Jésus Santiago – EBP

Deparo-me, com frequência, com situações clínicas que me fazem interrogar sobre a aplicabilidade do sujeito suposto saber aos mais diversos estilos de vida contemporâneos. É Lacan quem propõe que no “começo de uma psicanálise está a transferência” (LACAN, 2003, p. 252). Precisa-se inclusive que se a transferência se constitui como uma “objeção à intersubjetividade” é porque “o sujeito suposto saber é o eixo a partir do qual se articula tudo que acontece na transferência” (LACAN, 2003, p. 252-253). Pergunto-me, por exemplo, se o chamado “presentismo” (HARTOG, 2013, p. 12-13)[1], com suas operações narrativas próprias, não acarreta consequências pouco favoráveis para a instalação do laço transferencial. A ideia do “presentismo” aparece, para o historiador François Hartog, como a repercussão da ascensão vertiginosa de um presente invasivo, maciço e onipresente (HARTOG, 2013, p. 39-40). Isso significa que a experiência do tempo, para as diversas épocas, é múltipla. Portanto, é preciso reconhecer que o chamado fenômeno do “presentismo” impõe à prática do analista novas modalidades de narrativa que, certamente, repercutem sobre a própria concepção de transferência.

O núcleo reversivo do tempo no sujeito suposto saber

Sugiro a hipótese de que há uma questão relativa à incidência da operação narrativa do presentismo sobre o modo com que se estabelece o laço transferencial. Conceitua-se o sujeito suposto saber como a extração de uma configuração particular da cadeia significante que remete às características próprias do chamado sujeito cartesiano (LACAN, 1966, p. 853)[2]. Com efeito, o sujeito cartesiano se define pela relação que mantém com a cadeia significante visto que, para ele, ela toma a forma de uma cadeia dedutiva, cujos elementos se articulam entre si por uma causalidade e uma temporalidade próprias. Se a experiência analítica viabiliza a introdução do inconsciente como um sujeito dotado de uma matriz de combinações significantes calculáveis, ela introduz também uma temporalidade entre esses elementos que é inteiramente singular.

Essa cadeia dedutiva que se exerce em concomitância com o desenrolar da sucessão temporal dos elementos da cadeia significante, Lacan pôde denominá-la de “núcleo de um tempo reversivo” (LACAN, 1966, p. 853). Portanto, o que é crucial para a prática analítica não é a história nem o sentido, mas o tempo heterogêneo e irregular que se produz por meio da apreensão do fator libidinal próprio do objeto a, inerente à operação da transferência. Isto acontece porque o objeto a é o fator que desregula o desenrolar uniforme do tempo (MILLER, 2000, p. 67). Se esse desenrolar uniforme se confunde com a história, o sentido ou a realidade, desregulá-lo é favorecer a emergência do real do tempo capaz de estabelecer no sujeito outra relação com a fala, relação necessária à experiência do inconsciente. Em consonância com esse tempo real, a transferência é definida, por Lacan, como “uma relação essencialmente ligada ao tempo e ao seu manejo” (LACAN, 1966, p. 858).

Se é da natureza do tempo ir em direção ao futuro ou ao passado, o que a transferência introduz como algo inédito é que o modo passado do tempo se atualiza pela presença do analista enquanto semblante do objeto a. A presença do analista se faz necessária para que se efetue a inscrição do presente no modo passado pois, ao encarnar para o analisante o fator perturbador do objeto a, a transferência “torna o tempo inomogêneo, isto é, gera compressões e dilatações do presente” (MILLER, 2004, p. 85). Esclarece-se, assim, que o tempo do analisante (T1) é o tempo que progride, enquanto o tempo do analista (T2) é o tempo que retroage sobre a fala do sujeito. Esse segundo tempo (T2) é o sujeito suposto saber na medida em que se trata do tempo que o analista representa para o analisante. Na transferência, não é o saber que conta, mas o sujeito suposto saber que, por sua vez, requer a presença do analista como o operador capaz, em primeiro lugar, de redirecionar o presente para o passado e, em segundo lugar, de reportar esse passado no presente (MILLER, 2004, p. 77).

A transferência à luz do paradoxo do futuro contingente

Essa temporalidade em que o sujeito trafega pela cadeia significante recebeu o nome de efeito sujeito suposto saber, tendo em vista que é ele que confere significação à relação causal entre os vários elementos passados ou futuros de sua existência. Para tratar dessa temporalidade própria da cadeia significante inconsciente, recorre-se ao “paradoxo do futuro contingente” (Miller, 2000, p. 25), aplicável ao funcionamento do sujeito suposto saber. Como já se referiu antes, se o sujeito se apresenta no tempo Tn, um acontecimento pode ter lugar, com ele, no tempo futuro Tn+1. Na verdade, ele pode ocorrer ou não ocorrer.

então sempre será verdadeiro que ele ocorreu no passado. É aqui que aparece a significação própria do sujeito suposto saber, pois será sempre necessário e verdadeiro que ele tenha acontecido no passado. Em outros termos, para a significação que o sujeito confere ao acontecimento Tn+1, é impossível que o que ocorreu no passado possa não ter acontecido. O essencial desse paradoxo é explicar de que modo a reversão temporal transforma o possível em necessário. Em suma, o que está em questão é o fato de que o acontecimento passado possa ser, retroativamente, significado como necessário (MILLER, 2000, p. 26). Portanto, em Tn, o que ocorrerá no futuro (Tn+1) é simplesmente possível. Assim, se em Tn+1 isso aconteceu, tornou-se efetivo, aparece a significação dessa efetividade. É simplesmente porque se reprojeta essa efetividade no sentido contrário – ou seja, do presente em direção ao passado – que se pode dizer que o acontecimento passado já era necessário. Segundo Miller, “é a instância do tempo que sempre relega o possível rumo ao necessário, é a instância do tempo que faz advir a necessidade lógica do ‘estava escrito’” (MILLER, 2004, p. 77). Em última instância, se o acontecimento é sempre contingente – marcado por uma abertura dos possíveis –, o sujeito suposto saber, por sua vez, é sempre a introdução de uma significação que capta a causalidade do acontecimento passado como necessária.

É o caso de dizer que o presentismo coloca dificuldades para a instalação do sujeito suposto saber, pois este consiste na estrutura temporal que exige a escritura do passado no presente. Retroativamente, o sujeito suposto saber apreende uma relação necessária entre um acontecimento passado e o presente. Trata-se de uma relação causal que supõe um sujeito que se capta afetado pela materialidade significante que se constituiu no tempo passado. Essa articulação entre a temporalidade retroativa do passado no presente e a cadeia significante concerne, a meu ver, à conceituação mais refinada do sujeito suposto saber.

Só há diferentes maneiras de falhar

Ao longo do Seminário Mais ainda, Lacan chega a dizer que a experiência do sujeito com a palavra, sobretudo no que concerne ao seu significado, tende a tornar-se rotina. Não há razão para qualquer veleidade quanto à preponderância das leis da linguagem e da palavra e prevalece, com efeito, a perda da força poética e interpretativa do simbólico. O simbólico se mostra transfigurado pela afetação da disjunção radical entre o significante e o significado, o que torna necessário passar pela “boa rotina” do laço social para que o vazio do significado possa ser preenchido com algum sentido (LACAN, 1982, p. 58). É possível constatar, no cotidiano da prática analítica, situações em que a experiência do sujeito com a fala padece do relativismo que denota a sua natureza de artefato, muitas vezes esvaziada de sentido e impotente para lidar com o impossível de suportar do sintoma. É possível afirmar que a função da palavra, tal como acontece no caso do presentismo, é um indício de que o avanço do trabalho analítico não ocorrerá se o analista permanecer à espera da emergência do laço transferencial confundido com o sujeito suposto saber.

Creio que o funcionamento da tríade clássica sintoma-demanda-transferência, própria da clínica do retorno do recalcado, está posto em questão em muitos casos de jovens que procuram o tratamento analítico. As novas configurações da transferência não se assentam do lado do sujeito dividido; ao contrário, elas parecem se colocar em relação à proliferação da função de S1, em uma época em que o sintoma do tipo anoréxico ou toxicomaníaco – sintomas ditos corporais, muitas vezes confundidos com as chamadas psicoses ordinárias – não constituí, no sentido usual do termo, formações do inconsciente. Vale dizer que esses sintomas não se apresentam por meio do regime significante ordenado pelo Nome-do-Pai, mas, sim, pelas práticas pulsionais que se evidenciam como técnicas vitais de gozo, que contrastam com o sujeito do inconsciente. Se o sintoma aparece mais do lado de S1, ele dificilmente poderá se articular à demanda, pois esta tem seu fundamento na privação de ser do sujeito, ou seja, na sua divisão.

Do mesmo modo que nossa época experimenta os limites da interpretação semântica, a condução da transferência gera também questionamentos quanto ao seu manejo. A estratégia transferencial deixa de estar inteiramente referida à articulação entre o sintoma e a demanda e, portanto, não pode se restringir à demanda de significação dirigida ao saber inconsciente. É nesse sentido que, no caso dos novos sintomas, ela se configura como articulada ao traço identificatório ou ao objeto de gozo preferencial do sujeito. Ao personificar os novos modos e estilos de vida, os jovens estão em boas condições para exprimir, em seus sintomas e inquietações, o desencanto com o mundo em que prevalece a degradação dos significantes-mestres capazes de velar a verdade da não-relação sexual. Não basta diagnosticar a inexistência do Outro, é preciso admitir que a entrada triunfante do objeto a na cena do mundo trouxe consigo a contaminação, cada vez mais extensiva, do real da não-relação entre os sexos. Para Miller (2005, p. 14), a invenção própria da prática lacaniana que se mostra orientada pelo último ensino de Lacan deve tomar como ponto de partida fundamental o princípio de que “só há diferentes maneiras de falhar”.

A presença do ato analítico na contemporaneidade exige uma mudança de paradigma clínico, sobretudo no âmbito da transferência, na medida em que seu exercício passa a ser correlativo da dimensão do real que falha incessantemente. Com isso, quero dizer que a prática lacaniana deve instruir-se no terreno em que o impossível e as falhas no real se estendem de um modo que intensificam a descrença no saber sobre o caráter decifrável do sintoma, notadamente quando a decifração remete às mensagens do inconsciente.

Uma das questões com a qual o psicanalista se defronta no manejo da transferência concerne ao lugar para o sujeito suposto saber, em um mundo que, diante da presença desenfreada do “isso falha”, força o sujeito a responder com as ficções-grampos que se fabricam à revelia do saber decifrável do inconsciente. Se cada vez mais os sintomas se tornam um affaire de significante mestre (S1), é exigido do psicanalista um suposto saber ler de outra forma (LACAN, 1978), uma vez que é preciso saber ler a materialidade deste, isto é, em que o significante mestre se consubstancia na letra que produz o acontecimento de corpo. Diante da prevalência do sintoma cuja economia de gozo é o acontecimento de corpo, o núcleo da transferência desloca-se da suposição do saber decifrável para a suposição de saber ler de outra forma o sintoma.

Referências:

  • HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1969 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho originalmente publicado em 1967).
  • LACAN, J. Posição do Inconsciente. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. (Trabalho originalmente publicado em 1964).
  • LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais ainda, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (Trabalho originalmente publicado em 1973.
  • LACAN, J. Le Séminaire, livre XXV, Le moment de conclure, leçon du 10 janvier 1978, inédit.
  • LIPOVETSKY, G; CHARLES, S. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004.
  • MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2000. (Trabalho originalmente publicado em 2000).
  • MILLER, J.-A. L’introduction à l’érotique du temps. La cause freudienne, Nouvelle Revue de Psychacanalyse, n. 56, p. 63-85, mars. 2004.
  • MILLER, J.-A. Un esferzo de poesía. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2016. (Trabalho originalmente publicado em 2002-03).
  • MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, p. 7-18, fev. 2005. (Trabalho originalmente publicado em ???).
  • SANTIAGO, J. Transferência e acontecimento de corpo: suposto-saber-ler de outra forma. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, n. 47, p. 47-60, jan/jun, 2019.

[1]Como esclarece o François Hartog, o emprego do neologismo “presentismo” não remete a nenhuma realidade dada e tampouco observável. Não se presta, portanto, às grandes caracterizações das épocas civilizatórias, muitas vezes assimiladas como entidades incertas e vagas. Trata-se, segundo ele, de um artefato conceitual que valida o seu alcance interpretativo ao ser capaz de captar as grandes escansões na experiência com o tempo em diferentes regimes da vida social, os quais se apropriam, de modo distinto, do passado, do presente e do futuro.

[2]“O sujeito qualificado como cartesiano constitui-se como o pressuposto do inconsciente, como Lacan pôde demonstrar ao longo do Livro 11 do Seminário, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.