TRANSPUSEMOS A LINHA? A DEVASTAÇÃO DA NATUREZA HUMANA
SALA: A DEVASTAÇÃO DA PALAVRA
TRANSPUSEMOS A LINHA?
A DEVASTAÇÃO DA NATUREZA HUMANA
“A criação do reino psíquico da fantasia encontra sua perfeita contrapartida na
instituição de “áreas de proteção” e “reservas naturais”, onde as demandas da
agricultura, do trânsito e da indústria ameaçam modificar rapidamente o semblante
original da Terra e torná-lo irreconhecível. A reserva natural conserva o velho estado
que em geral, lamentavelmente, foi sacrificado à necessidade. Nela, tudo pode vicejar e
crescer como bem entende, até o que é inútil, mesmo o que é daninho. Uma tal “área de
proteção”, subtraída ao princípio da realidade, é também o reino psíquico da fantasia”
(Freud, S. O caminho de formação de sintomas. Obras Completas v. 13 Conferências
Introdutórias à psicanálise 1916-1917. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 494).
Relatores: Viviana Mozzi (EOL); Paula Iturra (NEL); Oscar Reymundo (EBP)
Participantes: Ariel Hernández (La Plata), Camila Poupadouk (São Paulo), Daiana Regojo (Buenos Aires), José Augusto Rocha (Baía da Traição), José Juan Ruiz Reyes (Ciudad de México), Juliana Horowitz (Buenos Aires), Lucas Horvath (Buenos Aires), Luisa Carvalho Miranda de Lima (Palmas), Miguel Ramírez (Cochabamba), Milena Nadier (Salvador), Peter Molineaux (Santiago de Chile), Stephanie Rudeke (Ciudad de Guatemala).
- De que linha se trata?
Podemos situar, de início, as perguntas que funcionaram como pistas de leitura do próprio título deste Observatório: a natureza é humana? Trata-se da devastação humana da natureza? O humano devastando a natureza? Devastado pela natureza? Devastação da humanidade? Ou será, talvez, que a natureza humana “é” a própria devastação? Paradoxos que levaram a situar que não se trata apenas do incêndio do mundo, mas também da fogueira íntima. A devastação não é estranha ao sujeito — o devastado nos constitui.
Da mesma forma, três significantes extraídos também do título geraram contradições, paradoxos, tensões: a devastação, a natureza, o humano. Algo “ressoa”, provoca enigma.
Por fim, o título também inclui uma pergunta que Lacan dirige a seu auditório enquanto dita seu seminário sobre A ética da psicanálise:
“[…] – transpusemos a linha?
Não se trata do que fazemos aqui, mas do que ocorre no mundo em que vivemos. Isso não é motivo, pois o que aí se profere faz um assaz ruído vulgar não para não o ouvirmos.”[i]
De que linha se trata?
A aposta de Lacan é situar a barreira não tão nítida entre o desejo e o gozo — aquilo que excede o campo do Bem que se desdobra entre eles e a Lei como sua função interditora.
Para isso, sustenta-se nos desenvolvimentos freudianos de que o desejo se funda sobre um vazio central que ultrapassa o princípio do prazer. Das Unheimliche, das Ding, são alguns dos nomes freudianos para esse mais além, fora de sentido e intraduzível. O sujeito se mantém a distância desse núcleo éxtimo que o funda — que barreiras o detêm e o protegem de seu próprio centro?
Uma dessas barreiras é a função do Belo, na medida em que “detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical, uma vez que é o campo da destruição absoluta”. E acrescenta: “é evidentemente pelo verdadeiro não ser muito bonito de se ver, que o belo é, se não o seu esplendor, pelo menos sua cobertura”[ii].
A transgressão dessa linha/barreira nos convoca a interrogar o que há mais além dela. Lacan nos adverte: “Não esqueçamos que se sabemos que existe barreira e que existe um para além – do que existe para além dela, nada sabemos.”[iii].
- De que natureza se trata?
Dado que somos seres falantes, a natureza, assim como seus fenômenos, não pode ser outra coisa senão uma série de hipóteses inventadas pelo desejo de conhecimento do cientista. Assim, o significante “natureza” nada mais é do que uma invenção do ser falante, que deve ser situada, como toda invenção, em um tempo histórico.
De fato, segundo o discurso sobre a natureza, aquilo que os seres falantes acreditam ter descoberto sobre suas leis já foi dito e continua sendo dito. Quaisquer que sejam os fenômenos da natureza, eles não falam, não têm inconsciente, nem são afetados por sintomas. Portanto, os fenômenos que a ciência estuda não dizem senão o que o cientista os faz dizer — em cada época.
Em sua conferência de 1974, em Milão, Lacan se referiu a uma ameaça que não estava sendo escutada: “”A força de remexer nas coisas que jamais haviam realmente conseguido fazer vir, senão do céu, [a humanidade] agora está sendo devorada pelo real.”[iv] É certo que a ciência produz conhecimento que, ao tocar o real, de um lado salva milhões de vidas, e de outro, as arruína.
O sintagma “A devastação da natureza humana” é equívoco: pode-se interpretar que a natureza humana está sendo devastada ou que ela mesma é devastadora. Ambas as leituras são possíveis e não se excluem.
Podemos dizer que a natureza é uma ficção científica, mas também uma ficção civilizatória, se se coloca o acento nos semblantes das diferentes culturas que enraízam sua identidade na terra que habitam, em seus símbolos… No entanto, a natureza humana se caracteriza pelo fato de que o falante é o único ser vivo do planeta que deve inventar, um a um, seu modo de lidar com o real do vazio da existência. Isso implica que não se trata de retornar a uma “natureza ideal”, que sabemos perdida desde o início, e tampouco de um atravessamento brutal das ficções/semblantes.
Lacan não propõe um retorno romântico à natureza nem a uma moral conservadora. Sua proposta é ética e implica em não “ceder em seu desejo”[v] — levando em conta a dimensão do que corre sob ele — mas também em não ir mais além de certo ponto, não forçar o Real[vi], posto que o belo funciona como um véu, uma forma de sustentar uma relação com a Coisa sem violentá-la.
Sabemos que estamos diante “da possibilidade de ultrapassar esse limite, esse ponto de não retorno, não provém somente da ameaça nuclear”[vii] (como aconteceu durante a crise dos mísseis em 1959, ano em que Lacan começa a ditar esse seminário), “A outra grande ameaça é a mudança climática e, de maneira geral, a devastação ecológica do planeta”.[viii]
- A aposta da psicanálise
Éric Laurent propõe que “o irrespirável do ar contaminado é tomado como exemplo dos efeitos da ciência [e das tecnociências] que tornam o mundo irrespirável”[ix], produzindo efeitos de sufocamento a nível da civilização.
Há possibilidade de fazer laço para além do saber imposto pela ciência baseada em evidências? O analista dispõe de uma ferramenta fundamental: a transferência. E propõe a psicanálise como um espaço de respiração artificial; um “pulmão artificial”[x] em relação ao ar contaminado pelo agente do imperativo da paixão pelo saber, inerente à conjunção entre ciência e discurso universitário.
Assim, o irrespirável da paixão pelo saber se distingue do desejo de saber em jogo no discurso analítico, que funciona como uma ajuda “contra”, um lugar entre parênteses a essa paixão mortífera; e o analista, no uso da função de sujeito suposto saber, visa prescindir dele ao final. Um sujeito suposto saber fazer laço, um saber-fazer com aquilo que permita fazer respirar os corpos frente aos efeitos de certeza da viralização dos discursos dominantes.
A aposta, desde o campo da psicanálise, é escutar o “ruído” daquilo que jamais poderá ser escrito, para sustentar a tensão dessa “linha” e seu mais além, do qual nada sabemos, e lograr tornar operativos os semblantes. A psicanálise nos ensina que a “linha” não diz respeito apenas à transgressão de uma lei, ao atravessamento de uma interdição, mas ao risco de ir mais além do já sabido.
O próprio Freud transpôs os diques de seu tempo, perturbou a defesa ao dar lugar à palavra das histéricas para que falassem de seus sintomas, e descobriu nelas, em suas palavras, que tinham uma relação com a sexualidade. E mais ainda: situou aquilo que do sexual jamais terá inscrição.
O analista, com seu ato, perturba, não há retorno. Os finais de análise também nos ensinam sobre a transposição de uma “linha”, o fantasma, e seu mais além: localizar o programa de gozo que dá conta do efeito sobre o nó do corpo e do gozo, para produzir um novo arranjo.
Advertidos pela ética das consequências, há modos e modos de transpor essa “linha”. Não se trata de devastar o parlêtre; trata-se de uma orientação pelo real e não de forçar o real. Não se trata de um atravessamento selvagem das ficções, tendo em conta que a própria natureza, também, é uma ficção.
Propomos que há modalidades de “transpor a linha”: pode operar como defesa, pode ser brutal, pode provocar uma mudança radical em um sujeito, mas sempre esse atravessamento toca o corpo, e ali a psicanálise tem seu lugar, orientada a produzir um novo arranjo com o gozo.
É nesse ponto que situamos a citação que preside esta mesa acerca de “responder à devastação generalizada criando o campo sensível para que as palavras possam operar construindo as ficções, seus modos de dizê-las, mantendo-as próximas ao corpo. É assim que a psicanálise pode fazer com que a roda da aliança entre a ciência e o capital se detenha por um instante”.
[i] Lacan, J., (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p. 275.
[ii] Ibíd., p. 259-260.
[iii] Ibíd., p. 276.
[iv] Lacan, J., “A la Escuela Freudiana”, Conferencia en Milán, 30 de marzo de 1974. p, 15. Acessado em: 08 de julho de 2005. Disponível em: https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/30-03-1974.pdf . Tradução nossa. No original: “À force de remuer les choses qu’ils n’avaient jamais vraiment pu faire venir que du ciel, ils sont maintenant mangés par le réel”.
[v] Lacan, J., (1959-1960), O seminário, livro sete…, óp. cit., p. 375.
[vi] Ibíd., p. 91.
[vii] Castrillo Mirat, D., Psicoanálisis y política, un encuentro necesario, España, Xoroi Ediciones, 2024. p. 151. Tradução nossa. No original:“La posibilidad de traspasar ese límite, ese punto de no retorno, no proviene solo de la amenaza nuclear”
[viii] Ibíd. Tradução nossa. No original: “La otra gran amenaza es la del cambio climático y, en general, la devastación ecológica del planeta”.
[ix] Laurent, É., “La angustia del sabio y su síntoma ecológico”, Zadig España, 10 de janeiro de 2023. Disponível em: https://zadigespana.com/2023/01/10/la-angustia-del-sabio-y-su-sintoma-ecologico/ Tradução nossa. No original: “lo irrespirable del aire contaminado es tomado como ejemplo mismo de los efectos de la ciencia [y de las tecnociencias] que hacen irrespirable al mundo”.
[x] Ibíd. Tradução nossa. No original: “pulmón artificial”.