RUBRICA 1

TRANSFERÊNCIA

Transferência. Prescindir do Outro

Marita Hamann – NELcf

Transferência e interpretação são os conceitos que mais variam no último ensino de Lacan. Efetivamente, a psicanálise muda, tal como a época, de modo que, para este, como para tantos outros temas da psicanálise, convém ter a Lacan presente en bloco.

Em que posição o analista escuta?, Rabanel[1] se pergunta. No tempo do Outro da verdade e do desejo, privilegia-se a semântica e a história, a escansão e a pontuação. No tempo do Outro como saber, o acento recai sobre a lógica do significante e, a partir do Seminário 11, principalmente, na presença do analista como objeto a, “o que não é o mesmo que falar para o Outro”[2]. Aqui, é o desejo do analista que está em jogo no corte e no ato, apontando para a pulsão e para uma retificação do gozo que permita “viver a pulsão”, como sugere Lacan –de uma maneira algo enigmática– ao final deste seminário.

No último ensino de Lacan, trata-se da presença do analista como Um-corpo, já que, ao contrário do sujeito do inconsciente, o ser que fala tem um corpo. Não é que o corpo fale, mas, se fala com o corpo[3]. E a noção que mais nos orienta é o modo no qual cada um consegue se arranjar com o gozo, o sinthome.

O ponto de virada se situa[4], nos lembra S. Souto, no fato de que a própria noção de inconsciente varia se se considera que se trata do discurso do Outro, ou da satisfação do Um sozinho, que não quer dizer nada a ninguém, o que coloca um impasse no que diz respeito à transferência como suposição de saber.

No fim das contas, o objeto a, falso real, não é senão um semblante que permite operar com o gozo, mas que não o consegue senão como tampão ou como falta. Para além, trata-se da existência de um gozo não negativizável, incurável, cujo sentido real, relativo ao acontecimento de corpo, traumático, terá que ser nomeado e manipulado mediante uma invenção singular, de natureza ôntica e ética e de índole pragmática, que possibilite um uso lógico do sinthome.

Frente a sujeitos cuja fala discorre entre o Um que existe, o gozo e o Outro que não existe, a presença do analista torna patente o fracasso na satisfação[5], o fato de que não há autoerotismo perfeito e, paradoxalmente, por esta razão “é passível de dar corpo ao inconsciente real”[6]. Assim, sua presença faz existir “aquilo que do gozo do Um não alcança ao gozo esperado. […] O insucesso do inconsciente é, portanto, o que dá asas ao amor… transportando-o para fora de sua esfera solipsista”[7].

Diante dos Uns sozinhos, o analista “não está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue[8] […]. É ele quem «faz de verdade» o bloqueio”[9], em uma experiência que dá lugar a uma nova versão da transferência positiva[10], para forjar um “saber fazer” com um companheiro de rota que suporta o furo.

Tradução: Daniela Araujo.
Revisão: Paola Salinas.


[1] Rabanel, J.-R. (ECF), “Présence de l’analyste”. Recuperado de: https://journees.causefreudienne.org/presence-de-lanalyste-2/. Tradução livre.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] Souto, S. (EBP), “Como conceber a transferência na clínica do Um que dialoga sozinho?”. Recuperado de: https://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/2019/06/21/como-conceber-a-transferencia-na-clinica-do-um-que-dialoga-sozinho/

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Laurent, E., “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana, n.º 79, Revista Brasileira de Internacional de Psicanálise, São Paulo, Edições Eolia, julho de 2018, p. 56.

[9] Ibid., p. 59.

[10] Ibid., p. 58.

RUBRICA 2

TEMPO / TEMPORALIDADE

O asco! –entre os corpos e o discurso analítico–

Ernesto Sinatra – EOL

Entre 1971 e 1972, Jacques Lacan desdobrou seu ensino entre “O saber do analista” e …ou pior. Em ambos os cenários ele se referiu às entrevistas preliminares.

Em Saint-Anne[1], Lacan assinalou seu modo necessário, isto é, sua atualidade: “Todos sabem –alguns o ignoram– da minha insistência nas entrevistas preliminares na análise com aqueles que me pedem orientação”. É claro que isso tem uma função essencial para o analista. “Não há entrada possível na análise sem entrevistas preliminares”[2].

Quatro meses depois, em seu seminário, volta às entrevistas preliminares, agora para sublinhar nelas a importância da confrontação dos corpos; ele o faz a partir de uma espécie de Fort-Da, nas entrevistas preliminares incluí-los, na entrada em análise retirá-los:

Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez e eu escando nossa entrada na história com algumas entrevistas preliminares, o importante é a confrontação de corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico. Mas persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico, coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar corpos[3].

E depois de situar a consideração dos corpos a partir da entrada no discurso analítico, Lacan introduzirá o que se encontra entre os dois: os afetos.

Entre o corpo e o discurso há algo com que os analistas se deleitam, chamando-o, pretensiosamente, de afetos. É evidente que vocês são afetados numa análise […].

Sejamos claros. Quando, de repente, uma coisa lhes comove o coração, por vocês não saberem muito bem se não são meio responsivos na maneira como uma análise correu mal, se não houvesse deontologia, se não houvesse jurisprudência [categorias introduzidas previamente no nível do discurso do mestre], onde ficaria essa dor no coração, esse afeto, como se diz? De vez em quando, conviria tentar dizer um pouco a verdade[4].

Se entre corpo e discurso estão os afetos com os quais os analistas se deleitam, dizer um pouco a verdade implica aqui reconhecer a responsabilidade na maneira como uma análise correu mal a partir do asco ou da repugnância[5] contratransferencial. Recordemos que, em “A direção da cura…”[6] Lacan se refere à contratransferência como uma má palavra quando aplicada pela enfatuação do analista como a certeza que seus afetos lhe ofereceriam para saber-interpretar seu paciente –e não como uma marca do que não anda, por exemplo, na direção das análises que conduz–.

Mas, não se trata, então, de que esses afetos –viscerais– constituam a marca de uma recusa ao discurso analítico, uma recusa produzida no próprio corpo do analista…?

Se assim for, este modo de ser afetado pelos afetos é o que ganha relevância na época atual, em que a confrontação de corpos das novas apresentações sintomáticas chegam –em não poucas ocasiões– a ser perturbadoras, sobretudo a partir dos juízos prévios –isto é: dos preconceitos– que ressoam no corpo dos analistas.

Talvez seja assim que podemos ler a indicação de Lacan: o asco que designa a maneira como uma análise correu mal, é o lapso do ato analítico agora encarnado no corpo do analista –corpo que precisava ser desalojado no final das entrevistas preliminares, como condição de uma entrada no discurso analítico–. Seria o mesmo que dizer que o corpo –não o do “paciente”, mas o do analista– é afetado, quer dizer: interpretado por um afeto disruptivo.

Nesta perspectiva, talvez mais do que nunca, o umbral das entrevistas preliminares surja hoje como um lugar privilegiado onde os nossos preconceitos são cultivados –a partir dos multiformes envelopes formais apresentados pelos sintomas– numa época em que ao pai pulverizado respondem gozos pluralizados.

Tradução: Ruskaya Maia.
Revisão: Paola Salinas.


[1] Lugar de suas “conversas”, como Lacan denominou suas aulas sobre “O saber do analista”, que tomaram forma escrita em Estou falando com as paredes.

[2] Lacan, J., (1971) “Da incompreensão e outros temas”, Estou falando com as paredes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2011, p. 41.

[3] Lacan, J., (1971-1972) O seminário, livro 19, …ou pior, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2012, p. 220.

[4] Ibidem.

[5] N. de T: O autor utiliza os termos asco e repugnância presentes na tradução ao espanhol do Seminário 19. Inclusive isso dá título ao texto. Na tradução ao português, as expressões utilizadas, presente inclusive nas citações são: dor no coração e comove o coração, respectivamente. Optamos por manter asco devido ao uso que o autor faz do termo em seu texto e no título. No seminário no francês, as expressões são: ce mal au coeur e vous tourner le coeur.

[6] Lacan, J., (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 591.

RUBRICA 3

PERSPECTIVA DO SINTOMA

Entradas e saída

Ana Lucia Lutterbach – EBP

Um exemplo de começo que, como todo começo, é absolutamente singular:

… estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar só com o que vivi[1].

Aqui, Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G.H., começa procurando dizer para não ficar só com o vivido. As análises, como os livros, começam de qualquer lugar, mas será sempre um começo único, sempre a tentativa de dizer o que até então não tinha encontrado lugar, nem palavras para se dizer. Encontra-se primeiro um lugar ao encontrar um analista e ali continuar achando palavras. Às vezes começa com queixas atabalhoadas, às vezes com um acontecimento que abalou o “de sempre”, outras vezes começa no silêncio, “nonada”.

O início é assim, com muitas histórias ou sem nenhuma. Com angústia e desespero, com uma passagem muito forte ou com a conversa fiada de quem não sabe o que dizer. Ou então calado. É o analista que começa a leitura do excesso de palavras ou da falta delas e, dessa confusão inicial, se extrai um significante que transfigura o sem sentido ou o muito de sentido em um sintoma que serve ao analisante para, inicialmente, localizar um ponto de gozo que diz algo. Daí, se dá a partida para a aventura de uma análise, para a experiência do inconsciente.

Até o século passado, as narrativas iniciais eram pautadas principalmente pela tentativa de um relato organizado nos moldes de uma confissão ou de um romance, quase sempre familiar –geralmente historinhas de papai e mamãe–, e cabia ao analista a leitura e o manejo atentos ao surgimento de formações do inconsciente, ao material que fornecesse indícios para a construção da fantasia ou para a abertura do campo real. Eram sessões longas, várias vezes por semana. Freud recebia seus analisantes diariamente e se preocupava com o domingo sem sessão, que poderia fechar a abertura instalada: “falando de uma «crosta de segunda-feira», quando após o descanso do domingo começamos do início”[2]. Os tratamentos geralmente eram curtos, duravam algumas semanas ou meses, mas ao mesmo tempo eram infinitos. Isto é, eram curtos, mas não tinham fim, pois os analisantes deveriam voltar de tempos em tempos.

Lacan, a partir da sua prática, propõe uma outra relação com o tempo, tanto das sessões como do tratamento. A análise tem um fim: o passe testemunha a experiência do inconsciente e a lógica de um final de análise. Nesta perspectiva, o início e o tempo de uma análise sofrem uma mudança que pode ser resumida assim: no começo, o sintoma e, no fim, o sinthoma, ou seja, invenções com aquilo que resta de gozo, de tal forma que este seja incluído na vida, não como estorvo, mas como solução.


[1] Lispector, C., A Paixão Segundo G.H., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 7.

[2] Freud, S., (1913) “Sobre o início do tratamento”, Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud, Belo Horizonte, Autêntica, 2017, p. 127.

A quarta via de investigação proposta no argumento do XI ENAPOL é um convite aos praticantes a manter viva a posição analisante daqueles que encarnam o discurso psicanalítico.

A orientação é a relação que cada praticante sustenta com a psicanálise, com seus dilemas políticos, impasses de formação, encruzilhadas éticas ou desafios com a clínica contemporânea. A partir desses eixos convocamos um colega de cada Escola para que possa desdobrar algumas dessas arestas, a partir de sua posição de analista e também atravessado pela posição de analisante.

Nesta oportunidade teremos uma conversação com Raquel Cors Ulloa da NELcf

1 Véase: https://enapol.com/xi/argumento-y-ejes/

Há começos, no plural

Entrevista a Raquel Cors Ulloa – NELcf

Edna Gómez: Os começos muitas das vezes têm algo de acaso, de surpresa, de contingência. O que você poderia dizer, Raquel, de como o contingente participa no começar a se analisar?

Raquel Cors Ulloa: Começar a se analisar não é algo que ocorre somente uma vez e para sempre. Há começos no plural. Começos que não só dependem da intenção, curiosidade ou entusiasmo para procurar um analista. Há começos que, em tempos difíceis, de urgência, de tédio, de vacilação ou de angústia, precipitam o momento de ir ao encontro de um analista. Há analisantes que depois de um longo percurso de análise, recomeçam sua análise com outro analista. Há começos que, como ensina a análise de cada um, começam no momento de empreender uma viagem inédita, desejando que durante esta experiência fortuita, o caminho seja uma aventura, como evoca o poema de Kavafis quando diz que: “sejam muitas as manhãs de verão em que chegues –com que prazer e alegria!– a portos nunca vistos antes”[1]. Assim, é a contingência, quando algo do acontecimento imprevisto sai do circuito do que já se sabe, como quando o caminho já não é uma linha reta, talvez então, algo novo pode começar.

Começar a se analisar é questão de tempo, sim, mas não o lapso de tempo que o relógio marca desde o início. A duração do tempo do começo, em termos analíticos, é uma experiência que para cada sujeito está determinada por seu amor ao inconsciente, um inconsciente que, precisamente, não conhece o tempo!

Assim, como a dimensão inconsciente surpreende, também o amor de transferência –que não está na pessoa do analista– é uma fortuna que poderia começar quando se consente com o real, que não é só o impossível, mas, o contingente. É por isso que a partir do momento singular de cada começo está a transferência onde jaz o objeto de amor; sem esse amor não saberíamos como terminam as análises e, também não, como nascem, como começam, como renascem!

O certo é que quando abrimos as portas às contingências não o fazemos para responder às demandas de amor com mais amor! É algo que os ensinamentos do passe transmitem sobre a rejeição de qualquer tentação de identificação com o sujeito suposto saber. Felizmente, há contingências que produzem a oportunidade de trabalhar sobre os pontos cruciais que concernem ao porvir da psicanálise; veremos que efeitos de ensino advirão a respeito disso durante o próximo ENAPOL.

Giselle Cardozo: Em relação às mutações do gozo e do desejo do analisante posto a serviço da Escola pela via de trabalho, você poderia comentar algo sobre o começar a se analisar enlaçados a ela?

Raquel Cors Ulloa: A sua pregunta abre para mim um mar de perguntas que não me atrevo a responder por outros, não mais do que cada colega –não a pessoa– em sua posição analisante na vida da Escola, responde e se enlaça.

Enlaçar-se à Escola, ao discurso que a habita, é uma imersão tão singular que dependerá do traço![2] de cada um. Como Miller assinala na primeira aula do seu curso do ano 2000-2001: “o lugar e o laço analítico dependem do laço do analista com a psicanálise”[3]. O conceito de Escola[4], tão diferente de uma sociedade analítica –constituída por psicanalistas que se reconhecem os uns nos outros–, requer dos nossos laços nas análises; isto é, do consentimento analisante ao inesperado. Não podemos esquecer o que Lacan inventou foi: “uma comunidade de trabalho, não de reconhecimento[5]. Quando a transferência de trabalho enlaça!, então, se lê como os gozos mutam e os atos não são apenas ações, mas consequências.

Os acontecimentos imprevistos não ocorrem o tempo todo, por isso é necessário que algo do automaton esteja instalado nas bases da Escola, para verificar a regularidade nos tempos de cada resposta e sua flexibilidade operativa nos modos de laço.

Há portas que se abrem a novos modos de suportar as diferenças, inerentes às contingências. Esta entrevista, que agradeço, me abriu a oportunidade de uma nova pergunta: “O que é que se enlaça entre a instituição e as destituições subjetivas? Como lhes dizia ao início, não me compete responder pelos outros; isso se lê em cada desejo analisante, no modo singular de laço com o heterogêneo da vida de Escola, não sem o constitutivo da interpretação e da vital transferência de trabalho.

Tradução: Ana Beatriz Zimmermann.
Revisão: Paola Salinas.


[1] Kavafis, C., Ítaca. Disponível em: https://sergiobarce.blog/2016/08/17/itaca-un-poema-de-konstantino-kavafis/ Tradução livre

[2] N. de T.: No espanhol rasgón. Este termo é a tradução de accroc, utilizado na publicação de O lugar e o laço pela Paidós. O termo aparece dentro da discussão a respeito daquilo que causa e faz cada um trabalhar, e se presta ao equívoco. Em espanhol: rasgón (rasgão) e rasgo (traço). No francês, accroc (rasgón/rasgão) e accro (adicto/adito). Ver página 13 da edição da Paidós.

[3] Miller, J.-A., (2000-2001) “La tentación del psicoanalista”, El lugar y el lazo, Buenos Aires, Paidós, 2013, pp. 15-17. Tradução livre.

[4] Miller, J.-A., “El concepto de Escuela”, El nacimiento del Campo Freudiano, Buenos Aires, Paidós, 2023, p. 226. Tradução livre.

[5] Miller, J.-A., “El triunfo de Jacques Lacan”, Introducción a la Clínica Lacaniana, Barcelona, ELP, 2007, p. 241. Tradução livre.

VARIAÇÕES

Raúl Villegas Román*

Breve relato de algumas mudanças

* Ator mexicano, graduado em Literatura Dramática e Teatro pela UNAM. Trabalhou como ator durante quinze anos ininterruptos em diversas produções. Alguns dos seus trabalhos mais destacados são: Lo que queda de nosotros, Macbeth, La ceguera no es un trampolín, Medea, Del conejo a la tierra, Der Wilde. Na televisão participou em diferentes projetos: Crónica de castas, La querida del centauro 2, Rosario Tijeras 2, Narcos México, Todo va a estar bien, VGLY dirigido por Sebastián Sariñana. Realizou vários curtas e longas-metragens entre os quais se destacam: Victoria, Índigo, Plan sexenal, Bayoneta, En el silencio encontré mi voz, Una película de policías, 50 o dos ballenas se encuentran en la playa, Mexzombies.

Participou em vários festivais nacionais e internacionais em Barcelona, Xalapa Veracruz, Belgrado Sérvia, México, Nuevo León, Querétaro, Brasil, León Guanajuato, Guadalajara Jalisco, Aguascalientes, Tenerife Espanha. Em 2021 fez parte do programa regular da Schauspiel Köln na Alemanha.

Em 2017 foi indicado pela Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM para receber o prêmio de Criação Artística enquanto era professor dessa instituição, lecionando as disciplinas de Atuação 1 e 2 na Faculdade de Literatura Dramática e Teatro.

Reviso este texto à noite. Quase pronto para dormir. Luto contra o sono porque, de uns tempos pra cá, adormeço mais facilmente e de maneira mais contundente no final das atividades do dia. Estou pensando na proposta de escrever este texto há vários dias, dando voltas sobre o que significou para mim o processo de análise, mas não tanto que me tenha levado à insônia.

Sem dúvida, ter me analisado despertou várias diferenças na minha forma de transitar na vida, mas, com o passar dos dias, a constante nos meus pensamentos é a recusa em acreditar que essas diferenças são descobertas independentes que correm paralelamente sem se cruzarem e entrelaçarem umas com as outras.

Enquanto escrevo estas letras, identifiquei, com satisfação, que a mudança do ângulo a partir do qual observo a minha existência, ao analisar-me, se baseia numa ideia: a da liberdade que advém do fato de poder desenhar e construir o meu entorno. E isso me dá paz. E me deixa dormir.

O reconhecimento de mim mesmo, como sujeito dotado de um arsenal de ferramentas para essa construção, permitiu-me deixar de as perceber como um método de camuflagem. Começo a entender que, enquanto transito pela vida, não carrego uma mala cheia de máscaras para enganar o mundo sobre quem sou e me safar de alguma situação adversa. Muito pelo contrário. Inerente ao próprio trânsito está a construção e o desenvolvimento de instrumentos que fui colocando no ombro e que aprendi a usar para habitar a realidade e encontrar o meu lugar no mundo. Digo a realidade como quem diz este espaço que se constrói independentemente de mim e digo um lugar no mundo como quem coloca o seu peso sobre seus dois pés, planta-os no chão e toma posse da possibilidade de se manter firme e flexível ao mesmo tempo perante os elementos que fluem à sua volta.

O núcleo das mudanças que resultaram do processo de análise é, então, a liberdade. A liberdade que resultou do fato de poder exercer os meus desejos sabendo que terão consequências e assumindo a responsabilidade por elas. A liberdade resultante de mergulhar nos processos criativos desencadeados pela realização dos meus desejos sem os submeter a julgamentos que regularmente resultavam no desenvolvimento de medos e autocensura. A liberdade necessária para deter, a partir da compreensão e da valorização das minhas necessidades, a tendência para me modificar a serviço do exterior – sendo o exterior, a alteridade -; e então estabelecer a expressão e a enunciação do meu desejo. Demando, distanciando-me do tatear, da hesitação exacerbada sobre as reações do exterior. Demando – como é bom escrever esta palavra sem culpa! A liberdade gerada pela capacidade de discernir que parte do meu entorno cabe a mim construir, projetar e modificar, e deixar que a parte que cabe ao exterior não me mortifique. Aprendi a valorizar o que não me diz respeito e a gerar prazer a partir do que não está nas minhas mãos. Aprendi a valorizar o fato de cada vez menos coisas me tirem o sono. E agora, sem mais demoras, término estas letras e vou para a cama.

Julho 2023

Tradução: Ruskaya Maia.
Revisão: Ruth Jeunon.

Fotos da capa e interior Paula Husni. Imagem René Magritte.