ARGUMENTO
O próximo Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL) propõe um tema fundamentalmente clínico articulado a uma dimensão temporal que abre pelo menos quatro grandes vias de pesquisa..
- A primeira decorre das perguntas: O que leva um sujeito a procurar um analista nestes tempos que correm? Como se iniciam as análises hoje?
Lacan afirmou que “no começo da psicanálise está a transferência. (…) Está ali no começo. Mas o que é?”1. Este fundamento introduz o tempo como uma variável inevitável para dar conta da experiência analítica. No entanto, é também um convite a pensar sobre como e o que desse amor misterioso chamado transferência se instala hoje, quando a época tende à desvalorização do saber, favorece a “autogestão”, promove a liquidez dos laços amorosos e empurra para a “autopercepção”, versão mais recente da negação do inconsciente.
J.-A. Miller afirma que na era de Freud “a psicanálise tinha tios e tias, primas e ancestrais de todos os tipos, netos, e agora está viúva, orfã…”2. A solidão atual da psicanálise é também uma oportunidade para demonstrar sua diferença radical com outros discursos.
Nosso próximo Encontro nos permitirá expor como o que chamamos de “orientação para o real” está presente desde a primeira consulta; mesmo quando se apresentam os transbordamentos e os excessos das disrupções do gozo. Neste ponto, se não se tornarem uma pergunta essencial para o ser falante, tais disrupções se abririam per se a uma experiência de análise?
Lacan disse que “só o discurso analítico é exceção”, e que “… ele não tem nada de universal.”3.
A psicanálise exclui a dominação e não persegue a norma. Transmitir isto no diálogo com o Outro social é uma forma de possibilitar que o sujeito contemporâneo e seus novos modos de apresentação sintomática encontrem um espaço propício para se alojar. Nisso se situa uma incidência fundamental do psicanalista na cultura, um a um. Como disse Lacan em Lovaina: “… algo que se estabelece do analisante ao analista é a célula inicial de algo que deve ir muito além, que irá ou não irá, mas se acontecer, esta posição do analista terá um lugar essencial no mundo do mal-estar na civilização”4.
Este ENAPOL, então, será a ocasião para dizer o que fazemos e como o fazemos, desde o primeiro encontro com um sujeito que buscou análise, mas também, para explorar as novas modalidades de apresentação clínica que circulam pela época.
- A segunda via de pesquisa baseia-se na seguinte questão: Quando começa uma análise?
Falar sobre a entrada em análise implica localizar o momento e os índices de uma transformação que separa um antes e um depois. Ao mesmo tempo, institui-se o cruzamento de dois tempos lógicos diferentes: o momento de concluir as entrevistas preliminares e o instante de ver que conota a implicação subjetiva e que coincide com a abertura do tempo de compreender.
Esse cruzamento temporal, instalado a partir do ato analítico que sanciona a entrada, já oferece uma leitura possível das marcas de gozo fundantes, e contém coordenadas significativas do caso que encontrarão esclarecimentos durante a análise. Por essa razão, sustentamos que a clínica do fim de análise orienta as entrevistas preliminares.
Além disso, sabemos que a psicanálise pura tem uma relação moebiana com a aplicada, são duas faces da mesma banda. Seguindo essa lógica, propomos explorar o que um analista pode fazer quando é convocado com um limite de tempo. Ou como pode atuar em diferentes dispositivos, como escolas, hospitais; naqueles lugares onde se apresentam demandas de urgência e onde alguns encontros, quando não apenas um, serão a única oportunidade para aquele que necessita ser atendido em seu padecimento, para obter uma resposta diferente daquela oferecida pelo mercado terapêutico.
Como operar analiticamente ali, em um breve lapso e com condições desfavoráveis para o discurso analítico, de modo que a porta fique aberta para um “começo”?
- A terceira via de pesquisa que abre o XI ENAPOL está ligada à questão Como a clínica do começo de uma análise mudou nos últimos anos?
Tradicionalmente, pensamos na entrada em análise como “um golpe desferido no fantasma fundamental”5, que retirava consistência da segurança que o sujeito obtinha dele. A partir daí derivou-se a lógica das entrevistas preliminares. Essa lógica era solidária de uma época com um Outro ainda estável, do qual o prestígio do psicanalista era subsidiário no momento da primeira consulta. No entanto, neste momento, nem sempre podemos contar com estas condições.
Por sua vez, a formação dos analistas também teve variações. Desde que nos dedicamos a estudar o último ensino de Lacan, graças à elucidação que dele fez J.-A. Miller, entendemos que o início de uma experiência de análise poderia tornar legível como lalíngua escreve no corpo a letra do encontro traumático com um gozo desconhecido, as marcas do trauma, a fixação do gozo, o mal-entendido fundamental. Ter em perspectiva essas formas de opacidade do sentido, assinala a orientação pelo real desde o início da análise, singulariza a escuta analítica e a diferencia de outras terapêuticas.
Como essas mudanças nas condições da nossa prática afetaram o início das análises? Como um analista se posiciona no primeiro encontro com sujeitos cada vez mais reativos ao inconsciente e mais perturbados pelo gozo do corpo? Que incidência teve a popularização das consultas virtuais e da tecnologia na decisão de buscar um analista pela primeira vez? Como precisar o uso que fazemos da categoria Psicose Ordinária em sua relação com as instâncias diagnósticas?
Essas são algumas das perguntas que nos convidam a colocar nossa clínica à altura da civilização e, também, do último ensino de Lacan.
- Finalmente, o título que nos orienta é um chamado aos praticantes: Começar a se analisar!
É um convite a manter viva e dar conta da posição analisante que se espera daqueles que encarnam o discurso psicanalítico no dia a dia. Trata-se de uma proposta diante de certos dilemas políticos da psicanálise, ao mesmo tempo em que poderia orientar a resposta face aos impasses da formação, às encruzilhadas éticas e aos desafios da clínica contemporânea.
Seguimos Lacan no Seminário 24: “Aquele que sabe, em análise, é o analisante”6. Como o praticante consente com essa condição de prática analítica nas primeiras sessões? Como esse praticante pode dar o passo lógico em direção a “romper com sua ancoragem na suposição”7 para permitir que o saber do analisante se desdobre?
Essa quarta via nos implica especialmente, porque vai além das questões que nos coloca nossa prática, a época ou o estudo dos textos. Ela se dirige diretamente à relação que cada praticante tem com a psicanálise.
Finalmente, as vias de investigação que se abrem para o nosso próximo Encontro Americano acabam produzindo uma torsão que nos implica e interpela. O XI ENAPOL abre a porta para esta questão ética fundamental: começar a se analisar!
Esperamos vocês!
Jorge Assef
Presidente XI ENAPOL
María Cristina Giraldo (NEL) Sergio Cordeiro de Mattos (EBP) Oscar Zack (EOL)
Comissão Científica XI ENAPOL
Eixos temáticos
Tradução: Nohemí Brown
Revisão: Paola Salinas
1 Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003, p. 252.
2 Miller, J.-A., “Psicoanálisis y conexiones”, Mediodicho, n. 34, EOL-Secção Córdoba, Córdoba, 2008, pág. 12.
3 Lacan, J., “Transferência para Sainte Denis? Lacan a favor de Vincennes!”, Correio: Revista Lacaniana de Psicanálise, n. 65, abril 2010, p. 31.
4 Lacan, J.: “Conferência em Louvain”, Revista Quarto , nº 3, 1981. Comentário de Manuel Montalbán sobre esse texto disponível em: https://www.redicf.net/conferencia-de-lovaina-de-jacques-lacan -parte-1a/
5 Miller, J.-A., “C.S.T. Clínica-Sob-Transferência”, Clínica Lacaniana, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed, 1989, p. 10.
6 Lacan, L., “Rumo a um significante novo” (Seminário 24, 17 de maio de 1977), Opção Lacaniana, n. 22, agosto de 1998, p. 12.
7 Laurent, E., “Tratamiento psicoanalítico de la psicosis e igualdad de las consistencias”, la Conversación clínica, UFORCA, Buenos Aires, Grama, 2020, pág. 43.