O INCONSCIENTE FORA DO TEMPO
SALA: O ETERNO DO INFANTIL
O INCONSCIENTE FORA DO TEMPO
“Encontramo-nos aqui no coração do problema do que Freud avança quando diz que o inconsciente se coloca fora do tempo.
É e não é verdade. Ele se coloca fora do tempo exatamente como o conceito, porque é o tempo de si mesmo,
o tempo puro da coisa, e pode como tal reproduzir a coisa numa certa modulação, de que qualquer coisa pode ser o suporte material (…).
Essa observação nos levará muito longe, até os problemas de tempo que a prática analítica comporta”.
(Lacan, J. O seminário, livro 1, os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 276.)
Relatores: Marcela Molinari (EOL) e Carolina Puchet (NEL)
Participantes: Alessia Fontenelle (Salvador), Bruna Guaraná (Rio de Janeiro), Christian Temprano (Buenos Aires), Diana Wolkowicz (Rosário), Federico Salvarezza (Paraná), Hilema Suárez (Caracas), José Miguel Ríos (Lima), Karynna Nóbrega (Campina Grande), Maria Luiza Rovaris Cidade (Florianópolis), Natalia Andreini (Córdoba), Paola Grajales (Bogotá), Withney Ferrufino (Tarija).
Fomos convidados pelo Comitê Científico do ENAPOL para participar desse grupo de trabalho com os colegas das três escolas da América. A partir disso, foi-nos proposto como provocação para a discussão o parágrafo do Seminário 1 de Lacan (citado acima), a fim de que pudéssemos produzir um texto que possa servir para uma das conversas que teremos sobre o tema: O eterno do infantil. A partir dessas coordenadas, propusemo-nos a conversar a cada reunião. Esmiuçando o parágrafo, produzimos 3 eixos para ordenar nosso trabalho:
- O inconsciente e o conceito fora do tempo.
J.-A. Miller (2011) afirma que, ao início do ensino de Lacan, encontramos duas vertentes que orientam o seu desenvolvimento: uma linha estruturalista e uma hegeliana usada como recurso para “compreender” Freud”
Em seus primórdios, Lacan faz uma junção entre estrutura e dialética. Nesse momento, período da primazia do registro do simbólico, o inconsciente se situará em relação à história, entendida como o desdobramento de combinatórias. Vamos levar em conta aqui a noção de conceito que, referindo-se a Hegel, encontramos em Lacan. Sendo assim, será na aula XIV – As flutuações da libido do Seminário 1 que Lacan diz: “A palavra ou o conceito não é outra coisa para o ser humano do que a palavra na sua materialidade. É a coisa mesma.”
Lacan diria que se trata do valor performativo da linguagem, pois apenas pronunciando a palavra elefante já se dá a entidade de existência à coisa e se pode operar com ela, tendo inclusive um impacto sobre ela: “basta que eu fale deles, não há necessidade de que estejam aqui, para que estejam aqui, graças à palavra elefante, e mais reais do que os indivíduos – elefantes contingentes.”
Portanto, o conceito não é uma sombra da coisa, mas o que a torna presente.
Lacan escolhe assumir a função criativa da palavra, na medida em que essa função é o que faz a coisa em si surgir. Realização que coloca a coisa em pé de igualdade com o conceito, na medida em que o conceito é o tempo da coisa. Assim, ele nos lança no território do que ele chama de tempo da coisa. É o tempo que faz com que a coisa esteja lá, ainda que não esteja, através da palavra:
[…] o conceito não é a coisa no que ela é, pela simples razão de que o conceito está sempre onde a coisa não está, ele chega para substituir a coisa […] Hegel diz isso com grande rigor – o conceito é o que faz com que a coisa esteja aí, não estando”
Dessa maneira, podemos localizar a proposta de Freud, o inconsciente fora do tempo, bem como o conceito. Encontramos assim um fundamento no qual o suporte material da coisa pode ser qualquer coisa. Não se trata tanto do seu suporte material, mas da sua modulação em relação ao tempo. Por esse caminho, chegamos e destacamos a formulação de que o tempo tem uma dimensão constitutiva da palavra.
Por acaso, a palavra transporta tempo? Com a leitura desse capítulo, diríamos que sim. No marco do inconsciente estruturado como linguagem, de que tempo se trataria? Buscamos as pistas para encontrar uma resposta: “[…] a palavra cria a ressonância de todos os seus sentidos. Afinal de contas, é ao ato mesmo da palavra enquanto tal que somos reenviados.”
Neste ponto, é interessante notar que, em hebraico, o substantivo coisa (דבר, davár) e o verbo falar, dizer (לדבר, ledabér) têm a mesma raiz de três letras: Dalet (ד), Bet (ב) e Resh (ר).
A raiz triconsonantal é a estrutura fundamental das palavras hebraicas da qual todas as outras palavras são derivadas. É impressionante que essa linguagem já mostre como sabemos sobre a coisa apenas pela fala e dizer.
Encontramos na citação inicial que nos debruçamos[i] uma referência ao Aufhebung hegeliano no aspecto em que algo é verdadeiro e não é ao mesmo tempo. Um movimento que implica a superação do momento anterior.
Notamos naquele é verdadeiro e não é verdadeiro um desafio temporal, ou seja, cuja natureza é o tempo em que a prática analítica nos lança: não podemos falar de um tempo cronológico imutável que implica causa →efeito. A aposta, então, será em outra coisa.
Uma pista nos ocorre no Seminário 1, quando Lacan toma o conceito freudiano de nachträglich – traduzido como après-coup – para se referir à relação retroativa entre antes e depois. Há então um novo tempo que reescreve os vínculos cronológicos entre as coisas. A citação do Seminário 1 corrobora isso: “A história não é o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente porque foi vivido no passado”.
Os eventos presentes afetam os eventos passados a posteriori, com a categoria de passado existindo como memórias que foram interpretadas à luz das experiências presentes.
- O inconsciente atemporal
L. Casenave, em seu livro ¿Qué plantea el niño al psicoanálisis? argumenta que, além do tempo irreversível da física linear organizada em passado, presente e futuro, há outra maneira de pensar sobre o tempo ordenado pelos estoicos com base nas categorias lógicas do contingente, necessário e possível. O presente é um encontro, Tyche, que ocorre aleatoriamente como uma contingência. Uma vez que aconteceu, esse presente se torna passado e não pode se tornar outra coisa, e então é quando passa a ser necessário. O futuro seria Chronos, o que significa o possível.
O encontro infantil, contingente, pode ser eternizado como marcas de gozo no corpo deixadas pelo encontro traumático com a lalíngua. Algo se fixa e comanda o modo de gozar. Há um instante de ressonâncias imprevisíveis em que o corpo se torna palavra e que uma vez inscrita se torna necessária.
Há um tempo verbal que nos permite pensar sobre isso: o Futuro Anterior em francês, o Futuro Composto ou Futuro Perfeito em espanhol e Futuro do Pretérito Composto no português.
O Futuro Perfeito no espanhol é formado com o verbo haver no futuro seguido pelo particípio passado.
A particularidade do Futuro Perfeito que seria o Futuro do Pretérito no português é que ele se refere a ações que já vão estar concluídas em algum momento no futuro. Portanto, estaríamos falando no passado sobre algo que ainda não aconteceu, mas que sabemos ou prevemos que acontecerá. Também é usado com um valor modal de probabilidade.
Em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan aponta que a história não é o passado definido, mas “o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando.”
O que se realiza na minha história não é o Passado Perfeito, não é o que eu fui, nem o que eu teria sido no que eu sou é o Futuro Anterior, do que eu teria sido para o que ainda estou por me tornar. Por isso o tempo verbal terá sido é o tempo de uma psicanálise. Um tempo composto que possibilita um trabalho de separação entre o particípio passado e o futuro com o valor modal de probabilidade.
Propomos ler a realidade do inconsciente com esse modo verbal, pois é a leitura de uma marca que carrega o traço do futuro anterior. Aquela surpresa de se reconhecer em algo que será, em algo que, ao mesmo tempo, se antecipa. Uma surpresa que mostra que nessa leitura surge o sujeito, o mesmo que lê.
Lê, não sem os efeitos de divisão que essa descoberta acarreta. Uma divisão que, se fizermos uso desse tempo verbal, podemos nomear em termos de uma bifurcação entre o que foi e o que é. Terá sido é um fora do tempo que nos convida a deslocar as ideias temporais de destino e eternidade e que nos leva ao não realizado, o que aponta para o impossível.
Em uma análise, há um tempo de falar, o tempo em que se desdobra o que dizemos, descolando os ditos do dizer, e que é um modo de escrever a relação entre um tempo de dizer e um tempo de falar.
No tempo em que o que dizemos avança, o futuro anterior funciona como um tempo em que diferentes passados não são apenas ressignificados, mas são criados, inventados. Sua existência é poética e solidária a uma forma de ler, isso ressoa com o inconsciente.
- O inconsciente, o tempo e a prática analítica
O inconsciente não conhece o tempo. A experiência da análise, sua duração e o tempo da sessão são correlatos desse desconhecimento.
Lacan (1967) rejeitou a padronização das sessões e sua duração fixa. Na “Proposição de 9 de outubro”, Lacan aborda a experiência analítica como a experiência original que é levada a um ponto de sua finitude, permitindo um après-coup, efeito do tempo e de saber.[ii] Experiência essa que se distancia da mera terapêutica pela aplicação de um tempo lógico ao tratamento, o que se verifica nas demonstrações conclusivas do passe.
Freud defendeu que o inconsciente não conhece o tempo, mas esbarrava com a análise interminável; aquele inconsciente trabalhador incansável não cessava de trabalhar e produzir. O tempo perde sua dimensão cronológica e linear, ou seja, eventos ocorridos posteriormente podem mudar o passado. Por isso, podemos pensar no tempo subjetivo não linear, um tempo evanescente, onde o presente não se pode capturar. Ele no agora escapa.
Para concluir
Consideramos que o infantil se apresenta como uma temporalidade lógica do inconsciente. O infantil nomeia uma fixação de gozo, uma permanência que insiste, atravessa o tempo e se reatualiza. Mas, em suma, do que se trata? Trata-se de experiências sexuais da infância, estabelecidas no ponto em que a lalíngua incide sob o corpo e deixa uma marca; marcas que atuam como fontes do sintoma, modos singulares de gozar que retornam, se repetem e se transformam ao longo de uma existência.
Podemos dizer que o infantil inscreve a marca inaugural da estrutura do sujeito, testemunhando algo de sua herança de gozo, aquilo que, na temporalidade da análise, pode ser reiterado, deslocado ou nomeado.
M. Recalde (2019) em seu texto Lo que perdura nos ensina que o infantil, longe de se esgotar, subsiste antes, durante e depois da experiência analítica. Persiste como um resto irredutível que atravessa o tempo e aponta para a zona do inanalisável: aquilo que subsiste como núcleo de gozo.
Bibliografia
Lacan, J. (1953-54) O Seminário, Livro 1. “Os escritos técnicos de Freud”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
Lacan, J (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise“. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp 238-324.
Lacan, J (1967) “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp.248-264.
Recalde, M (2019) “Lo que perdura”. Em: Revista Lacaniana de Psicoanálisis. “El fator infantil” n., 26, junho de 2019.
Casenave, L (2020) ¿Qué plantea el niño al psicoanálisis? Cadernos ICdeBA 25.