Miquel Bassols
I
O tema do próximo ENAPOL — o sétimo da série — nos submerge em cheio no vasto oceano do registro imaginário. O poder de penetração das imagens mostra-se, hoje, crescente em uma realidade que admitimos cada vez mais como uma realidade virtual, separada do real impossível de ser representado. É uma realidade virtual promovida, sem dúvida, por antigas e novas mídias, da televisão à internet, por meio de uma fetichização da imagem exterior do corpo, a qual podemos bem dizer que se elevou como um novo objeto no zênite do universo social. É uma realidade virtual promovida também pela multiplicação das imagens do interior do corpo, cada vez mais ampliadas com as novas tecnologias de ressonância magnética e de neuroimagem. A unidade da imagem exterior do corpo fragmenta-se, assim, a partir do interior, quando se dobra como uma luva mostrando seu avesso de corpo despedaçado. A endoscopia do corpo, que em outra época fazia parte somente do delírio ou do sonho, é hoje uma realidade ao alcance do olhar que pode se situar em qualquer parte do organismo, apagando os limites entre seu interior e seu exterior.
O poder da imagem como Gestalt unificadora revela, assim, seu avesso em um despedaçamento do corpo tão virtual quanto minucioso.
Nós, analistas, escutamos um amplo leque de testemunhos dessa reversibilidade da imagem vinculada ao despedaçamento e à multiplicação da unidade imaginária do corpo. A primeira imagem do feto observada com perplexidade pela mulher que o carrega em seu interior; a angústia do adolescente que encontra a imagem de seu corpo difundida pelas redes sociais depois de uma primeira experiência de sexo virtual; a compulsão sintomática de outro, fazendo-a circular por essas mesmas redes; a jovem anoréxica que deve voltar todos os dias ao mesmo espelho da academia para nele buscar a única medida possível de sua compulsão em comer o nada do objeto oral que a corrói… A imagem revela, assim, seu múltiplo poder de captação do gozo do corpo, tanto no sofrimento do sintoma, quanto no prazer do fantasma.
Os efeitos do poder da imagem, desse modo, se fazem sentir na clínica: causa de fascinação ou de repulsa, de prazer ou de angústia, de erotização ou de mortificação, imagem pública ou da intimidade privada, difundida massivamente como um totem ou preservada na singularidade única do fetiche, portadora da tensão agressiva até seu fracionamento, ou da unidade perdida na alienação do Eu na imagem do outro especular. Em cada caso, o império das imagens não pode se reduzir, no ser falante, aos efeitos miméticos ou de camuflagem que encontramos no reino animal e que nele funcionam de modo unívoco, sem a mediação da linguagem e seus equívocos.
A captura que a imagem produz na ordem da natureza foi muito bem estudada por Roger Caillois para distingui-la do poder que se desdobra no ser humano. Seu livro “Medusa y Cia” é uma referência lacaniana do maior interesse para esse tema. Nele, podemos ler: “No homem, a imaginação substitui o instinto; a ficção, a conduta; o terror projetado por uma obscura fantasia, o desencadeamento automático, fatal, de um reflexo implacável”².
A imagem condensa, assim, o imaginário da forma e a ficção da verdade veiculada pela linguagem, em uma só entidade que Lacan nomeou, no início de seu ensino, com um termo da tradição freudiana: a imago, formadora tanto das identificações como dos objetos de satisfação para a pulsão que, dessa maneira, se desfaz de sua referência ao instinto natural. Nada há de natural na relação do ser falante com a imagem na qual se reflete a opacidade de seu gozo.
III
Para o ser falante, o poder da imagem tem, prontamente e em primeiro lugar, efeitos de gozo sobre o corpo. E esse poder já não reside por inteiro na própria imagem. A imagem sempre oculta seu poder em um enigma – (enigma, em espanhol, é anagrama de imagem) –, um enigma que reside em Outro lugar, no simbólico da linguagem. Se as imagens têm um poder efetivo é, então, na medida em que estão enoveladas às significações que cada cadeia significante introduz no corpo.
Trata-se, em cada caso, da relação da imagem corporal – i(a) – com os significantes do Ideal do Eu – I(A) –, termos que Lacan distinguiu muito cedo em seu ensino para abrir caminho à significação do narcisismo na obra freudiana. Essa distinção pode encontrar-se já, embora não formulada desta maneira, em seu famoso texto sobre o “Estádio do Espelho”, com o qual Lacan fez sua entrada na psicanálise. De fato, o poder da imagem reside em sua “eficácia simbólica”³, na relação com os significantes que conformam, no corpo, a unidade imaginária que chamamos Eu. Daí, deduzimos uma equivalência que determina o poder da imagem: “O imaginário” – como assinalava Jacques-Alain Miller na apresentação do tema do vindouro X Congresso da AMP – “é o corpo”4. E o corpo, à diferença do organismo, está capturado nas redes da linguagem.
Tal como sugere a citação do poeta que apresentamos na epígrafe, é o som da língua, das ressonâncias semânticas que o significante introduz no corpo, que dá a unidade permanente da imagem especular, unidade sempre virtual. Esta unidade, fundada a partir da imagem exterior do corpo, é, desde então, corpo da imagem, imagem corporificada a partir da qual será percebida cada imagem. “Se é verdade que a percepção ofusca a estrutura”, então, toda imagem leva o sujeito a “esquecer, numa imagem intuitiva, a análise que a sustenta”5. A intuição da imagem eclipsa, assim, a estrutura simbólica que lhe dá sua unidade, seu poder e sua significação.
No próprio seio desta unidade – i(a) – encontra-se, sem dúvida, o objeto (a) que descompleta cada um dos efeitos da imagem. Descompleta sua unidade no ponto cego que o olhar introduz no quadro da percepção, olhar a partir de então separado do corpo. Descompleta também seu poder de sugestão ao revelar a causa do desejo que o sustenta sob as insígnias do Ideal do Eu. Descompleta, finalmente, sua significação ao fazer aparecer o semsentido de toda imagem (i) separada do objeto que recobre (a). A história da arte é um bom campo de investigação das diferentes formas pelas quais o objeto se separa de sua imagem, tornando parcial sua unidade. A fascinação produzida pelo tríptico “O jardim das delícias”6, de Hyeronimus Bosch, evocada por Lacan em diversas ocasiões, representa o ápice desse semsentido na variedade de objetos separados da unidade imaginária do corpo.
IV
Se a ciência, de sua parte, impele à parcialização omnivoyeuse do corpo, a arte, que desde a época clássica modelou sua imagem exterior com o gozo de sua sacralização, introduziu também, desde o século passado, o avesso despedaçado da imagem do corpo com a abstração de sua unidade.
O estreito vínculo dessa operação de reversibilidade da experiência de gozo do corpo conheceu um episódio recente no Musée d’Orsay, episódio mais paradigmático do que escandaloso, com a performance de uma jovem artista expondo ao visitante a intimidade de seu sexo diante do famoso quadro de Gustave Courbet, A origem do mundo. Segundo suas próprias palavras, a obra batizada de Espelho da origem “não reflete o sexo, mas o olho do sexo, o buraco negro” para “mostrar o que não se vê no quadro original”7. Mostrar o que não se vê, mostrar o próprio olhar como o objeto que só aparece como ponto cego da representação, é hoje a operação que se revela no mais íntimo, e, ao mesmo tempo, no mais exterior do império das imagens.
V
“Uma imagem vale mais do que mil palavras”. Costuma-se dizer esta frase esquecendo-se, ao dizê-la, que são necessárias pelo menos estas oito palavras para evocar uma significação que nenhuma imagem poderia mostrar por si mesma, caso esta imagem pudesse alguma vez ficar desligada da linguagem. Nem mil imagens valeriam então para dizer dessa significação, e, tampouco, para dizer de qualquer outra. Falando propriamente, uma imagem não diz nada; oculta, ao contrário, o indizível que só a palavra pode evocar ou invocar.
O vasto oceano do registro imaginário, com toda a consistência que adquire para o ser falante em sua realidade virtual, mostra-se, então, delimitado unicamente pelo horizonte, não menos virtual, que é o registro simbólico da linguagem: “o horizonte desabitado do ser”8, como Lacan gostou de chamá-lo.
Uma imagem isolada desse horizonte, isolada da rede simbólica que a vincula ao próprio corpo, não tem de fato nenhum poder de significação. Este poder de significação foi formalizado por Lacan em seu primeiro ensino com o símbolo e a significação do falo, significante do desejo do Outro, significante também que enlaça a significação em uma cadeia significante.
A partir deste ponto, o poder da imagem é sempre correlativo à construção nele de um espaço simbólico que irradia seu poder de significação. O espaço do sujeito da fobia – claustrofobia ou agorafobia, espaço fixado em um objeto impossível de ser evitado ou disseminado em sua multiplicação ao infinito – muitas vezes nos ensina que deve esse espaço ao sinal enviado pelo desejo do Outro ao sujeito. Por outro lado, o espaço inabitável da criança autista também nos ensina a função e o poder de uma imagem desligada por completo da unidade de seu corpo, unidade que não pode simbolizar-se como ausente para o Outro.
O império das imagens revela-se, então, como aquele outro “império dos semblantes” que Lacan encontrou nos anos de 1970 em um Japão que antecipava sua ampliação em escala global.9
Nosso VII ENAPOL será, sem dúvida, a melhor ocasião para se estudar tanto as leis que o regem, quanto o real sem lei no qual se funda.
________________________________
¹ José Lezama Lima, “El reino de la imagen”, Biblioteca Ayacucho, Caracas, 1981, p. 535.
² Roger Caillois, “Medusa & Cia. Pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y el hombre”. Ed. Seix Barral, Barcelona, 1962.
³ Jacques Lacan, Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 98. Lacan retoma aqui o termo de Claude Lévi- Strauss.
4 Jacques-Alain Miller, “O inconsciente e o corpo falante”, publicado no site da AMP em português: www.wapol.org. Acesso em 26/07/2014.
5 Jacques-Alain Miller, retomando a referência de Lacan, na nota introdutória do “Quadro comentado das representações gráficas”. In: Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 918.
6 Bosch, Hyeronimus, “O jardim das delícias terrenas”, 1503-1504, óleo sobre carvalho, 2,20 m x 3,90 m, Museu do Prado, Madri [N.T.].
7 Declarações de Deborah de Robertis ao jornal “Le Monde” de 29 de maio de 2014.
8 Jacques Lacan, Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 648.
9 Jacques Lacan, “Lituraterra”. In: Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2003, p. 24.
Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista