Por Florencia Dassen (EOL)

“A natureza não se arrisca a nada senão a se afirmar como uma miscelânea de fora-da-natureza“.
Jacques Lacan, O Seminário, livro 23: o sinthoma

[…] Joyce tem uma bela expressão em Finnegans Wake: “Father Times and Mother Spacies.” “O pai – os Tempos, a Mãe – os Espaços e a Espécie”… Ou, melhor ainda: o pai que temporeia – e inclusive temporiza; a Mãe que pontua e ordena os espaços e os ocupantes destes espaços… O Pai som… a Mãe imagem… difícil sincronia… Representar o tempo, o tempo dos tempos e o latejo do tempo no tempo […].
Philippe Sollers, Mujeres

Os laços familiares têm a particularidade de serem laços que estão fora de uma determinada natureza. Laços que, por serem de sangue, carregam uma marca, a da suposta verdade eterna, a da herança genética, o já escrito que se enreda com a ideia de destino. Lacan situa nos “Complexos familiares…” que:

Assim, ela estabelece entre as gerações uma continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem mental. Essa continuidade, se revela o artifício de seus fundamentos nos próprios conceitos mesmos que definem a unidade da linhagem, desde o totem até o nome patronímico, não deixa por isso de se manifestar na transmissão, à descendência, de inclinações psíquicas que confinam o inato; (…) [1]

A família se situa na encruzilhada entre o biológico, sonho do natural e a instituição que desempenha um papel primordial na transmissão da cultura.

Hoje, assistimos as novas formas de família que indicam que não há a dita natureza, nada mais distante, são, sim, laços completamente desnaturalizados. Graças às técnicas hipermodernas, a procriação não tem como condição si ne qua non as relações sexuais, no entanto, no inconsciente, a criança não pode deixar de se fazer a pergunta a respeito do mistério de sua origem.

Quando convidamos um analisante a dizer tudo o que passa por sua cabeça, é raro que não venha de sua boca, naturalmente, falar de si, se referindo à sua família. Mas o que faz com que um laço familiar se torne um assunto de família? A experiência do laço enquanto tal, seja de amor, de ódio, de briga, de indiferença, se torna um tema para quem se analisa, no ponto em que há algo do laço no cotidiano que deixou de ser natural. É isto o que permite abrir para uma pergunta sobre a sua cumplicidade de gozo em jogo, sua afetação pessoal e sobre aquilo em que está enredado.

O Clézio começa O Africano assim:

Todo ser humano é resultado de um pai e uma mãe. Pode-se não reconhecê-los, não os querer, pode-se duvidar deles. Mas estão ali, com suas caras, suas atitudes, seus modos, suas manias, suas ilusões, suas esperanças, (…) suas maneiras de falar, seus pensamentos, provavelmente as idades de suas mortes, tudo isto nos foi passado[2].

Assunto de família é, sem dúvida, assunto de transmissão e nunca é a mesma para cada filho. A transmissão não é para todos, se dá um a um. A psicanálise sabe que o gozo é assunto de contingência e, por isso mesmo, se dispõe tocar, fazer algo novo com o que, supostamente, vem por necessidade do destino familiar.

Mas um simples par de óculos não bastava para a imagem que conservei deste primeiro encontro, a estranheza, a dureza de seu olhar, acentuada pelas rugas verticais entre as sobrancelhas… O que me causou um choque não foi a África, mas a descoberta deste pai desconhecido, alheio, possivelmente perigoso. Ao ridicularizá-lo com seus pince-nez, eu justificava meu sentimento. O meu pai, meu verdadeiro pai podia usar pince-nez? Imediatamente sua autoridade foi questionada[3].

Com Freud, podemos dizer que o familiar é sempre algo do un-heimilich, este instante no qual o mais familiar se torna estranho. A impressão de estar em família, de pertencer a uma célula, de repente se torna um lugar inóspito, inclusive ameaçador – a angústia não é sem objeto. É preciso um trabalho de elaboração para que o neurótico localize quais são seus objetos e não apenas os personagens da família. O que e não quem é suporte para seus laços.

O olhar, os óculos, recortam e velam ao mesmo tempo a severidade, o perigo e o sentimento de distanciamento, versão do gozo de um pai, uma père-version.

Para quem se analisa, os assuntos de família são assuntos da língua. Ao mesmo tempo são assuntos pulsionais: é o modo como cada um logra objetar a crença na família enquanto tal, suas ficções e seu programa de ideais.

Há o que se pode e o que não se pode colocar em palavras, este último permanecerá como não dito, seja como segredo do gozo, seja como produção de um resto do que não pode ser coberto pelo simbólico. Este é o resto que leva a família, como lugar do Outro, a ser uma fonte inesgotável de interpretações. É no espaço da família que alguém aprende a pedir na própria língua, a primeira experiência de reconhecimento de sua palavra. As consequências do pedir em psicanálise são duplas: o desejo e a pulsão[4]. O interpretável e o não interpretável, o melhor, o limite da interpretação.

A família, as gerações, colocam em jogo o exercício de rememoração, a possibilidade da memória e com isto, a função do tempo. Existe algo mais real que o tempo?

Retorno ao El Africano:

O barco que me arrastava para este outro mundo também me trazia de volta a memória… Tudo está tão distante e tão perto. Uma simples parede fina como um espelho separa o mundo de hoje do de ontem. Não falo de nostalgia. Esta pena desamparada nunca me provocou prazer. Falo de substância, de sensações da parte mais lógica da minha vida. Algo me foi dado. Algo me foi tirado. Este tesouro está no fundo de mim mesmo sempre vivo e não pode ser extirpado. Muito mais que de simples lembranças, está feito de certezas. Se eu não tivera este conhecimento carnal com a África, se não tivesse recebido uma herança da minha vida antes de meu nascimento… em que teria me convertido?

(…) não apenas esta lembrança de uma criança, extraordinariamente precisa para todas as sensações, os cheiros, os gostos e o sentimento de duração. Agora o compreendo ao escrevê-lo. Esta memória não é apenas minha. É também uma memória do tempo que precedeu meu nascimento.[5]

Na historicização que um sujeito faz de si em análise se produzem tropeços, pontos em que o relato deixa de ser tal, para passar a fazer uma leitura de uma marca de gozo de lalíngua ou um afeto, leitura de um sintoma, o não historicizável aparece.

(…) “quando o texto interrompendo-se (..) deixa nu o suporte da reminiscência”. A sustentação da reminiscência significa, exatamente, que o sujeito não pode elaborar uma verdade a partir de uma experiência. (…) Há no fundo, desnudado, algo que não é nem uma verdade nem uma mentira, senão, um real puro e simples[6].

Lacan, no Seminário sobre Joyce, se ocupa em diferenciar a rememoração da reminiscência.

Miller o retoma:

(…) O que Lacan chama de reminiscência, com seu correlato de sentimento de irrealidade ” responde às formas mais imemoráveis que aparecem sobre o palimpsesto do imaginário”[7].

(…) A reminiscência é a suposição de que algo já está ali (desde sempre), (…) que não se sustenta com um sujeito suposto saber e que, quando aparece, o faz em seu solitário esplendor, se me permitem a expressão. Aparece como se tivesse sido apreendida ou adquirida em outra existência ou em um estatuto eterno do sujeito[8].

Uma vez atravessada a experiência analítica pelo crivo da palavra, as ditas voltas que em sua redução permitiram esclarecer as identificações, os trajetos do fantasma e do sintoma e, no melhor dos casos, chegar a um dizer que diga da boa maneira, o impossível e sua subjetivação demonstrável… O que fica disto, dos assuntos de família?

Eu o digo assim: um eco sutil que não se enlaça a nada e a ninguém, mas se apoia na certeza do poder da língua que se aprendeu em uma família, na de cada um. Falar tem suas raízes no espaço e no tempo. O inacessível do mistério da origem para cada um se toca com o inacessível do trauma. Entretanto, isto não nos exime, nós psicanalistas, nem o escritor, de impulsionar a língua que se cria, de sermos mais poetas que nostálgicos, ou melhor, fazer da memória, poesia, e dos assuntos de família, uma matéria de vida.

Março 2017

Tradução: Rachel Amin
Revisão: Bartyra Ribeiro de Castro

NOTAS

  1. Lacan, J. (1938) “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, Zahar ED., Rio de Janeiro, pag 31.
  2. Le Clézio, J.M.G., El africano, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2013. Tradução livre.
  3. Ibidem
  4. Miller, J.-A., “Cosas de familia en el inconsciente”, Introducción a la Clínica Lacaniana, Conferencias en España, Barcelona, RBA Libros, S. A., 2006, p. 343.
  5. Le Clézio, J. M. G., El africanoop. cit. tradução livre.
  6. Miller, J.-A., (2006-2007) El ultimísimo Lacan, Buenos Aires, Paidós, 2013, p. 50. Tradução livre
  7. Ibídem, p. 50.
  8. Ibídem, p. 68.