Integrantes do grupo de trabalho: Luiz Fernando Carrijo da Cunha – Coordenador
André Antunes
Alessandra Sartorello Pecego
Cynthia Nunes de Freitas Farias
Lilany Pacheco
Maria do Carmo Dias Batista

Introdução
O tema que nos ocupa nesta conversação, O desejo medicalizado, merece uma contextualização em função do que propõe o VI ENAPOL como diretriz para o debate. Falar com o corpopressupõe uma orientação que estabelece as coordenadas pelas quais o corpo é tomado na psicanálise. A distância entre este e o corpo biológico é marcada de saída, ou seja, os modos como a medicina e as ciências biológicas o abordam não dizem respeito ao que está em causa quando, do sofrimento do ser falante, detectamos os efeitos da fala sobre quem fala. Logo, nossa perspectiva coloca em primeiro plano as relações do homem com a linguagem. Um corpo, por si só, não é suposto falar, mas é suposto gozar. Quanto a esse gozo, entretanto, nada poderia diferenciá-lo exceto a incidência da língua que faz do animal humano um homem. Não há nada de natural no fenômeno que introduz as relações do homem com o mundo através da linguagem. Assim sendo, e em curto-circuito, tomamos o corpo numa perspectiva onde ele é, por estrutura, desnaturado pela linguagem à guisa de um acontecimento. Cito J.-A. Miller: […] É precisamente esta incidência significante o que faz do gozo do sintoma um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma testemunha que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo depois do qual o gozo natural, entre aspas, que podemos imaginar como o gozo natural do corpo vivo, transtornou-se e se desviou. Este gozo não é primário, mas primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá e que lhe dá por seu sintoma enquanto interpretável. [1]

Sublinhamos nessa introdução o pano de fundo que dará contorno aos nossos desenvolvimentos relativos ao desejo medicalizado. O próprio conceito de desejo será aqui utilizado com base na incidência do gozo ao qual ele faz contraponto considerando-o, contudo, como J.-A. Miller o conceitua de maneira esclarecedora e sintética: “O sentido da libido é o desejo” [2]. Sentido que lhe é dado pelos usos que um sujeito faz da língua, já no campo do Outro. Então, tomá-lo como desejo medicalizado, impõe considerar as consequências para um sujeito sobre seu corpo vivente.

Freud e a verdade do sintoma
Freud fundamenta a noção de desejo (Wunsh) a partir de sua investigação acerca dos sonhos onde preconiza que o desejo, sempre insatisfeito, realiza-se no sonho através de deformações e deslocamentos operados pelo trabalho onírico. Tal exploração o leva a alinhar o desejo à noção do recalque, onde o que permanece sob esse registro é constituído pelo então chamado “nó de desejos sexuais infantis e recalcados” que, nos sonhos, ganha expressão ligada às ideias do sonhador. Um sonho, portanto, torna-se passível de ser decifrado liberando seu sentido, sua verdade. A perspectiva de Freud, através da interpretação dos sonhos, era a de liberar o sentido recalcado que motivara o sonho. Desde este ponto de vista, Freud pode formular o sonho como “a via régia para o inconsciente”, estando o inconsciente atrelado intrinsecamente ao recalque e ao desejo; daí sua insatisfação sempre reiterada cuja estrutura se repete em todas as formações do inconsciente, quer seja nos sonhos, lapsos, chistes e mesmo nos sintomas. A partir de sua abordagem dos sonhos, presumimos que a busca da verdade culmina com a interpretação do desejo. Então, se a estrutura do sonho se mostra a mesma do sintoma, Freud não faz mais do que vincular o sintoma a um sentido e a uma verdade, vindos à luz pela interpretação. Todavia, foi seguindo a via da verdade do sintoma que Freud pode se deparar com o que ele mesmo denominou “restos sintomáticos”, revelando que o sintoma não é todo convertido em verdade; há um resto não decifrável. Resto que pode ser colocado, de acordo com os desenvolvimentos de Freud, na conta do que se chamou “resistências” ou “reação terapêutica negativa”. Em outros termos, a operação freudiana sobre o inconsciente é dependente da verdade e do sentido, cujo alcance levaria a uma expectativa de tratamento do sintoma: uma operação sobre a verdade cuja trilha seria desenhada pelo desejo inconsciente, sempre ligado ao “infantil” e ao “sexual”. O “adoecer” em Freud, esteve ligado ao que, do recalque, faz emergência na realidade subjetiva.

Lacan e os desenvolvimentos da verdade
No assim chamado “primeiro tempo de seu ensino”, Lacan esquadrinha o conceito de inconsciente freudiano numa retomada que ele mesmo considerou como uma reconquista, reconquista de um Campo que julgava marcado pela ameaça de desaparecimento. Essa “reconquista”[3] foi promovida em função da verdade freudiana investida de seu poder de corte: um antes e um depois. E uma profunda modificação no estatuto do pensamento humano enunciado por Lacan no título de um de seus textos dos Escritos – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud [4]. Esse movimento de reconquista foi levado adiante sob o baluarte da primazia do simbólico, onde Lacan constrói todo um edifício sobre as relações do sujeito com a fala, surgindo daí sua própria leitura do inconsciente freudiano: um inconsciente fundado no efeito de linguagem, inaugurando um sujeito que só se faz representar de um significante a outro significante. O “campo do Outro” surge como o lugar da verdade e do desejo. Vemos despontar os aforismos “O inconsciente é o discurso do Outro” e “O desejo do homem é o desejo do Outro” que se alinham de maneira sintética no “inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Desse modo, a “falta-a-ser” caracteriza o desejo traduzindo-o como insatisfeito em Freud. Sendo assim, o conceito de desejo é explorado ao máximo por Lacan, agregando outros conceitos como “o objeto causa de desejo”, as três modulações das pulsões, etc. Ademais, Lacan promove o desejo ao estatuto de “tratamento” dado ao gozo, na medida em que o articula à Lei vinculada ao Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai vem, justamente, “significar” o “desejo da mãe” cujo efeito é uma articulação do sujeito do desejo à Lei paterna através da ascensão da significação fálica. Valendo-se da dialética hegeliana, mas sem se fixar a ela, Lacan considera a castração, pivô da constituição subjetiva, em uma operação que enlaça, a partir do Campo do Outro, o desejo e a Lei: “A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”[5]. Lacan concebe o desejo a partir da dialética entre o Outro (A), lugar do significante, e o sujeito barrado (S/) como seu efeito; a metonímia como figura de linguagem dará conta da presença do desejo na cadeia significante, porém sem jamais ser apreendido em um objeto, ou seja, a falta-a-ser vem ser significada pelo desejo nos desenvolvimentos dialéticos da cadeia de significantes e o que dá suporte à presença do desejo é a “fantasia”. A “fantasia” que enlaça o sujeito do inconsciente com o objeto, é montada para alojar a libido que escapa da operação de significantização do desejo da mãe. Seria, portanto, um ponto não dialetizável mas “depurado” pelos desenvolvimentos dialéticos. Ao nosso ver, quando Lacan afirma que o desejo é suportado pela fantasia, há quase uma superposição do desejo com a libido, contudo, J.-A. Miller[6] afirma que o desejo é o “sentido da libido” e isso vem colocar as coisas numa determinada ordem, ou seja, que a fantasia funciona para garantir a presença do desejo na medida em que, da libido, algo pode ser convertido em sentido.

O desejo e a “doença nervosa”
Foi no contexto de sua época que Freud pode conceber a “doença nervosa” ligada etiologicamente à moral sexual[7] “civilizada”. O desejo, originariamente recalcado e sob as exigências morais da civilização, produzia seu retorno, sintomatizando o sujeito e é aí que a “verdade do sintoma” ganha toda a dimensão na obra de Freud. O tratamento então era proposto com base na emergência dessa verdade através da fala, liberando o corpo de seu sofrimento. Ou seja, com base nos significantes mestres de seu tempo, Freud pode propor uma modalidade de tratamento cujo fim se deteria num acordo do sujeito com as exigências da civilização, embora, mais tarde ele mesmo se apercebeu que a conjunção das exigências pulsionais por um lado e as exigências da civilização de outro, não poderia se dar através de uma operação cujo resultado fosse zero. Há resto, diz Freud, e esse resto não cabe no sintoma tomado na vertente de uma “solução de compromisso”. A isso, mais tarde, Lacan tentará dar forma a partir da emergência, em sua teoria, do “objeto a“.

A construção do conceito de “objeto a” foi, para Lacan, a tentativa de demonstrar logicamente a presença de um resto da operação da fala sobre aquele que fala. Operação sempre reiterada nos meandros da cadeia significante que, ao mesmo tempo que extraída do corpo, liga-se ao desejo como causa suportada na fantasia.

Vemos florescer esta construção com todas as minúcias no Seminário 10 – A Angústia[8] para, anos depois, Lacan evocar o objeto como mais-de-gozar. Os Seminário 16, De um Outro ao outro[9] e Seminário 17, O Avesso da Psicanálise[10], são sensíveis ao alcance do discurso capitalista onde a “moral sexual civilizada” coloca o progresso da ciência e seu produto em função do capital.

Acreditamos que, nesse momento de seu ensino, Lacan estaria extremamente sensível à emergência dessa “nova moral”, respondendo com a assimilação do objeto a à categoria do mais-de-gozar e com a construção da estrutura dos quatro discursos. Dessa forma deu à psicanálise uma inscrição lógica, preservando o lugar do sujeito, pois, com o capital e a ciência, observa-se uma certa coalescência do sujeito com o objeto. Sendo assim, o sujeito do desejo, pela via do capital, vê-se sempre seduzido pelos objetos oferecidos no mercado, gerando uma demanda falaciosa em relação ao gozo. O produto disso é a “deflação do desejo” deixando evanescer sua função de causa.

Queremos enfatizar, sobretudo, a interdependência das construções e transmutações dos conceitos da psicanálise advindos de Freud e retomados por Lacan, com o que a civilização e a cultura promulgam em um outro – ou outros – modo de estar no mundo e que chamamos, aqui e com Freud, de “moral sexual civilizada”. Cada época supõe uma moral e, no que diz respeito ao desejo e sua relação com o sujeito, podemos observar a prevalência, hoje, de outra coisa que não a articulação do desejo com a Lei, ponto fundamental que levou Lacan a forjar o conceito de Nome-do-Pai.

À guisa de orientação mas também de uma escansão, digamos que o desejo passa de uma dimensão ligada fundamentalmente à falta-a-ser, a uma outra onde se demonstra a ineficiência da metáfora paterna em legislar sobre o gozo. Nesse outro extremo vemos introduzir-se e prosperar uma cultura comandada pelo mercado de capitais, bem como o desvelamento do ponto de coalescência do sujeito com o objeto, como produto do discurso capitalista e da prodigiosa indústria tecno-cientificista.

É neste ponto preciso que o termo desejo medicalizado deve ser localizado e explorado.

O desejo na moral contemporânea
Destaquemos o axioma “O desejo (do homem) é o desejo do Outro”. É da dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel através de Kojève, que Lacan extrai este axioma. Porém, como esclarece no Seminário 17[11], mesmo que o Senhor prive o Escravo do reconhecimento de seu desejo, não o impede de obter satisfação, pois o saber (e o poder) que lhe dá o trabalho o engajam cada vez mais na procura do gozo.

O aumento do tempo de trabalho e a acumulação do capital promovem, como sabemos e a história demonstra, um excesso de gozo, o mais-de-gozar, correlato à mais-valia, o resíduo da força de trabalho de Marx, aplicado à psicanálise por Lacan. Embora o sintoma se defina, em Marx e em Lacan, por sua relação com a verdade, estamos em um tempo onde a verdade se desloca peremptoriamente, a despeito das ficções testemunhadas pela cultura que a fixavam como eixo do estar do homem no mundo, a ponto de Lacan operar o deslizamento da verdade para o real. O Outro não apenas se pulveriza, mas deixa de existir. A verdade deu lugar ao real.

Esse deslizamento faz produzir a báscula, do ponto de vista clínico, do sintoma como decifrável para o sintoma comportando o real. Sendo assim, cabe-nos operar uma estratificação conceitual onde o desejo encontra um outro estatuto. Evidentemente ele não deixa de existir, mas sua operatividade está deslocada. Seria tentador um desenvolvimento que levasse em conta apenas a “nostalgia” da Lei. Não! Não nos cabe buscar aparatos clínicos que não respondam ao mal-estar contemporâneo, nem tampouco tentar avalizar nossa prática com ferramentas que se mostrem impotentes diante do sintoma como se apresenta no mundo atual. A medicalização é um fato com o qual o psicanalista deve lidar. Do mesmo modo como Lacan orientou a não se recuar diante das psicoses, pensamos que a medicalização é algo que impõe um desafio ao psicanalista onde a estratégia de recondução à palavra ocupa o primeiro plano.

Sublinhamos acima o efeito do discurso capitalista aliado à indústria tecno- cientificista sobre o sujeito contemporâneo. Ou seja, há uma tendência de coalescência desse sujeito com o objeto, dispensando nesse movimento os usos da palavra, tornando-o vulnerável à todo tipo de oferta, que vai dos bens de consumo aos medicamentos produzidos com a promessa de felicidade. Tal como formula Lacan em “Radiofonia”[12], e desenvolve J.-A. Miller em Uma fantasia[13], o objeto a ganha o zênite e o homem passa a ser guiado por essa oferta. Entendemos a ascensão do objeto a ao posto de agenciamento, como sendo o corolário estrutural da queda do Outro, representado pelo significante mestre suposto regulador do gozo. Nessa medida, a multiplicidade da oferta matiza a demanda fazendo parecer ao sujeito que ele teria um acesso direto ao gozo. Mas, como nos lembra J.-A. Miller, esse matiz do objeto é essencialmente ansiogênico o que, em última instância, faria multiplicar os objetos cada vez mais. É o que apreendemos hoje quando, mais e mais, o desejo é medicalizado respondendo a um dos aspectos do mercado. Nesse sentido, testemunhamos uma falácia de cujo último termo vem se ocupar o psicanalista. E por qual viés?

O excesso vem marcar o falasser
De fato, o desejo está aplastado, bambo, covarde. Para dar quiçá algum contorno à inexistência do Outro, o homem contemporâneo se identifica, agarra-se a significantes que são sintomas.

Lembremos, então, do que citamos anteriormente de J.-A. Miller em relação ao desejo, onde diz: o sentido da libido é o desejo[14], onde podemos conceber que o desejo se constitui como uma resposta à libido, na medida em que a busca do sentido se dá pelo viés da palavra e que a libido, a priori, carece de sentido, convocando o sujeito ao lugar da fala. A medicalização do desejo vem, então, interferir de maneira irremediável nessa lógica. Se o sujeito cujo desejo está submetido à oferta desmesurada da indústria farmacêutica se cala, ele não é menos angustiado e, precisamente quando pode se aperceber de que o desejo lhe servira como defesa e que, tanto quanto outros modos de defesa, a medicalização pode impor um limite ao desejo, uma vez que não trata o impossível em jogo no falasser. Cabe, sim, ao analista configurar o real do sintoma.

Se fizermos do homem não mais algo que veicule um futuro ideal e o determinarmos da particularidade de seu Inconsciente e da maneira como ele goza disso, o sintoma permanece no mesmo lugar em que o deixou Marx, mas toma outro sentido, não será um sintoma social, será um sintoma particular. Sem dúvida esses sintomas particulares têm tipos, diz Lacan em RSI[15].

Depressão é um desses significantes que representam sintomas. Compulsão alimentar, TOC, alcoolismo, drogadição, ansiedade, anorexia, são outros. Assim se goza hoje. Acrescentemos os medicamentos à série.

desejo medicalizado talvez possa revelar, frente ao sintoma contemporâneo e seus medicamentos, o encontro do desejo bambo com o gozo excessivo.


Notas

  1. MILLER, J.-A. (01/08/2011). Ler um sintoma. Conclusão do Congresso da NLS, Londres, 2 e 3 de abril de 2011. http://ampblog2006.blogspot.com.br/search?q=ler+um+sintoma
  2. MILLER, J.-A. (2011). Falar com o corpo – Conclusão do PIPOL V. Argumento do VI ENAPOL. http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html
  3. LACAN, J. (2003/1971) Ato de fundação. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 235.
  4. LACAN, J. (1998/1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 496.
  5. LACAN, J. (1998/1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 841.
  6. MILLER, J.-A. (2011). Op. cit.
  7. FREUD, S. (1976/1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In Obras psicológicas completas. Ed. Standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, volume IX, p. 187 a 208.
  8. LACAN, J (2005/1962-63). O Seminário, Livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
  9. LACAN, J (1992/1968-69). O Seminário, Livro 16, De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar.
  10. LACAN, J (2008/1969-70). O Seminário, Livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
  11. LACAN, J. (1992/1969-70). Idem, ibidem.
  12. LACAN, J. (2003/1970). Radiofonia. Op. cit.
  13. MILLER, J.-A. (Fevereiro, 2005). Uma fantasia. Opção Lacaniana, 42: 7-18.
  14. MILLER, J.-A. (2011) . Falar com o corpo – Conclusão do PIPOL V. Argumento do VI ENAPOL. http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html
  15. LACAN, J. O Seminário – livro 21. RSI. Aula de 18 de fevereiro de 1975. Inédito.