de uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. [35] O modelo utilizado por Lacan para explicar o desencadeamento de uma dementia paranoides pode ser aplicado, com nuances, no desencadeamento da melancolia. Não há, no caso, o ‘encontro com um pai’, [36] mas a perda de um objeto cuja subjetivação, metabolização e resolução dependem da função NP e de sua operação sobre a castração.

No lugar onde deveria estar o NP, a perda de objeto faz aparecer um ‘furo’ que abala a rede significante, as significações e o regime de gozo. Pelo furo aberto no psiquismo, a libido se esvai, como uma hemorragia libidinal. “O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta, atraindo para si as energias catexiais provenientes de todas as direções, e esvaziando o ego até este ficar totalmente empobrecido”.[37] Há um empobrecimento da excitação que percorre os neurônios e as reservas livres de libido [38] do que decorre uma mortificação do sujeito e do Outro. [39] Surge toda uma fenomenologia da dor, tristeza, vazio, inibição, da dor de existir. Uma clínica do vazio e não da falta.

O que é forcluído retorna no real na forma de ‘fenômenos elementares’, agrupados por Séglas na tríade dor moral – distúrbios cenestésicos – distúrbios intelectivos[40], que afetam todas as esferas se expressando como anomalias das sensações, sentimentos, representações, impulsos, vontade, ideação, sono, alimentação… O ‘trabalho melancólico’ que absorve e esvazia o ego permanece enigmático. A inibição pode ser generalizada, chegando até o estupor, e se expressa nas várias formas de negativismo do Delírio das Negações.[41]

A melancolia exibe uma diminuição extraordinária da auto-estima, um empobrecimento do ego, considerado desprovido de valor, incapaz de qualquer realização, moralmente desprezível. O sujeito se repreende, se envilece, quer ser expulso, punido, degrada-se perante todos. Uma parte do ego se coloca contra a outra, toma-a como objeto, julga-a criticamente e encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo. [42] Os delírios de desvalia, indignidade e culpa não são abordados, por Freud, a partir do ‘erro de juízo'[43], mas da verdade e da certeza. Se o paciente diz que seu ego é assim, é porque deve ser assim. Em sua autocrítica delirante, acusa-se por suas fraquezas, as fraquezas humanas. Por que um homem precisa adoecer para ter acesso a esta verdade?[44] É a lucidez melancólica diante de um real sem mediação. O delírio é uma tentativa de interpretar o estado do sujeito, de dar uma forma ao que se opera na estrutura. [45] É um delírio moral e ético.

Por detrás da crítica a si, Freud descobre a crítica ao outro: o sujeito, na verdade, ataca o objeto com o qual está identificado. A libido livre desligada do objeto não é usada para investir um novo objeto, mas retirada para o ego e empregada para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. “A sombra do objeto cai sobre o eu”.[46] O sujeito se torna um objeto, reduzido às suas sombras; é este objeto. Como pré-condições para tal processo de identificação, Freud supõe uma forte fixação ao objeto amado, a ambivalência, a escolha objetal de base narcisista e a regressão da libido à fase oral. A catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, retrocederia ao narcisismo; a identificação narcisista seria um substituto da catexia erótica.[47] Isto coloca em questão a formação do ‘eu melancólico’ (bem como do ‘eu maníaco’) os avatares de suas identificações primárias e secundárias bem como a constituição de sua imagem especular. [48]

Quando o ideal do eu que vinha suprir a forclusão é abalado, o eu perde o revestimento narcísico e se evidencia seu estatuto de objeto fora de qualquer pontuação fálica, objeto a como furo, como vazio, como rebotalho, como real, equivalente à forclusão.[49] Perdendo as vestes narcísicas, a imagem cai e o sujeito se vê identificado com o objeto/dejeto, se torna este oco sem consistência, este nada.

Diferente do regime de luto, em que o sujeito pode perder o que perdeu, na melancolia o sujeito fica colado ao objeto, identificado, não pode perdê-lo. É um efeito da forclusão, na medida em que ela implica a não-operação da castração, pois é a castração que reordena, retroativamente, os estágios libidinais em uma operação que possibilita a separação e a extração dos objetos do corpo. “Os objetos a se inscrevem no lugar da castração, no coração do objeto a existe o menos phi” [50] A vigência da forclusão, na melancolia, vai resultar em uma modificação profunda do regime dos objetos a o que produz certos fenômenos clínicos. Nos sintomas hipocondríacos, o objeto fica colado a um órgão/região do corpo ou em uma errância, sem limites ou localização como na cenestopatia. Na auto-mutilação, o melancólico tenta retirar à força aquilo que não foi extraído pela via simbólica. Também decorrem da não-extração os fenômenos alucinatórios, pseudo-alucinatórios e interpretativos associados, predominantemente, a esfera visual e auditiva, mas que podem afetar todos os sentidos. Os objetos pulsionais, naturais – oral, anal, fálico, voz, olhar – sofrem uma mudança de estatuto durante o episódio melancólico. Da mesma forma, modifica-se o acesso e usufruto dos objetos da cultura. [51]

Se a castração é a causa do desejo e, em razão de uma equivalência substitutiva, o objeto a é causa do desejo, a não extração do objeto, na melancolia, vai perturbar profundamente sua função de objeto-causa.[52] Há uma abolição do desejo, uma experiência do não-desejo ou desejo de nada, um rechaço do Ics que se reflete na posição de imobilidade petrificada do melancólico. O sujeito recua do dever ético de bem dizer seu desejo[53] simplesmente porque não há mais desejo a sustentá-lo. No suicídio melancólico, o sujeito se identifica com o buraco que falta no Outro. Ele é sem apelação, pois não visa completá-lo, é um suicídio de separação: o sujeito toma licença da cadeia significante, não se faz mais representar, defenestra-se, caindo juntamente com seu objeto.[54] A passagem ao ato não engana, é uma saída da cena que não deixa mais lugar à interpretação, ao jogo significante. [55]

IV
Diferente de outras psicoses, a melancolia freudiana tem um curso fásico, cíclico e bipolar: pode evoluir para a cura, recorrer ou polarizar-se para a mania. O que determina um curso ou outro? Como ela se cura depois de certo tempo? O que ocorre nos intervalos livres? Como se inverte em mania? Para Freud, é imperioso estender uma explanação analítica também para estas questões, mas afirma que não conseguirá fazê-lo. [56]

A mania é o oposto da melancolia em seus sintomas.[57] O conteúdo de ambas não difere; apesar das aparências, lutam com o mesmo ‘complexo’. Na melancolia, o ego sucumbe ao processo, na mania domina-o ou o põe de lado. Não definida diretamente, a mania pode ser inferida: “ânimo exaltado, um grande interesse pelo mundo externo, o aumento da capacidade de procurar objetos, a hiperatividade, aumento dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-engrandecimento, culminando em delírios de grandeza.” Freud compara a mania com a festa. Os estados como alegria, exultação e triunfo dependem das mesmas condições econômicas: um dispêndio de energia se tornou desnecessário e agora está disponível para ser aplicada e descarregada de várias formas. A perspectiva econômica tenta esclarecer a radical mudança de regime libidinal do circuito bipolar.

O humor maníaco é tomado, no plano do afeto, como uma alegria e um alvoroço aparentemente imotivados. No plano da conduta, como levantamento da inibição. A alegria da transgressão passa a ser a chave da mania como era a dor da perda na melancolia. A festa é uma colocação em suspenso periódica e socialmente organizada das proibições e limitações que regulam as pulsões. É um momento de liberação. A festividade maníaca se deixa conceber como a derrota da instância que censura em proveito da afirmação narcisista, triunfal e orgiástica das exigências pulsionais.[58] Se, na melancolia, a imagem é de um buraco por onde a libido se esvai, na mania, a imagem é de uma erupção que esparrama libido.

Freud não considera o afeto maníaco como um fenômeno primário, mas efeito de uma causa anterior. O júbilo maníaco seria efeito da cessação do gasto psíquico com o ‘trabalho melancólico’. “O ego deve ter superado a perda do objeto ou talvez o próprio objeto e, consequentemente, toda a quota de anticatexia que o penoso sofrimento da melancolia tinha atraído para si, vinda do ego terá se tornado disponível, convertendo-se em energia liberada em afeto na transgressão.” [59] A mania derruba as instâncias de controle, suas exigências são momentaneamente suprimidas. Mas aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual triunfou permanecem ocultos.

A mania freudiana, de acordo com a definição dada, pode ser classificada como mania aguda ou mania delirante na classificação kraepeliniana e como mania com sintomas psicóticos no CID 10. [60] Sua fenomenologia é exuberante: exaltação, inquietação, aceleração, loquacidade, hipersensibilidade, instabilidade, alegria, furor, agressividade, delírios de grandeza, filiação, invenção, místicos, associação por assonância, insônia, inapetência, aumento da disposição, etc. Lacan reduz toda a profusão desta fenomenologia a uma expressão: a excitação maníaca, “retorno no real daquilo que foi rechaçado da linguagem (do inconsciente) e que se faz mortal.” [61] Menos do que a entidade mania, Lacan aponta para certo tipo de fenômeno.

A mania freudiana se inscreve na estrutura psicótica. O que foi rechaçado da linguagem e do inconsciente, isto é, forcluído, retorna no real. Os fenômenos de ‘retorno no real’ afetam profundamente a experiência psíquica, a vivência de si, do corpo, espaço, tempo, desejo, fala. A fuga de idéias evidencia a ruptura do encadeamento significante, a falha da função do ponto de capitonê. O maníaco pode dizer qualquer coisa o que é diferente da associação livre. “Os significantes maníacos, longe de encontrar seu sentido entre a retroação e a antecipação, se justapõem de forma não orientada, desobrigada da semântica. [62] O sujeito fica disperso no infinito da linguagem que o atravessa, no automaton de signos do qual ele é marionete. Não se localizando, não pode parar nem reconhecer-se, fica à deriva. É a não-função do que está em causa, e não simplesmente seu desconhecimento. O sujeito não se lastreia em nenhum a, o que o deixa entregue, às vezes, sem nenhuma possibilidade de libertação, à metonímia pura, infinita e lúdica da cadeia significante.” [63] [64]

Um dano no nível do discurso é sempre um dano na regulação do gozo. Na excitação maníaca não existe apenas desenganche da palavra e desordem da historicidade, como também a comoção da homeostasia do vivente, que reduz as necessidades vitais do corpo, que o faz infatigável, insone, animado por uma vida paradoxal capaz de levá-lo a morte. A excitação maníaca é um gozo que a função fálica não regula e na qual o corpo é assediado pelos múltiplos da linguagem no real.[65] O sujeito não cessa de obturar o buraco do simbólico, sem integrá-lo. [66]

Ao abordar ‘as paixões da alma’ [67] [68], especificamente, a tristeza, Lacan afirma que “a tristeza, qualificada de depressão (…) não é um estado de alma, é simplesmente uma falha moral, como se exprimiam Dante e até Espinosa: um pecado, o que significa uma covardia moral, que só é situado, em última instância, a partir do pensamento, isto é, do dever de bem dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura. E o que se segue – bastando que essa covardia, por ser rechaço do inconsciente, chegue à psicose – é o retorno no real daquilo que foi rechaçado de linguagem; é a excitação maníaca pelo qual esse retorno se faz mortal.” [69]

É uma concepção surpreendente, que inscreve as manifestações maníacas e depressivas no campo da ética, ratificando o enunciado do delírio de culpa, e que parece inaugurar uma perspectiva continuísta entre psicoses e neuroses, ao colocá-las em uma escala de graduação e sob uma mesma causa. De uma a outra o mesmo pecado, a mesma causa subjetiva: a covardia. É o fio secreto que enlaça as manifestações maníacas com as depressivas num ‘mesmo complexo’. A tese de Lacan unifica a tristeza com a excitação maníaca, o circuito bipolar, no nível de uma mesma causa subjetiva. É uma causa que assume a forma de culpa e que não deixa de evocar a “insondável decisão do ser.” [70]

Assimilar a tristeza a uma culpa moral restabelece uma tradição religiosa. A referência a Dante e Spinoza laiciza a questão. Para Spinoza, a tristeza não é tanto uma culpa contra a fé, mas contra a razão. Posto que ‘a idéia adequada procura uma alegria sem resto’, quem se atém a ela não pode estar triste. [71] Para Lacan, o pecado consiste em ceder sobre o desejo de saber, de saber do inconsciente, de situar-se na estrutura. [72]

Deveremos prosseguir a investigação.


  1. Trabalho realizado pelo Grupo de Trabalho da Conversacion que contou com a participação de Carmen S. Cervellatti, Maria Bernardete S. Pitteri, Perpetua Medrado Gonçalves, Luciana Gramacho, Denise Levy, Elsa G Monteiro, Marcia Assumpção, Paula Christina Verlangieri Caio , Eliane Chermann Kogut, Claudia Aldigueri Rodriguez, Maria Rosália Pinfildi Gomes, Maria Aparecida Barbeito
  2. Yellati, N – Todos bipolares- El “espectro” bipolar ( o las razones de uma epidemia) – Efecto Mariposa, ano 1, nº 1, septiembro de 2010
  3. Houiass – Dicionário da Língua Portuguesa –Objetiva. RJ 2009
  4. CID 10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Edusp
  5. Maleval, J. C. – ? Por qué estala la burbuja de la depression? – Aperiódico Psicoanalítico , n 16
  6. Com exceção dos quadros bipolares associados à epilepsia que representam uma minoria tanto entre os epilépticos como entre os bipolares e que representam um caso particular da associação entre transtorno bipolar e transtornos orgânicos e sintomáticos
  7. Levy, D – Sinopse e resumo do trabalho até esse momento – Trabalho apresentado no cartel
  8. Gois, E – História – Trabalho apresentado no cartel
  9. Alkmim, W. D. O que é transtorno bipolar? www.institutopsicanalise-mg.com.br/..http://www.enapol.com/pt/3.%20O%20que%20é%20o%20
  10. À época, o termo psicose designava simplesmente quadros com manifestações psíquicas – vide Freud em Neuropsicoses de Defesa
  11. À época os autores as usavam como sinônimos.
  12. Kraepelin, E – A loucura maníaco depressiva – RJ, Forense, 2012 – p 3
  13. Kraepelin – idem – p 67
  14. Como a melancolia involutiva, por ex
  15. Freud, S. – Luto e Melancolia – Vol. XIV das Obras Completas – Imago Editora Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, p.. 275
  16. Idem pg 286
  17. Kogut, E – Melancolia em Freud – Apresentado no cartel
  18. Levantamento realizado pelo Núcleo de Pesquisas de Psicanálise da CLIPP
  19. Freud, S. –Luto e Melancolia – citado – p. 275
  20. Freud, S. – Publicações Pré-Psicanalíticas – Vol. I Obras Completas – Imago Editora Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição – p. 276
  21. Freud, S. – Luto e Melancolia p. 275
  22. O Homem dos Lobos foi tratado por Kraepelin com o diagnóstico de loucura maníaco-depressiva
  23. Freud, S. – Luto e Melancolia – Idem, pg. 276
  24. Idem, pg. 275
  25. F31.5, F32.2 ou F33.3 dependendo de sua alternância com os episódios maníacos e de sua recorrência.
  26. Idem, pg. 277
  27. Cottet, S. – Nota sobre a depressão em psicanálise – Estudos Clínicos – Fator – Salvador, 1988
  28. Lacan, J. – Uma Questão Preliminar a todo o tratamento da psicose – Esquema R – Escritos Jorge Zahar Editor, RJ, 1998, pg. 559(onde M é o significante do objeto primordial, I o ideal do eu, i e m os dois termos imaginários da relação narcísica, o eu e a imagem especular)
  29. Cervelatti, C.S. – O objeto na melancolia – Trabalho apresentado no cartel
  30. Miller, J-A – Introdução à leitura do Seminário X – Opção Lacaniana 43
  31. Quinet, A. – A Clínica do sujeito na depressão – A Dor de existir – Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise – Contra-Capa Livraria – RJ, 1997, p 138
  32. Lacan, J. – Uma Questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose, já citado, p 564
  33. Idem, pg. 584
  34. Cervelatti, C. S – O objeto na melancolia – Trabalho apresentado no cartel
  35. Lacan, J – Uma Questão – citado p. 565
  36. Que, para Lacan, estaria associada ao desencadeamento da psicose schreberiana
  37. Freud, S. – Luto e Melancolia, pg. 286, já citado
  38. Freud, S. Rascunho G – Melancolia – Publicações pré – psicanalíticas – Vol. I Obras Completas – já citado
  39. Soller, C. Perdida y culpa em La melancolia p 35
  40. Quinet, A. – Fenômenos elementares e delírio na melancolia para J. Séglas – Extravios do desejo – Marcos d’água Editora, RJ, 1999, pg. 77
  41. Cotard, J. – Do delírio das negações – Extravios do desejo – já citado
  42. Freud, S. – Luto e Melancolia – já citado, pg. 278
  43. Modo clássico de abordar o delírio na psicopatologia
  44. Idem
  45. Quinet, A – Fenômenos elementares e delírio na melancolia por J. Seglas – já citado
  46. Miller, J-A. – Silet – Os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan – Jorge Zahar Editor, RJ, 2005 – Campo Freudiano no Brasil, pg. 268
  47. Freud, S – Luto e melancolia já citado p 282
  48. Gomes, MRP – A identificação na melancolia – Trabalho apresentado no cartel
  49. Quinet, A – A clínica do sujeito na depressão – já citado, pg.
  50. Miller, J-A – Silet – já citado, pg. 260
  51. Miller, J-A. – Os objetos a na experiência psicanalítica – Opção Lacaniana 43
  52. Miller, J-A – Silet – já citado, pg. 261
  53. Lacan, J. – Televisão – Outros Escritos – Jorge Zahar Editor, RJ, pg. 524
  54. Cottet, S – Nota sobre a depressão em psicanálise, já citado
  55. Miller, J-A, Uma Introdução à leitura do Seminário X – já citado
  56. Freud, S. Luto e Melancolia – já citado – p
  57. Freud, Luto e Melancolia
  58. Soller, C – Estudios p 55
  59. Freud, Luto e Melancolia
  60. F 31.2 ou F 30. 2 dependendo da alternância ou não com a fase depressiva .
  61. Televisão, 324, 325
  62. Soler, C – Estudios sobre las psicosis – p 62
  63. Lacan, J. Seminário 10 p 365
  64. Cervelatti, C. S – Trabalho apresentado no cartel
  65. Soler, C.- Mania, pecado mortal in Estudios p 61
  66. RSI
  67. Lacan, J – Televisão – Outros Escritos p 526
  68. Pitteri, MB – Trabalho apresentado no cartel
  69. Lacan, J – Televisão , 324, 325
  70. Lacan, J – sobre a Causalidade psíquica
  71. Pitteri, MB – Trabalho apresentado no cartel
  72. Soler, C – A mania, pecado mortalp 60-61