Luis Felipe Noé, En terapia 7. 1971.

RUBRICA 1

TRANSFERÊNCIA

Florencia Dassen – EOL

Na comunidade analítica, há muito tempo estamos abrindo espaço para o que Miller chamou de necessidade urgente de atualizar o que mudou na psicanálise, de fazer um esforço para permanecer o mais próximo possível da experiência para poder dizê-la[1]. O próprio Lacan não deixou de abrir espaço para esse movimento em seu último ensino, ele substituiu o inconsciente por outra palavra, o parlêtre. Já para a transferência não temos outra palavra. O que é a transferência? Lacan dá uma resposta:

[…] a transferência não é um meio, é um resultado. Um resultado que reside no fato de que a palavra, por meio dela, revela algo que não tem nada a ver com ela, e muito precisamente o saber, que existe na linguagem. […] [e isso] é um efeito do seguinte: de que há um significante Um.

Mas o saber não é a mesma coisa. O saber é a consequência de que há outro. Com o qual fazem dois, na aparência. […] [S1-S2] é pura forçamento, […]. É o que nos coloca sob o jugo do saber, […] no lugar mesmo da verdade[2].

Quando um sujeito se dirige a um analista e se presta a falar sobre o que o traz, seu sofrimento na vida, seus desencontros no amor, sua dor de existir, produz-se um resultado que inclui uma dimensão de saber inédito, que nada tem a ver com o que seria falar com qualquer outra pessoa. Há dores que são tratadas diretamente pela medicina, por exemplo, e há outras que precisam passar pelo Outro da palavra para serem tratadas. O resultado é a transferência: de saber e de amor, a dimensão do encontro – sempre contingente – com um novo parceiro. O paciente diz suas verdades e o analista responde do lado do libidinal, ele responde em termos de gozo. O inconsciente faz escutar sua razão, a do gozo[3]. Dessa forma, vai se depositando um saber singular que afeta o corpo, um gozo que não pode ser nomeado, só pode se cernir[4]. Quando o paciente é capaz de capturar algo disso, pode-se dizer que algo começou. A fórmula da transferência do sujeito suposto saber deixava velada a função do objeto, e é ele que hoje adquire todo o seu peso na análise do parlêtre. O parceiro analista, objeto a encarnado[5], é sustentado por uma transferência de gozo que, de certa forma, passa despercebida[6]. Para fazer existir, seja o inconsciente, dando lugar para que no dito se faça ouvir um mais além, seja o tratamento das irrupções do gozo e das loucuras, seguindo o analisante em seu saber e tornando a efração de gozo menos dolorosa, seja o tratamento das adições, seja a impaciência que realiza uma passagem ao ato, ou que impõe um acting out[7], alongando o circuito do Outro, dilatando a hiânica da tyché iterativa e silenciosa[8], em todos os casos é necessário um analista-objeto versátil[9], e que saiba manobrar com o real da transferência, enfrentar as questões do amor. Na era do parlêtre, analisamos qualquer um, não há indicações sobre quem devemos, ou não, analisar, isso dá valor ao sentido que implica dizer que a clínica psicanalítica é sob transferência. Somente ali, na partida que ambos podem jogar, pondo de si no esforço necessário, o analisante poderá abrir espaço para que aquela letra-carta, a sua, que ele não poderia ler sozinho, chegue ao seu destino no final.

Tradução: Ruskaya Maia.
Revisão: Paola Salinas.


[1] Miller, J.-A, (2016) “O inconsciente e o corpo falante”, O inconsciente e o corpo falante, Rio de Janeiro, Zahar, 2015, pp. 118 e 127.

[2] Lacan, J., (1973-1974) “O seminário, livro 21. Os não tolos erram”, aula de 11 de dezembro de 1973 (inédito). Tradução livre.

[3] Laurent, E., El nombre y la causa, Instituto de Investigaciones Psicológicas (IIPsi), Universidad Nacional de Córdoba, CONICET, Córdoba, 2020, p. 57. Tradução libre.

[4] Ibid., p. 31.

[5] Lacan, J., (1973) “Televisão”, Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 518.

[6] Miller., J.-A., (1993-1994) Donc, Buenos Aires, Paidós, 2011, p. 475.

[7] Zaloszyc, A., “Fixation de la demande, métonymie du désir”, Orientation, 52e Journées de l’École de la Cause Freudienne “ Je suis ce que je dis ”. Recuperado en: https://www.causefreudienne.org/archives-jecf/fixation-de-la-demande-metonymie-du-desir/,

[8] Laurent, E., “El Uno solo”, Freudiana, n.º 83, Revista de Psicoanálisis de la ELP, Catalunya, Barcelona, 2018, p. 78.

[9] Miller, J.-A., “As contra-indicações ao tratamento psicanalítico”, Opção Lacaniana, n.º 25, São Paulo, 1999, p. 54.

Luis Felipe Noé, En terapia 19. La muerte de Jorge de la Vega. 1971.

RUBRICA 2

TEMPO / TEMPORALIDADE

Cortar

Marcus André Vieira – EBP

O movimento é simples. Levantar-se da cadeira e eventualmente andar até a porta. Em uma sessão de análise, porém, esse deslocamento corporal pode ter valor estrutural. A cultura psi o nomeia “corte lacaniano”, nós, apenas corte. Para que o fim da sessão possa ser um corte devem ser levados em consideração os elementos constituintes do dispositivo analítico – ao menos três.

Como o lugar de onde se fala é o divã, levantar-se e abrir a porta não terá valor se o movimento vem de quem está deitado. De fato, quando se é o agente do que se enuncia (como nesse caso), partir para a ação dificilmente interrompe o discurso. A fala apenas prossegue por outros meios –o que é ainda mais verdade no dispositivo analítico, em que a fala não se reduz à verbalização–. Levantar-se, reclamar da decoração ou de desatenção, tudo será lido em relação ao que estava sendo dito. O corte se define pela interrupção do discurso analisante e, portanto, se dá por um elemento heterogêneo a ele. Por isso, vem do corpo que está na poltrona. É ele que se intromete.

E não basta apenas o deslocamento deste corpo, ele precisa estar na função analista. É preciso que ele encarne o fora do discurso que o discurso agencia e que chamamos gozo. Mais uma vez, porém, isso não basta. O gozo, sozinho, não é corte. Vivido no imaginário é sentimento, emoção; no real, é inefável. De um modo ou de outro, seguimos imersos no adormecedor discurso analisante. É preciso o simbólico.

É necessariamente um fragmento de simbólico (S1) que vem como se do real fosse por não ser reconhecido pelo discurso do mestre, organizador da história analisante (S1-S2). É fala, mas fora do encadeamento. O corpo do analista é tomado por este desencadeado do inconsciente, dando presença ao gozo de modo operativo ao dar vida a um S1. Atenção! Estamos apenas dramatizando uma estrutura. Claro que ele pode não se levantar para cortar. Se diz, porém, algo como “vamos parar por aqui”, um apelo ao pacto, ou “vou parar você por aqui”, uma imposição, seu gesto perde muito em efeito performativo e se afasta do ato.

O essencial é sua urgência em não deixar passar os elementos de discurso fora do encadeamento. É a pressa do apólogo lacaniano na dança dos três prisioneiros, assim sintetizada: “se eu não me apressar em sustentar um desses S1s para interromper, jamais haverá o analista”. Outros S1s poderiam seguir-se a este? Talvez melhores? Nunca saberemos.

Essa é a estrutura de temporalidade da surpresa. Ela é processo e produto, tanto precisa ser construída quanto lançada na pressa, tanto precisa de um meio, o corpo do analista, quanto de uma matéria, o S1, e, finalmente, precisa de um Outro, o do analisante.

Tudo se realiza no que acontece do lado do analisante. É preciso um assentimento e este se dá pela transferência como playground, nos termos de Freud. É preciso que se possa receber a interpretação nas tripas, mas para isso –importante em nosso meio– não se pode estar ali como matável[1]. Apesar da mitologia hegeliana do mestre e do escravo, ninguém ali é servo, a não ser de um sexual para além do “tudo ou nada” fálico.

Não é preciso, para que uma análise se inicie, que ao menos uma vez tenha sido assim o encontro analítico?


[1] A noção de vidas matáveis faz parte do contexto da necropolítca, desenvolvida pelo filósofo camaronês Achille Mbembe e materializada de forma cruel e cotidiana nas periferias e favelas brasileiras, sobretudo contra a população negra.

RUBRICA 3

PERSPECTIVA DO SINTOMA

Luis Felipe Noé, En terapia 36. 1971.

No começo, o atonal?

Gladys Martínez – NELcf

Grande parte da história da música foi escrita no regime tonal. Inesquecíveis melodias se teceram pela via do império de uma dominante que, depois de múltiplos rodeios, dava a chave de uma nota fundamental, em modo maior ou menor. É na segunda metade do século XX que esse regime se pulveriza com o dodecafonismo de Schönberg que introduziu a música atonal. Sem nota chave, nem dominante, a melodia não existe. Nesse sentido cada nota é um S1 sozinho, que não permite antecipar a nota que viria a seguir nem nenhum tipo de resolução harmônica. Proponho essa analogia musical a proposito do sintoma onde equiparo o regime tonal ao da linguagem e, o atonalismo à lalingua, tal como Lacan os diferencia no seu último ensino.

O sujeito do nosso tempo se apresenta cada vez mais inundado de enunciados prêt-àporter produzidos pela figura de um influencer que parece portar a palavra precisa e perfeita como solução ao alcance de todos para viver melhor. Palavras fechadas em si mesmas que enganam, oriundas da posição de um emissor que se diz mestre e dono delas e do seu poder. Mas, as palavras são insondáveis. E para além da vã glória e pretensão do eu portam em seu seio misterioso o mais próprio e desconhecido de cada um, aquilo que ficou escrito no corpo de uma maneira indizível. Um som especial percutiu e se encrustou na carne fazendo do corpo uma “estranha substância”[1]. Frente a esse incomensurável atônito foi necessária uma resposta com o primeiro recurso à mão para “interpretá-lo”. Isso foi o que Freud desvelou ao mundo com a noção de sintoma e sua teia heterogênea: inconsciente (des) cifrado gravitando em torno de um furo e “um substituto da satisfação sexual, de que os pacientes se privam em suas vidas.”[2].

Lacan revaloriza a vertente paradoxal do sintoma indo além de Freud ao afirmar um irremediável sincrônico: não há relação sexual, há gozo. A nova escrita que propõe, de mãos dadas a Joyce, sinthome, faz reverberar aos mais finos achados freudianos, mas, ao mesmo tempo, deixa para trás o sonho de Freud de “edipianizar” o gozo pois “não há pulsão sexual total”. O legado de Lacan com a sua noção de sinthome aponta para uma “uma economia de gozo que, de ponta a ponta, é substitutiva, se original[3].

Orientar-se pela escuta dessa “desarmonia”[4] da lalíngua, tal como propôs J-A. Miller, é a aposta do analista desde as primeiras entrevistas. Poder capturar, na partitura politonal da palavra, a tela dessa nota atonal do sintoma para avaliar se o que convém é produzir uma perplexidade frente a sua ressonância, ou manejar para afinar os tons da sua potência de enodamento original fazendo com que ela passe por um dizer. “Saber nomear o gozo próprio é uma condição prévia ao bem dizer relativo à nomeação do gozo do Outro”[5]; condição e aposta que toca a tecla fundamental de uma incômoda, mas vital formação do analista, sempre a recomeçar.

Tradução: Bruna Guaraná.
Revisão: Paola Salinas.


[1] Miller, J.-A., (2011) “Décima quarta lição”, aula de 6 de maio de 2009, “Perspectivas dos Escritos e Outros escritos”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 186.

[2] Freud, S., (1916-17) “Conferência XIX Resistência e Repressão”, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, p. 351.

[3] Miller, J.-A., op. cit., p. 211.

[4] Ibid.

[5] Caroz, G., (2016) “Diagnosticar – Un esfuerzo de poesía”, Freudiana, n. º 76, Revista de Psicoanálisis de la ELP, Catalunya, Barcelona, versión digital. Tradução livre.

VARIAÇÕES

Luis Felipe “Yuyo” Noé*

Querido Gilberto:

Como sua ausência segue presente em mim, quero te contar que decidi publicar os desenhos que fiz nas sessões de terapia que tive contigo, de modo constante em 1971 e esporadicamente nos dois anos seguintes. Refiro-me a essas anotações gráficas que fazia enquanto conversávamos, com a mesa entre nós.

Quando saía de cada sessão, você os guardava, escrevendo, em muitas ocasiões, a data em que eu os havia feito. Muitos anos depois, nos reencontramos e você os devolveu em um gesto típico de sua grande honestidade.

Nunca me deitei em um divã naquelas sessões. Conversava sobre minha angústia daquele momento, período no qual se entrecruzavam, no que diz respeito à vida político-social, a esperança com o ceticismo, provocando, consequentemente, a dúvida sobre meu lugar como pessoa, já que desde 1967 estava distante do que se chama vulgarmente expressão artística.

Relembrar esse tempo, não é fácil para mim. Os acontecimentos nas diferentes esferas (a arte, a política e o pessoal) ocorriam quase simultaneamente, como se a realidade fosse uma grande sinfonia discordante. Havia deixado de pintar desde 1966, uma vez que minha tentativa de assumir o caos como estrutura de minhas obras (que sentia e continuo sentindo como a marca do mundo que me coube viver), me levara a realizar obras que eram projetadas da parede para o espaço, constituindo pseudo-instalações muito difíceis de guardar, transportar e, naturalmente, vender.

[…].

A pintura deixara de ser para mim uma boa terapia e uma linguagem relevante.

[…] Por isto, sem ter o fazer artístico e em crise militante, assumi minha grande angústia e a necessidade de uma terapia psicológica.

[…] Enquanto eu falava, desenhava. Comecei a fazê-lo de maneira espontânea, por isso que se tornou algo como uma terapia infantil. O fato é que você se deu conta disso e, consequentemente, você já tinha folhas e canetas marcadores preparadas no começo de cada sessão.

[…] Veio o parêntesis de onze anos (1976-1987) quando morei em Paris e, nos anos noventa, por razões pessoais, senti a necessidade de voltar a falar com você. Iniciou-se, então, um período muito livre em relação ao sistema psicanalítico, pois em cada reunião decidíamos quando seria a próxima sessão e eram, antes de tudo, conversas de dois homens sentados em poltronas. Assim, começou uma amizade. Foi você que iniciou o “tuteo”[1] envolvimento (ou o “voceo”, no caso[2]), o que ajudou ainda mais, a nos comunicarmos. Evidentemente, me sentia cada vez mais seu amigo, porém com uma característica, você sabia muito de mim e eu quase nada de você, […]. Neste último período, você não queria me cobrar, mas poucas vezes, eu tive o prazer de dar de presente uma obra, como quando te dei, espontaneamente, meu quadro Panorama Web (1999).

E por que fazer um livro destes rápidos croquis, que para mim, ao realizá-los, não tinham pretensão de obra? Tomei a decisão quando no ano de 2007 fiz, no Museu de Arte Moderna, […] uma exposição panorâmica de desenhos […], com o título Noé em Linha. Ao ver grande parte dos desenhos expostos, me dei conta de que constituíam uma obra em si mesma e que faziam grande eco naqueles que os contemplavam. Você mesmo me disse que estava muito feliz de voltar a vê-los.

O que sei é que, a partir deles, comecei a desenhar intensamente em minha casa. […] O fato é que os desenhos realizados em minhas sessões terapêuticas gravitaram de tal modo que decidi, apesar do esclarecido, intitular este livro de Em terapia.

Em 1975, voltei para a pintura, da qual estava distante desde 1966, realizando em outubro uma exposição na Galeria Carmen Waugh, na qual incluía uma série intitulada A natureza e os mitos. Quais eram esses últimos? Os mitos próprios que haviam aparecido nos desenhos “terapêuticos”.

Por outro lado, como você sabe, um ano antes, eu havia publicado um romance escrito e desenhado com o título Códice Rompecabezas sobre Recontrapoder en Cajón Desastre[3]. Se esse texto é um eco simbólico e fantasioso da terapia em si mesma, os desenhos que retratam os personagens são filhos daqueles da terapia, portanto, os incluo neste livro.

Como você não me deu tempo para contar com um prólogo seu, como disse, porque você me conhecia muito bem, mas eu muitíssimo menos, pedi a Carlos Abboud (também ex paciente seu, que logo ia até você como amigo) que me acompanhe neste projeto com um texto sobre você.

Com meu grande afeto eterno,

Yuyo Noé.

Tradução: Daniela Nunes Araujo.
Revisão: Paola Salinas e Renata Martinez.


[1] Modo informal de tratamento por tu no espanhol, substituindo o usted, mais formal. [N. de T.].

[2] Referência explicita ao espanhol da argentina onde o tu é substituído por vos, mantendo a mesma informalidade. [N. de T.].

[3] Algo aproximadamente como: “códice”, folhas dobradas e costuradas ao longo de uma aresta, precursor do livro); “Quebra-cabeças sobre Superpoder”, capacidade ou poder considerado superior à natureza, alguém que domina as coisas e os mecanismos da criação, sentindo-se um Deus; “numa gaveta de alfaiate” / “Caixa de Pandora”, um lugar/mundo cheio de coisas distintas, contradições.

Há um trocadilho que se perde com a tradução, como a palavra “desastre” aparece junta, a tradução literal de “Cajón Desastre” seria “Caixa Desastre”, mas “Cajón de sastre”, significa caixa de alfaiate, onde encontra-se de tudo, um mundo de contradições. [N. de T.].

Luis Felipe “Yuyo” Noé é um artista plástico, crítico de arte e docente argentino nascido em 1933. Entre 1961 e 1965 fez parte do grupo Nueva Figuración. Realizou até hoje numerosas exposições tanto na Argentina quanto no exterior e publicou mais de vinte livros. Entre eles está En terapia, cujos trechos e desenhos “Yuyu” Noé, de maneira muito generosa, nos autorizou utilizar. Nosso enorme agradecimento. Capa: Luis Felipe Noé, En terapia 21, 1971.

www.luisfelipeno.com / IG: @yuyonoe / FB: @noeyuyonoe