Por José Fernando Velásquez (NEL)

Que operações na família marcam o corpo falante e o gozo de cada um dos seus integrantes?

Em primeiro lugar, a psicanálise propôs considerar o desejo acima “do natural”. Essa foi uma virada subversiva vigente que afirma e admite o papel fundamental dos cuidados da criação, os quais não estão determinados pela biologia nem pelos lugares predeterminados pela tradição. Mãe já não é aquela que pariu o bebê, nem pai é o genitor que engravida a mulher. Gravidez e parto não implicam em maternidade, tanto como o ato de fecundação de um homem não define a paternidade. A relação entre os constituintes de um casal não está tão determinada agora por fatores usuais (como o casamento, a convivência ou ter um filho com alguém); assim como as relações dos filhos com a “mãe” e com o “pai” são um processo de construção simbólica, de identificações imaginárias e de reconhecimentos de gozos, passo produzido no vínculo gerado durante os cuidados da criação.

Para os descendentes se constitui o chamado Complexo de Édipo, tempo de ordenação dos gozo, das identificações e da normatização, em função das pautas dos progenitores e a organização familiar, enquanto grupo social fundado em relações de aliança, desejo e gozo, em um momento e contexto histórico determinado.

Mas a psicanálise de orientação lacaniana não ficou nesse ponto. Depois de argumentar o estruturalismo da função paterna, começou a reconhecer outras dimensões participantes na estrutura, que passam a ser fundamentais na vida psíquica. As identificações, influenciadas pelos atos, as inibições, os semblantes e as potências dos outros que são familiares, tomam seu lugar equivalente ao influenciar a estruturação da dimensão imaginária. E os gozos, começando pelo gozo do objeto da pulsão parcial, os sentidos, as certezas, inscrevem o ser de gozo em sua particularidade a respeito dos outros participantes de uma comunidade familiar.

 

Na contemporaneidade, que dinâmicas podem ser identificadas?

A representação produzida, sustentada e transmitida da parentalidade não é uma construção imutável senão que varia segundo as práticas de produção de sentido e as formas de gozo em cada época e cultura.

A reconstrução do sistema simbólico como função, influenciada pelo declínio do Pai na tradição, tem por consequência, necessariamente a onipotência dos gozos não interditos, representada na linguagem psicanalítica como o gozo feminino anteriormente denominado de Demanda Materna. Mas não somente esse. Também há novas e infinitas modalidade de identificação que reclamam um lugar e reconhecimento, por exemplo nos gêneros sexuais e nas novas e intensas formas de relação com o objeto da pulsão parcial. Tudo isso acompanhado pela invenção de formas inéditas da relação com os significantes que comandam o falasser, o que conduz ao que conhecemos como pluralização dos sistemas simbólicos, ou dos Nomes-do-Pai.

As transformações e a renovação das configurações familiares, foram propiciadas nas últimas décadas pela subversão das técnicas reprodutivas inovadoras, pelas mudanças sociais, (laborais, técnicas, políticas), pelos novos valores e crenças sobre os gozos agora possíveis, pelo discurso do mercado, a incerteza e a falta de garantias que empurram a um viver mais imediato, com menos sustentação na tradição e nos modelos familiares tradicionais. As mídias digitais se prestam para a construção de um Outro mais virtual, global e acessível, não proibitivo e diferente do Outro da tradição. Agora a convivência de pluralidade de gozos dá forma a grupos familiares que não respondem a um único modelo em que estava baseado o conceito ordenado pela autoridade sagrada do pai e a incondicionalidade da mãe, que classificava as relações e os vínculos entre homens, mulheres e sua descendência. O produto de tudo isso são as neo-parentalidades[2], representações vinculares familiares diferentes das tradicionais.

Essas mudanças perturbam e colocam em xeque o sistema de crenças relativas à organização do parentesco sedimentado durante séculos, gerando polarizações conceituais e legais que ocupam os jornais e noticiários, sobre situações singulares “estranhas” cada vez mais frequentes e sobre as quais é necessário legislar. Nessas discussões se escutam frequentes argumentos que postulam supostos universais fundados num estruturalismo de diversos cunhos, sejam biológico, antropológicos e inclusive psicanalíticos, que dificultam a compreensão das singularidades.

Aqui é crucial a posição do psicanalista, se situando além dos ditos estruturalistas e guiando-se pelas dimensões “borromeanas” do falasser.

 

Em direção a um conceito borromeano da família.

A representação produzida, sustentada e transmitida da família é um sistema de vínculos de aliança (afetiva e pactuada), que provoca em primeiro lugar, uma historização[3] do vinculo de parentalidade e filiação: segundo, cria cenários e roteiros que caracterizam esses laços. Ambas condições são determinantes na estrutura do falasser, seja naquele que se constitui como parte do casal parental e em quem ocupe o lugar da descendência, ainda que esta não seja exclusivamente de consanguinidade (já que há vínculos de criação, instituintes[4], não biológicos).

Os vínculos do casal e de filiação se constituem segundo a situação no interior desse sistema, de acordo com as operações dinâmicas que resultarão decisivas nas características de consistência, existência e furo, as três dimensões nas quais habita o ser falante.

  • Imaginário: O desejo fundamenta parte dos vínculos de parentalidade e filiação. Um sujeito reconhecido no amor e no desejo do Outro é a base para a constituição do sujeito do inconsciente transferencial (fantasmático, fálico), sentimentos humanos profundos positivos ou negativos, de amor-ódio-contenção-discriminação, proteção-desproteção, segurança-insegurança, autoritarismo-democracia.
  • Simbólico: Um dos efeitos da ordem familiar é a reprodução social da vida segundo funções e papéis que incluem modalidades de interdição e normatização. A interdição constrói circuitos psíquicos em torno de um objeto impossível para o desejo, a palavra, a lei e o gozo. Esses são a base para a constituição de um sujeito social (inscrição na cultura).
  • Real: Condições para que se produza um “Há Um” na singularidade e não na holófrase com outro, é aquela dimensão que escapa ao Pai simbólico, à tradição, escapa também à demanda materna, e se produz ali um falasser do inconsciente real, que propicia um espaço para o novo e para a diferença como condições da subjetivação.

Considerar as condições que se precisam no singular para exercer as funções e papéis na estrutura psíquica de cada falasser, sem estar determinados pelo gênero nem por sua posição no sistema de parentesco, põe em questão os supostos que levamos inscritos por nossa formação e nos leva a nos interrogarmos sobre as condições que um sujeito e um falasser reconhecem a quem chama ou reconhecem como “seus pais”, ou “seus irmão”, inclusive “seus filhos”. Quer dizer, como a posteriori um sujeito pode dar conta como, para ele/ela, houve pai e/ou mãe, filho/filhas, irmão/irmã.

Subtemas a trabalhar….

  • Condições que um sujeito e um falasser reconhece em quem chamar como “seus pais” e irmãos.
  • Presença/ausência do pai e seus impactos na criação.
  • Vínculo de criação, instituintes, não biológicos.
  • Políticas públicas e exercício da parentesco.
  • Parentalidades e mudanças familiares: em torno da transmissão do desejo e da lei.
  • Reprodução humana assistida
  • A influência do mercado, aumento do narcisismo e diminuição da interdição.
  • Parentalidade quebrada, a ruptura dos vínculos de parentesco.

Tradução: Maria Silvia Garcia Fernández Hanna

NOTAS

  1. N.T. Decidimos pela manutenção do neolgismo por este apresentar as novas formas de parentescos.
  2. N.T.O neologismo mantido.
  3. N.T.Neologismo mantido.
  4. N. T.Neologismo mantido.