(urgências do ser, urgências de existência, urgência do sinthoma, urgência de insatisfação)
Trabalhamos o tema das urgências do parlêtre a partir dos dois últimos cursos de J. A. Miller: Coisas de fineza em psicanálise e O ser e o Um.
Primeiramente, sugerimos as urgências de existência e, depois, a urgência de ser.
As urgências de ser se apresentam naqueles parlêtre que estão dentro da estrutura do discurso, aqueles nos quais o Nome-do-Pai opera e se desenvolvem as problemáticas da falta, da falta-a-ser, do falo, da significação fálica, do sentido, do gozo fálico, do desejo em relação ao desejo do Outro, a dialética do desejo e do fantasma, do desejo e do objeto a. Muitas vezes, apresentam-se como angústias, medos, obsessões, depressões, etc… A problemática do Ser, as questões do NÃO Ser…
As urgências de existência surgem nos que estão fora do discurso, sem os mesmos recursos daqueles que estão dentro dele. Aqui, a urgência é de existência, de existir, de sustentar a própria existência e não da questão de ser para o Outro. Essas urgências estão relacionadas ao gozo do Um, ao gozo auto-erótico, ao gozo que se inscreve e se fixa no corpo, de modo contingente e através de um significante qualquer, não predeterminado, não programado. Tais indivíduos, desprovidos da estrutura simbólica do discurso, não puderam realizar a dimensão do Ser como resposta a essa marca inicial de gozo, não puderam elaborar a ficção do fantasma para administrar os efeitos desse gozo Uno, é dizer, uma Lei que permitiria, de algum modo, cernir esse gozo Uno.
Quando se trata do ser, referimo-nos ao mundo do sentido, do dialetizável, daquilo que se pode elaborar, nomear, enfim, das ficções que cada sujeito cria a partir de seus significantes. A angústia do corpo pode se revestir de semblantes e tais indivíduos se encontram assujeitados pelos significantes estruturados em uma ordem simbólica singular, sempre em relação ao constante gozo Uno.
Em relação à existência, esse gozo Uno é constante, não dialético, anterior ao Ser. Uma vez fixado no corpo por um significante – a letra – tal gozo oferece ao sujeito uma existência singular, não em relação ao Outro, mas auto-eroticamente consigo mesmo.
Na urgência da existência, ocorre uma problemática do corpo que não está gerenciada e protegida pela problemática do ser e seus semblantes, como nas neuroses. Em Coisas de fineza em psicanálise, J.A. Miller afirma: “O próprio inconsciente é uma defesa contra o gozo, em seu estatuto mais profundo, que é o estatuto fora-de-sentido”.
Em alguns indivíduos, uma solução para gerenciar o gozo é separar-se, desligar-se do corpo. Apresentamos uma vinheta clínica. C. é uma mulher cuja existência, em suas próprias palavras, está ligada ao olhar. Ser “mirada”, em ambos os sentidos (n.t.: a um só tempo “ser vista” e “estar como alvo do outro”), marcará sua relação com o outro e com seu corpo. O que se passa quando não há o olhar? Uma cena responde à pergunta. Tarde da noite, C. tentava conciliar o sono, enquanto seu marido assistia um filme ao seu lado. Na vizinhança, todos comemoravam o Natal com fogos de artifício. C. diz a ele que desligue a TV e que saia em sua defesa, para pedir aos vizinhos que parem com o barulho dos fogos. Entretanto, ele ignora seus pedidos e C. interpreta isto como se “nunca tivesse existido”; no momento dessa sutileza, sente uma angústia imensa, sente desligar-se do seu corpo e se ausentar completamente dele, relatando que, assim, fica em um “limbo”. Para ela, a perda do corpo é vivida como a perda da própria existência.
Outra vinheta clínica. Maria é uma mulher de 52 anos que foi diagnosticada com Parkinson, há 4 meses. Sua mãe, ao se separar de seu pai, emigrou para a Venezuela e cortou qualquer possibilidade de contato de Maria com seu pai biológico. A mãe casou-se de novo, desta vez com um alcoólatra que, quando embriagado, violentava Maria, ainda no início de sua puberdade. A mãe não intervinha, já que também estava submetida a humilhações, por parte do marido. Na adolescência, foi novamente estuprada, desta vez por um amigo da família, sem que a mãe a defendesse. Disse que, desde então, sente-se um “estorvo” para a mãe. No início da idade adulta, entrou em um partido político de esquerda e a militância política lhe conferiu uma identificação que, até então, não tinha construída; esse fato pacificou sua relação com a mãe e Maria conseguiu um emprego em consequência de seus contatos dentro do partido. Apaixonou-se por um ativista político de lá, com quem se casou e teve filhos. Ela chegou, inclusive, a se tornar guerrilheira. Essa identificação lhe deu um lugar no mundo que não tinha até então; sem ela, Maria ficava fora do mundo do Outro, era um “estorvo”. Manteve essa identificação por mais de 30 anos. O diagnóstico de uma doença degenerativa como o Parkinson a obrigou abandonar a vida ativa na política e, então, entrou em uma depressão severa: era preferível a eutanásia a viver como um “estorvo”. Sem a incorporação da vida, oferecida quando era militante política, ela ficava sem possibilidade de existir, sem existência e, assim, Maria desencadeou uma forte ideação suicida. Nessa urgência, o que está em jogo é a própria existência na sua falta-a-ser.
Em terceiro lugar, quando se trata de um A.E., constata-se, por outro lado, que o auto-gozo do corpo pelo sinthoma determina uma tensão, que nas neuroses é gerenciada pelo Nome-do-Pai e nas psicoses pelas suplências imaginárias. Por, exemplo, no caso de Salamone, a Sede. Ele goza da Sede, aqui não temos um apelo ao Outro para se encontrar um objeto que diminua a sede: é da própria sede que se goza, da sede que vivifica o corpo e que, por outro lado, o levaria à morte…ao lhe desidratar por completo…o supereu de Freud, puro cultivo da pulsão de morte, segundo Lacan, seria um empuxo a gozar, a obter um gozo no limite, na tensão constante entre a vida e a morte. Isto implica em angústia e urgência constantes do parlêtre, algo que se mantém de modo reiterativo e permanente e que seria causa do desejo.
Em quarto lugar, esse modo de gozo produz no parlêtre muita insatisfação, a mesma insatisfação que determina a urgência em buscar a experiência analítica. É o que nos diz Lacan, no prefácio da edição inglesa do seminário 11 e J.A. Miller, em Coisas de fineza em psicanálise. A análise chegaria ao seu final quando se obtém satisfação e, então, a urgência de se analisar se cessaria.
Tradução: Fábio Paes Barreto.