A melancolia em Aristóteles

Existe um texto atribuído a Aristóteles classificado como o Problema XXX. Parece que o texto é constituído de notas tomadas por Teofrasto depois das aulas e recopiladas sob a forma de Problemata, problemas que Aristóteles não resolvia, mas que deixava abertos para colocar seus alunos a pensar.

Seu problema é: “Por que razão todos os que foram homens excepcionais, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia e às artes, são manifestamente melancólicos, alguns a ponto de serem acometidos pelas enfermidades oriundas da bile negra?” [1]

Aristóteles pensará as causas. Aporta exemplos que são modelos extremos para pensar a melancolia, a loucura (chamada ek-stasis).

Os primeiros exemplos que apresenta de homens excepcionais afetados pela melancolia são Hércules, Lisandro Ayax e Bellerofon. Também agrega à sua lista de homens excepcionais e melancólicos Empédocles, de quem se dizia que se lançou à cratera do vulcão Etna, querendo confirmar sua reputação de ser um Deus, e unicamente suas sandálias foram encontradas. Mas também Platão e Sócrates, tratando de mostrar a relação entre filosofia e loucura. Na antiguidade, ambas as coisas, loucura e filosofia, provinham da inspiração, como ilustrava Platão com a mania que, proveniente das musas, atingia os poetas.

De Sócrates, se dizia que tinha um Daimon, uma entidade que fazia a mediação entre os homens e os deuses e por isso, como é representado no Banquete, antes de chegar a encontrar seus amigos, nesse dia, como em muitos outros, sofreu uma criseque o deixou fora de si e que podia durar pouco ou dias inteiros. Um caso semelhante se conta dele quando, durante a batalha de Potidé, permaneceu imóvel durante horas.

O texto designa a melancolia como um efeito da má mistura da bile negra, aqui manifesta como ek-stasis ou mania. É sutil poder descrever estas manifestações ou bem como enfermidades em si mesmas ou como sintomas de outras.

Na tradução do texto grego para o francês, J. Pigeaud usa como sinônimos ek-stasis e mania. Êxtase é relacionado precisamente com o “fora de si”, que caracteriza muitos episódios de loucura. Sergio Laia fala de Joyce como aquele que fazia escritos “fora de si”. Também Margeritte Duras, a quem Lacan rende homenagem, descreve sua Lol V Stein como uma mulher que durante anos esteve “fora de si”, e por isso intitula sua novela O Arrebatamento de Lol V Stein. O termo francês Ravissment deixa filtrar um sentido de gozo ravi.

A argumentação do tradutor dessa sinonímia é que, na verdade, é da loucura que se trata no texto, de uma maneira de estar louco. Fala-se de ekstasis de Hércules (953 a 17), de Ayax como estatikos (953 a 22), de Marcus, o siracusano, que conhece o ekstasis em certos momentos (953 a 22). O texto fala das causas do ekstasis (954 a 25). Mas também cita os manikoi (953 a 25), as enfermidades maníacas ou de entusiasmo ( 954 a 31), e as pessoas manikoi ou dotadas (954 a 32) [2] como se fossem sinônimos.

O autor diz que, para alguns, a origem destes males é uma “mistura no corpo”, para outros existe uma “inclinação natural à enfermidade” e para apreender a causa faz uma analogia da bile negra com o vinho.

O vinho, com efeito, tomado em abundância parece que torna as pessoas tal como descrevemos os melancólicos, e sua absorção produz uma grande quantidade de características, por exemplo, os iracundos, os filantropos, os ímpios, os audazes (…) o vinho transforma os indivíduos de diferentes formas se observa-se como muda gradualmente aqueles que bebem. Apodera-se das pessoas que são, quando se abstém do vinho, frios e silenciosos; bebendo em quantidades um pouco maiores são falantes e, um pouco mais, eloqüentes e confiados; se continuam, tornam-se audazes e dispostos a atos de audácia; se absorvem ainda mais tornam-se violentos e depois loucos. [3]

A escala de absorção do vinho, que dá por resultado distintas características e transformações da conduta, a partir de uma medida que se dirige ao excesso, produz efeitos que se sucedem, mas graduais, de acordo com a quantidade ingerida

Em relação à bile negra, se trata igualmente de um assunto de graus. Ela produz efeitos análogos ao vinho, associados a dois elementos apresentados pelo autor, o frio e o calor, que são referências de seu esquema explicativo. A bile negra é a fonte do comportamento melancólico, é fria ou quente e, por essência instável, por comportar o vento.

A expressão “mistura de bile negra” faz com que o assunto dependa da medida, do excesso ou da carência. É um velho problema de Aristóteles, o da justa medida.

No livro II da Ética a Nicómaco, dedicado à Natureza da virtude ética introduz no capítulo 6, “A Natureza do modo de ser” a noção de termo médio. Diz em 1106a28:

(…) o igual é um termo médio entre o excesso e a carência. Chamo termo médio de uma coisa a que dista o mesmo de ambos os extremos, e este é um e o mesmo para todos; e em relação conosco, o que não excede nem fica pouco, e isto não é um nem o mesmo para todos. [4]

O estagirita se refere em principio a dimensões mensuráveis. Diz em 1106a32: “se dez é muito e dois é pouco, toma-se seis como termo médio quanto à coisa, pois excede e é excedido em uma quantidade igual, e nisto consiste o médio segundo uma proporção aritmética.” Não obstante, seu objetivo é pensar mediante este símile, e propor o termo médio relativo às virtudes, `aquilo que é incomensurável. Isto é, “o médio relativo a nós” e não o relativo à coisa, que é aquilo que é mensurável.

A virtude ética, para este filósofo, tenderá ao termo médio;

“(…) pois esta se refere às paixões e ações, e que nelas há excesso, há carência e há termo médio. Por exemplo, quando temos as paixões do temor, ousadia, apetência, ira, compaixão, prazer e dor em geral, cabem o mais e o menos, e nenhum dos dois está bem; mas se temos estas paixões quando é devido, e por aquelas coisas e em relação àquelas pessoas devidas, e pelo motivo e da maneira que se deve, então há um termo médio e excelente; e nisso radica precisamente a virtude. Nas ações há também excesso e carência e termo médio”. (1106b17-24)

Apesar destas considerações, segue existindo a pergunta: qual é o termo médio de uma virtude? Já que, assinala Aristóteles, tanto o excesso quanto a carência pertencem ao vício.

Ingemar Düring descreve a estrutura da ação ética a partir da razão intuitiva, que serve ao homem na vida prática, para ver que algo lhe aparece como um bem. Em seguida, entra em funcionamento o apetite e transforma o juízo em um desejo e o conhecimento deste bem em una tendência ao mesmo, considerado como fim. A razão ordena e a vontade toma, em conseqüência, a decisão para cuja realização logo deve atinar com os meios para encontrar esse bem, tornado fim. No encontro dos meios é que de novo a razão prática, desprega “o sentimento de tato moral“.[5] Esse tato moral é o que guia em direção ao termo médio, a moderação, sõfrosinê, fio condutor ou medida.

Em algumas ocasiões, a virtude se encontrará mais próxima do excesso que da carência e, em outras, mais próxima da carência que do excesso; seu resultado provém da natureza mesma dos fatos ou “de nós mesmos”; dependendo do vício ao qual estejamos inclinados, mais a uns ou a outros, lhe oporemos a virtude contrária. Mas, como diz W. D. Ross: “depois de tudo, nenhuma regra geral nos ajudará a saber o que devemos saber; devemos esperar nos encontrar nas circunstancias particulares de nossa ação e tomá-las todas em conta”. [6]

Düring discute com Jaeger[7] sobre o ideal de exatidão que este vê tanto em Aristóteles como em Platão, tratando de encontrar argumentos para fazer da ética uma ciência exata, de maneira similar à geometria. Mas, o processo psicológico mediante o qual se conhecem as normas não é exato.

Por isso, a virtude moral deve ser combinada, a juízo de Ackrill, com a sabedoria prática phronesis, a virtude do pensamento prático. “Este capacita o homem para decidir em cada circunstância particular o que é o justo, amável e generoso: qual é a coisa correta que se há de fazer. A excelência do caráter garante então o que se fará”. [8]

Voltando ao nosso problema, enquanto paixão “deve ser levada a uma média, a partir de uma mescla de duas forças opostas e de sentido contrario. Na realidade tudo repousa, em geral, sobre o equilíbrio do prazer e da dor que acompanham cada paixão.” [9] O que corresponderia, na fisiologia, ao equilíbrio dos humores e ao equilíbrio do frio e do calor. A justa medida é a norma da saúde. E a melancolia aparece por um desequilíbrio da bile negra. Por um excesso da mesma que escapa à justa medida.

A analogia com o vinho conduz a pensar o aspecto multifacetado do melancólico. Donde progressivamente, como no caso do vinho, o indivíduo vai sendo conduzido a um “fora de sí”.

Assim prossegue o texto em sua comparação entre a bile negra e o vinho que também é um ventoso pneumatôdes: “e é verdade que se pode tornar ímpio, feroz ou taciturno; pelo contrário, certos indivíduos permanecem absolutamente silenciosos e, sobretudo, os melancólicos, todos aqueles que estão loucos.” [10]

E, em seguida, um detalhe clínico:

É por isto que o vinho incita as pessoas ao amor, e é a justo título que se diz que Dionísio e Afrodite estão ligados um ao outro; e os melancólicos, em sua maioria, estão obsedados pelo sexo. Já que o ato sexual põe em ação o vento. A prova é o pênis que é pequeno e tem um aumento rápido porque se infla sob os efeitos do vento. E muito antes de poder emitir o esperma, nasce certo prazer naqueles que ainda são infantes quando, antes da puberdade, esfregam seus pênis. É claro que isto se produz porque o vento recorre a canais por onde, mais tarde, se transporta o líquido. [11]

Já conhecia o prazer do órgão infantil. Mas depois anotará que “depois de uma relação sexual a maioria das pessoas tende a esse sentimento de desalento […] e dessa maneira esfriam”. Dali vem a sentença atribuída igualmente a Aristóteles post coitumomne animal triste est.

Para explicar o temperamento melancólico nas homens de gênio, diz o autor que existem:

[…] pessoas normais, que tem bile negra, mas em quantidades proporcionais; uma minoria que tem um evidente excesso de bile negra em um equilíbrio relativamente estável. A estes últimos se atribuía um temperamento melancólico e acreditava-se que tinham uma tendência a ter dotes especiais como conseqüência disso […] “o desalento da vida diária (já que com freqüência nos encontramos em situações em que sentimos tristeza sem poder encontrar-lhe uma causa, enquanto que em outros momentos nos sentimos alegres sem saber o porquê), já que todos têm algo de bile negra dentro: mas os melancólicos “estão completamente empapados” destes sentimentos que “formam parte permanente de sua natureza”. [12]

Surpreende um detalhe na descrição e é o sem-sentido da tristeza e da alegria, pois, ressalta Aristóteles, quem as sente não pode dar conta de suas causas. “Até o final do ensaio –continua nosso historiador- o autor observa que, se o temperamento “fosse mais frio que os limites do normal, produziria desalento sem razão e a pessoa correria o risco de suicidar-se”. [13]

O texto de Aristóteles diz que se a bile negra, que é de natureza fria, se encontra em excesso no corpo produz, entre outras enfermidades somáticas, as atímias ou terrores, “mas se é demasiado quente, está na origem de estados de eutimia acompanhada de cantos e loucura ek-stasis. ” [14].

Atímia foi traduzida na linguagem psiquiátrica e psicológica como depressão. Eutímia e distimia são noções usadas na medicina, na moral e filosofia. No Corpus hipocrático (Epidemias, VI, sección 5 V. L 316) se assinala que eutimia é um estado de exaltação febril do thymos. Segundo nosso tradutor, isto quer dizer:

[…] esse lugar indeterminado do sentir-se a si mesmo, do centro das emoções, das paixões, do que no século XIX se chamará o sentido íntimo. A atímia ou distimia são o contrario [a eutimia]. A origem filosófica da noção é, sem dúvida, democritiana. Não é um conceito platônico. Encontra-se na tradição aristotélica, mas não em Aristóteles. A eutimia se encontra na taxonomia das paixões. Definida por Andrónicos “a eutimia é o gozo no tempo que passa, e a ausência de preocupações com respeito a tudo”. É a sabedoria empírica.[15]

thymos designa um conjunto complexo [nos diz em outro lugar nosso tradutor] A atímia, eutimia, distímia são as formas com que o indivíduo apreende seu ser no mundo, se sente ser, se sente viver na facilidade ou na angustia. [Hipócrates diz em Aforismos VI, 23 = IV L 568)]: “se o medo e a distimia duram muito tempo, tal estado está ligado à bile negra”. O Corpus hipocrático tampouco ignora as alternativas da atímia e da eutimia [em Epidemias V, 84 ( V L 252) y (VII, 89 (V L 446) precisa: ] “parmeniscus foi presa de atimia e de um desejo de tirar a vida e depois inversamente de eutimia. [16]

Não se deve esquecer que o prefixo Eu, significa alegria ou felicidade, por isso se falava de eudaimonía, quer dizer ter um Daimon favorável. Muito perto da mania no sentido do século XIX seria então la eutímia.

As variações da bile negra, como as gradações do vinho e os graus de ebriedade, é o que dá lugar às modulações da capacidade de desfrutar a vida; a eutimia estará em seu máximo, a atimia ou distimia em seu mínimo, e inclusive, “diante da ausência de todo desejo de ser, há o desespero, a morte e o enforcamento.” [17]

Então, afirma que:

[…] aqueles em quem a mistura [de bile negra] é abundante e fria são presas do estupor; aqueles que a tem demasiado abundante e quente estão ameaçados pela loucura (manikoi) e dotados por natureza, inclinados ao amor, facilmente arrastados aos impulsos e aos desejos […] muitos pela razão de que o calor se encontra perto do lugar do pensamento, são tomados pela enfermidade da loucura e do entusiasmo […] Mas aqueles em quem o calor excessivo se detém em seu empuxe, em um estado médio, esses são certamente os melancólicos, mas são mais sensatos, são menos estranhos, pelo contrário, em muitos outros domínios são superiores aos demais, alguns no que concerne à cultura, outros às artes e outros ainda à gestão da cidade. [18]

Finalmente, diz: “Quando, com efeito, em algumas ocasiones [a mistura] é muito fria, se engendram as distimias sem razão. É a causa dos suicídios por enforcamento que ocorrem, sobretudo, nos jovens, ainda que também se vejam nos velhos.” [19]

Os estóicos articularam quatro paixões básicas: A. O apetite ou o desejo. B. O medo. C. O prazer, gozo ou alegria e D. A dor, desgosto ou tristeza. Reconheceram em todas elas algo irracional e a oposição entre a exaltação, ligada `a alegria como “expansão ou o arroubo irracional da mente, que implica uma opinião de um bem presente ou atual [e a melancolia como] “contração ou depressão irracional da mente, que implica uma opinião recente de um mal presente ou atual”. [20]


  1. Aristote, L´Homme de genie et la mélancolie, traducción de J. Pigeaud, Paris, Editions Rivages, 1988, p. 83. Frase inicial classificada 953a10.
  2. Ibíd., p. 39.
  3. Ibíd., p. 87.
  4. Nos guiamos pela tradução de Julio Pallí Bonet en: Aristóteles, Ética nicomaquea, Madrid, Gredos, 1985, p.169.
  5. Ingerman Düring, Aristóteles, México, Universidad Autónoma de México, 1990, p.717. As itálicas são nossas.
  6. W. D. Ross, Aristóteles, Buenos Aires, Sudamericana, 1957, p. 282.
  7. Werner Jaeger, Aristóteles, México, Fondo de Cultura Económica, 2002, pp. 106-107.
  8. J. L. Ackrill, La filosofía de Aristóteles, Caracas, Monte Ávila, 1984, p. 246.
  9. Aristote, Op. Cit., p. 22.
  10. Ibíd.,p. 89
  11. Ibíd., p. 92.
  12. Stanley W. Jackson, historia de la melancolía y la depresión, desde los tiempos hipocráticos a la época moderna. Madrid, Turner, 1989, p. 39.
  13. Ibíd.
  14. Aristote. Op. Cit., p. 95.
  15. Ibíd. p. 120.
  16. Ibíd. pps. 30-31
  17. Ibíd., p. 32.
  18. Ibíd., p. 97.
  19. Ibíd.,pps. 101-103.
  20. Stanley W. Jackson, historia de la melancolía y la depresión, desde los tiempos hipocráticos a la época moderna. Madrid, Turner, 1989, p. 27.