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A EXTRAÇÃO DO OBJETO a*

Éric Laurent

Através (Cildo Meireles, Inhotim, 1983-1989) – Galeria Cildo Meireles.
Materiais diversos, 600x1500x1500 cm.
Foto: Pedro Motta

 

O que é, para nós, a extração do objeto a? É uma pergunta que me faço depois de ler os textos preparatórios do próximo Congresso da AMP, em Buenos Aires, em abril de 2008.

Alguns desses textos começam sua investigação a partir do Seminário 2, quando Lacan fala do luto e diz que “estamos em luto por alguém quando podemos dizer: “eu era sua falta” – “J’étais son manque”. Dessa maneira, neste momento de seu ensino – um momento pré-topológico – Lacan nos faz ler o avesso do que habitualmente estava dentro. No Seminário 5, Lacan nos propõe outra leitura do que era banal, dessa sombra do objeto que cai sobre o Eu, dessa realização de algo no Eu. Faz valer a dimensão de extração, de automutilação, que é a via pela qual o sujeito extrai esse objeto que recai sobre o Eu. No Seminário 10, a banda de Moebius destaca o enodamento entre interior e exterior de uma maneira nova: o objeto aparece de maneira radical não somente como extração do interior do corpo, mas também como produção desse corpo e essa produção pode não ser natural, como uma obra, como um ato que se separa do corpo.

Então, paradoxos do interior e do exterior se concentram porque, na castração, a partir do ponto de vista de a, do objeto da privação, a caducidade do órgão, sua desaparição, é ao mesmo tempo seu gozo. Em seu estatuto fálico, o objeto não é nem interior nem exterior, mas sim o próprio corte, o ponto preciso no qual a banda de Moebius se cruza.

Lacan vai explorar o objeto como forma e, em outras ocasiões, o objeto como substância. Entretanto, qualquer que seja esse objeto a, fica claro que é ele que causa a angústia, o afeto como tal, correlativo ao produto do ser falante.

A extração do objeto a marca todos os seus aspectos pela heterogeneidade de uma apresentação substancial do corpo: o que está dentro de mim está, ao mesmo tempo, fora e assegura, assim, o laço com o Outro pela extimidade do gozo. Essa extração, essa forma, esse saber sobre o gozo que se extrai de mim, como qualificá-lo? As categorias do verdadeiro, do falso, da vida e da morte, as bússolas polares, já não funcionam. Temos que abordar os produtos do corpo, da obra ou do ato com outras categorias.

Uma visita guiada a uma exposição de coisas que se repetem

 Tive a oportunidade de visitar um lugar estranho, uma das figurações do jardim do Éden. É um dos paraísos perdidos, uma entre outras das realizações de um fantasma do mestre. Claro que nesse jardim há natureza, uma natureza que inclui obras de arte. Como todos os jardins do Éden, tem serpentes e obras que têm a forma de serpente, confeccionadas por um artista integrante de um movimento chamado “a vanguarda viperina”. Nesse jardim, a oposição não se encontra entre a natureza e a cultura. A natureza se torna arte e a cultura é selvagem, mortal, e não cessa de falar da articulação da morte, da vida, da mutilação, da automutilação, da extração do corpo em todas as suas formas, as mais refinadas e brutais ao mesmo tempo.

A oposição não é natureza-cultura, é antes paraíso-inferno. O paraíso é exterior, mas também interior a essas caixas que se chamam galerias. Esses boxes que acolhem as obras de arte são círculos do inferno e muitas delas mostradas como tal. Certamente, o ready- made reina. Estamos em uma época da arte pós-Duchamp. Mas é um ready-made já transformado, um ready-made autodestrutivo, um ready-made que não somente implica o “isto é uma obra de arte”, senão que é uma obra de arte que se pode autodestruir. Inclui essa vida estranha que comporta a morte. A natureza torna-se também ready made.

Diz-se que nesse lugar existe o mais variado número de espécies de palmeiras que se pode encontrar em um jardim do Éden. Mas a própria palmeira se torna objeto. Há palmeiras garrafas que têm imediatamente a forma de um objeto artificial. Existe uma planta que tem a forma exata de um corpo. Existem muitas assim. Uma delas, o corpo, seu nome botânico é Nolina. Diz-se de maneira familiar em português “Pata de Elefante”; em inglês se chama, também de maneira familiar, pony tail. Diferentes aspectos do corpo aparecem, assim, na natureza. Dentro e à margem do jardim, há uma zona de preservação ambiental, quer dizer, existe a vida da selva que está preparada para devorar, preparada para invadir e até para morrer em sua preservação ambiental. Pelo artifício envolvido nessa vida e nesse espaço tão estranho, o que se expõe é uma coleção, uma coleção particular.

Não é um Museu com uma multiplicidade de curadores que tende a construir um todo. Não. É uma coleção com um leitmotif de coisas que se repetem, obras que fazem eco uma com a outra em sua particularidade e, também, com o fato de que uma coleção é sempre algo ao qual falta uma obra. Um colecionador é sempre dependente dessa experiência crucial, falta-lhe a próxima peça de sua coleção e isso é a única coisa que o preocupa. Gérard Wajcman dizia que a coleção poderia ser a arte da época, a cultura do objeto que falta na civilização do mercado universal.

Nesse lugar, há o que se poderia chamar uma escola de arte, a escola de “Inhotim”, que é o nome do lugar e que adquire sua consistência por essas repetições.

Numa instalação, vê-se o chão coberto de sal, um instrumento de dissecação, o mais eficaz que se pode encontrar. Ao mesmo tempo, instrumento de conservação e instrumento de destruição. Vida e morte se reenviam uma à outra para além de se estabilizarem numa oposição tranquila. Esse lugar está nas montanhas, longe do mar, o chão é sal do mar. A essa massa de sal, responde o que o artista chamou “um depósito caótico”, no qual, em um pequeno cômodo, vê-se a única janela desse grande bunker onde estávamos fechados. A própria janela fazia-se de exterior, como uma espécie de televisor, um televisor estranho com imagens que passavam, mas cobertas por um tipo de tela, de tela suja que nos lembra o véu de Maya.

Um plástico um pouco sujo faz a função exata desse véu. Perguntamos a respeito das imagens. O artista havia deixado nesse cômodo, em seu “depósito caótico”, um texto teórico, uma carta que enviou ao encarregado da exposição, na qual precisava: “I don’t see a TV, but the piece of cloth covering something that reflects light and… soundless distorced, bnw images” (“não vejo uma televisão, mas sim um véu que cobre qualquer coisa, que reflete a luz e… projeta imagens bnw distorcidas sem som”). Em nosso retorno, Graciela Brodsky e eu nos perguntamos o que significava a sigla “bnw”. Por que dizer isso? Chegamos à conclusão que era black and white, imagens em branco e preto. Dentro da instalação e a partir dessa distorção, tivemos a impressão de encontrarmo-nos como prisioneiros da caverna de Platão, vendo unicamente essas imagens distorcidas em branco e preto, as únicas formas de vida que existiam dentro desse espaço infernal mais além de toda vida.

Outro artista brincava com as mesas. Com o tamanho desses instrumentos úteis para a vida, com mesas que iam desde as menores a outras imensas. Porém, a natureza ao redor também brincava. Num canto, estava o menor bambu que se pode encontrar no mundo, uma coisinha pequenina assim, japonesa, e também estava o maior bambu que se pode encontrar e que domina tudo com seu tamanho. Impressionante! A natureza também joga com escalas de representação. Tem, nela mesma, seus “novos costumes”, tal como um artista construiu em sua instalação. Em português, a expressão “novos costumes” brinca, ao mesmo tempo, com vestidos e modos de se vestir, precisamente, maneiras de habitar esses “costumes”. Imediatamente, uma colega vestida com esse “novo costume” poderia dizer: “eu, a verdade, falo”.

Inmensa (Cildo Meireles, Inhotim, 1982-2002) – Obra externa.
Aço corten, 400x810x445 cm.
Foto: Tibério França

Finalmente, o percurso termina numa sala estranha chamada “true rouge” (escrito t-r-u-e rouge) que exibe recipientes de vidro em estranho equilíbrio, suspensos em estabilidade, como corpos com dificuldade para se manter juntos, e também com coisas vermelhas e instrumentos para limpar esses recipientes. Essa construção sutil foi feita a partir de um poema que apresenta, com rara brutalidade, o sexo feminino como furo de onde cai o sangue, contendo tampões e esponjas. Cada uma dessas coleções e instrumentos tem a forma do recipiente e de seu tampão, dando a impressão de copulação a esses instrumentos, também pela metáfora. Com essa mescla, o refinamento e a brutalidade sem mediação dão a essa sala e a essa obra um encanto especial. E, finalmente, a significação fálica permite dar a ilusão de uma certa harmonia porque os pássaros que passam por esse jardim são pássaros que acompanham a vida fálica do lugar, prometendo certa harmonia.

Uma experiência impossível do corpo

O que domina nessas instalações é antes o solo, um solo de matérias quebradas. Um artista dialoga com o chão de sal, construindo uma instalação com vidro quebrado, numa obra intitulada “Através” que reúne todos os objetos ready-made que constituem barreiras, mas que não impedem a passagem. No centro, há uma grande bola de plástico que poderia ser transparente como o plástico, mas que, mesmo sendo uma acumulação, tem a mais completa opacidade.

É, finalmente, com isso que nos transporta e nos deixa esse jardim do Éden. A impossível transparência da representação de um corpo para si mesmo. E estamos precisamente animados a interrogarmo-nos sobre o lugar do ideal de toda transparência possível, sobre a efetiva opacidade do corpo para si mesmo.

Lembro dos conselhos que nos dava a pessoa que nos guiava no parque encantado: não se tratava de entender, mas de uma experiência de corpo. Tínhamos de habitar os espaços que nos propunha. E ela estava muito atenta à maneira que tínhamos de entrar em uma sala, quer fosse com pressa, quer fosse para determo-nos ou esperar um pouco, como se a experiência do corpo pudesse dar uma significação imediata ao que se via.

Todo o funcionamento desse jardim do Éden era para nos remeter à opacidade absoluta da experiência do corpo, a esse pecado original que não tem nada de condenação, mas sim de impossibilidade.

E assim, o que nos restava era precisamente não nos apoiarmos nessas experiências do corpo, senão sermos reduzidos a essas extrações de nosso corpo a partir das experiências que podíamos atravessar ali. Vacilava, pois, o falso e o verdadeiro. Na arte, mas também no saber que se obtém da ciência, encontra-se um mais além do interior, do exterior, do verdadeiro, do falso, da vida e da morte.

De modo que, se tomamos um objeto científico como o medicamento, vemos que não é nada mais que a extração de uma parte do próprio corpo. O medicamento é a reincorporação de um interior passado ao exterior. O medicamento pode simular o funcionamento do vivo e, como tal, o corpo o recupera como a ficção extraída de si mesmo. Isto se observa no medicamento, mas ainda mais no anestésico, a substância que permite burlar a vida.

A vida já não se reconhece mais, pode-se produzir uma morte em vida graças ao funcionamento do anestésico. E esse simular a natureza que a ciência promove, o vemos ainda mais, ou de outra maneira, na Física. É útil ler as experiências de física como dispositivos para simular a natureza e zombar dela. É preciso distinguir o modelo e a simulação. A simulação da natureza através de uma experiência física é uma maneira de imaginar o real, no sentido que Lacan dava a estes termos. Explorar a natureza é zombar dela, não é desvelá-la, e não é mais que um falso desdobramento. É como em Second life ou em Alpha world onde podemos ter outra vida no virtual.

Um epistemólogo comentava, recentemente, os resultados obtidos por um ganhador do Prêmio Nobel de Física, o Sr. Chu. Ele concebeu a ideia de obter a coisa mais próxima do puro vazio, mais próxima da temperatura do puro zero e no vazio mais amplo possível. Na realização dessas experiências, produz-se um efeito estranho na matéria que se chama “condensação de Bose” na qual simula-se um estado que, inclusive para a natureza, é difícil de alcançar, ainda que seja calculável. Na zona do zero, a da extração absoluta de toda matéria, no sentido imaginário do termo, existe uma vida quântica extraordinária, plena de atividade a ser explicada e que causa o desejo dos físicos. Uma vez que não existe mais matéria, o que existe? Existem muitas coisas… Então, esse vazio, essa extração faz falar, como a visita a esses modos de extração no jardim do Éden também o fizeram.

 

Um horizonte de extração para a psicanálise

A psicanálise e o tratamento analítico também têm esse horizonte de extração. Extração de todas as repetições significantes possíveis até poder alcançar o efeito imprevisto, o acontecimento imprevisto. Bem, não é a “condensação de Bose” o que se trata de obter, mas sim uma nova apresentação do que se apresentava como impossível de extrair do todo. Jacques-Alain Miller comentou esse novo estado do objeto ao nomear um capítulo no Seminário de Lacan, “O luto do analista”.

 

O que é “o luto do analista”?

 É que não há um objeto que valha mais que outro. É essa a extração fundamental. O que quer dizer luto do amor, luto do objeto único e um acordo com a lei da pulsão. Cito Jacques-Alain Miller em A angústia lacaniana: “Isso indica alguma coisa concernindo à direção do tratamento. Ou seja: o analista só opera sob a condição de corresponder ele próprio à estrutura do estranho. É preciso que ele passe o sentimento de estranheza. Na falta disso tudo demonstraria que, caso ele próprio não se acostume com o estranho, ele não poderá desorganizar a defesa”.

Podemos retomar a pragmática do tratamento, seu funcionamento efetivo, a transferência, a interpretação, o final do tratamento, a partir dessa extração, do que daria forma a essa substância estranha que não pode se exibir dentro do Outro. E de como se maneja a transferência não somente a partir do ponto de imobilidade, que é uma face do objeto a, um ponto neutro, como dizia Lacan em sua “Intervenção sobre a transferência” nos anos 50. Esse ponto em torno do qual gira todo o percurso é um ponto de imobilidade, de estranheza em sua imobilidade. Teríamos que ter testemunhos não só da imobilidade do analista, mas também de como ele consegue emitir esse sinal, essa sensação de estranheza na transferência e também na interpretação.

Com o manejo do “sem sentido” desde cedo, não o “sem sentido” como uma arte gratuita, mas visando obter o efeito de estranheza. E, no final do tratamento, é preciso que o analisante não tenha pressa por reintegrar esse objeto à sua história, que possa respeitar a separação entre o enigma que se produziu e sua estranheza como tal, distinta de toda dimensão de sua história, irredutível a ela mesma, extraída dela, mas irrecuperável dentro das formas de sua história. Ele mesmo, o analisante, tem aí que se preparar para ocupar o vazio, como a presença do analista tratou de manifestar ao longo da análise.

Finalmente, a caverna de Platão que visitamos nos leva a Aristóteles e à alma como forma do corpo. A alma como sensação, a alma como grande experiência do corpo e nada mais.

Seria útil poder rearranjar nossas maneiras de falar da transferência, da interpretação e do final de análise para nos aproximarmos dessa modulação dos objetos a. Sérgio [Laia] viu em Joyce, como ele mesmo reconhecia nas palavras sua forma, a forma substancial que também se encontra na nova escritura que pode aparecer no final de um tratamento.

Evidentemente, são todos temas de investigação. Veremos se o Congresso do mês de abril de 2008, a Conversação prevista sobre a pragmática do tratamento a partir do objeto, poderá enfrentar essas questões para fazer um esforço de incorporação da perspectiva do objeto a nos modos pelos quais descrevemos o tratamento analítico.


*Conferência proferida em Belo Horizonte, por ocasião do Terceiro Encontro Americano do Campo Freudiano, em 4 de agosto de 2007: Colofón, Boletín de la Federación Internacional de Bibliotecas do Campo Freudiano n.28, abril 2008. Publicada com a amável autorização do autor.

Tradução: Ruskaya Maia
Revisão: Paola Salinas e Renata Martinez