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O GÉRMEN DO PULSIONAL E A LALENGUA

SALA: LALÍNGUA DESENCADEADA
O GÉRMEN DO PULSIONAL E A LALÍNGUA

 

“O que aconteceu na primeira infância? Nada, mas já havia o germe de um primeiro impulso sexual” (Freud, S. Carta de Freud a Fliess – 3 de janeiro de 1899. A correspondência completa de Freud para Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 339).

Relatores: Graciela González Horowitz (EOL) e Mônica Hage (EBP)

Participantes: Anamáris Pinto (Belo Horizonte), Clara Melo (Salvador), Federico Pozzer (Buenos Aires), Isabel Abreu (São Paulo), Karina Zapata (Santiago de Chile), Letícia Rosa (Campo Grande), María Basile (Mendoza), Mariela Gutiérrez (Buenos Aires), Pilar Santoyo (Culiacán), Robinzon Caicedo (Cali), Susana Schaer (La Paz), Valeria Vinocur (Córdoba).

 

Sacudidos pelo entusiasmo que essa proposta nos suscitou, decidimos pinçar essa citação, e assim uma conversa enriquecedora foi se precipitando em um trabalho de Escola.

Fonte de energia

Partindo do argumento que traz esta mesa como título: a lalíngua desencadeada, percebemos que Freud, em sua carta 101, nos dá os elementos para ler ali, que não se trata do “ser” da infância, nem do “ser que, por pouco mais, ia ser”[i]. Trata-se do Um do gozo. Choque pulsional, nos termos de Freud, acontecimento de corpo, com Lacan. Esse “antes”, referente a esse nada que há na primeira infância, habita um fora de história, um fora de tempo do inconsciente que, uma vez corporificado como sintoma, mantém sua presença nas modulações e ressonâncias que decantam da lalíngua.

Freud aponta, com esse nada de sentido, o gérmen em que ferve uma energia que se distribui no corpo sem lei, ondas pulsionais — que transbordam o aparelho — impossíveis de processadas até zero, fazendo lugar em um campo que designa um significante fora do Outro da linguagem.

Nossa hipótese é que Freud nos guia ao Ur, à origem e nos apresenta o dromo, a pista que nos leva a nos encontrar com o trauma. Trauma enquanto fórmula geral do acontecimento de corpo, que deixa marcas de afeto.[ii] Encontramos na carta um prelúdio do conceito de lalíngua, quando, em segundo lugar, Freud afirma ter apreendido um novo elemento significativo prévio ao sintoma e anterior à fantasia. Apontando, assim, esse real que não está enlaçado a nada.[iii]

Há uma desarmonia originária quando o choque, o mau encontro com a pulsão acontece e sua sonoridade se faz escutar, introduzindo um gozo no corpo impossível de simbolizar.

Recomendamos fortemente, nesse ponto, assistir ao vídeo da artista Céleste Boursier‑Mougenot C’était[iv], que belamente com sua arte nos aproxima e nos permite apreender algo do conceito de clinamen[v], tomado por Lacan[vi] e Miller[vii] para se referir a um estado atômico inicial, no qual o vazio é perturbado por uma turbulência. Impacto que produz um desvio imprevisível, permitindo que esses choques deem origem à formação de objetos e seres vivos.

Esse conceito, tratando da origem e do fora de sentido, descreve o interesse que o próprio Freud destaca sobre a desordem que produz a irrupção da “Sexualentbindung”, ao aludir a uma liberação brusca de uma energia desencadeada. Lacan[viii] recolhe essa ideia ao dar função de gérmen à letra, acentuando a reprodução do Um sozinho, que itera “sem rima e sem razão”[ix], para dizer “do acidente contingente que se produz […] a incidência da língua sobre o ser falante”[x].

Quando Lacan escreve em nosso solo lacaniano o conceito de lalíngua, seu barulho introduz o mal-entendido. Esse giro em seu ensino descola das formações do Inconsciente a face Real do Significante, pois dirá que a lalíngua é feita de elementos Uns que não se articulam, não pertencem à ordem do sentido, enxames que zumbem perturbando o corpo. Desse enxame, se soltará Um privilegiado que encarnará esse crash singular para cada um, constituindo-se em acontecimento.

Desse modo, nos orienta a ler a cicatriz que da lalíngua se precipita no encontro com o corpo, ferida impossível de negativar, trauma “originário” que habilita a linguagem a uma elucubração de saber sobre ela.

Lacan toma o conceito de letra como materialidade, como traço. Nos diz que, se algo constitui o Um, é o sentido de elemento, e assim refere-se ao Um, que não faz cadeia, que não se articula e conta-se como zero de sentido. Por quê? Porque a letra é a escrita do indizível, por o que a função do escrito não tem a ver com a semântica, mas com o que se precipita da lalíngua como ilegível — saldo de gozo. Nas palavras de nossa querida Alejandra Eidelberg: a letra, essa que é marca na terra e que nós lemos no corpo como indício do real.

Uma lógica do real

Como Freud abre um sulco para preparar o caminho dos psicanalistas, que bebem dessa fonte, molhando suas peles para adubá-las no terreno da psicanálise lacaniana, nos parece relevante ir localizando o possível uso que se fará daquilo que não se pode dizer e representa o gozo que inunda o vazio de sentido. Esse nada encarnado na onda pulsional que, como Freud ensina, está na origem e resta irredutível.

Lacan[xi] toma Fregue para centrar-se no conjunto vazio, e tentar demonstrar “a hiância que há entre esse Um e algo que depende do ser e, além do ser, o gozo”[xii]. Para exemplificar isso, vamos ressaltar três elementos que convergem em seu uso, percebendo que, em uma análise concluída, ocorre uma transformação do inconsciente[xiii] e que se manifesta na qualidade de letra. Eles são: a função aparente f (x), aquela que conserva um lugar vazio a ser preenchido por x do argumento. Por outro lado, a importância operatória do referente, aquilo que fica fora do sistema significante e sustenta a função e o conceito de sutura[xiv] em relação ao 0 e ao 1.

Laurent dirá: “O que vem garantir todas as verdades é este ponto fora do sistema; […] o gozo”[xv] E Lacan, em relação ao significante e ao significado, dirá que o referente é o terceiro indispensável e que “o referente[xvi] é propriamente que o significado rateia, o colimador não funciona”. No lugar do referente, como valor de verdade, há um furo[xvii].

Ressaltamos isso partindo da carta freudiana 101, onde afirma que na origem não há nada, apenas um gérmen de moções pulsionais. O que ex-siste, o real, tem seu lugar prévio ao simbólico e é o que resta como materialidade, após o assassinato da coisa.

Dentro da cadeia Significante, em que “o colimador”[xviii] não funciona, evidencia-se o esforço do sujeito por obturar esse furo e do que resiste absolutamente ao simbólico.

x [–|–|–|–|–|–|–|–] x

O S1 com o qual o sujeito se identifica, na sua articulação na cadeia significante com um S2, conserva “suturado” a presença de uma ausência.

Ou seja, o que não há, na origem, no seu valor de zero absoluto, faz notar que o que não se liga com nada, causa da série repetitiva. O Um desencadeado.

Ao falar do gérmen e do franqueamento do conjunto vazio, a partir do qual o Um se constitui, recolhemos a frase que, em consonância com a citação de Freud, nos diz: “Aquilo de que se trata, nesse Um repetido da primeira linha, é, muito propriamente a nada (nade), ou seja, a porta de entrada que é designada pela falta, pelo lugar onde se cria um furo”[xix]

Falar com a criança é falar com o trauma[xx]

Então: O que nos ensina uma análise que toca o clinamen do gozo?

A seguir, situaremos alguns fragmentos de testemunhos para observar as torções entre lalíngua e a linguagem ao fazer falar a criança que há em cada tratamento[xxi], ao nos enredarmos com “isso” e fazer falar o corpo pulsional[xxii].

Silvia Nieto[xxiii] nomeia sua marca singular “a chichi amorosa”, como uma maneira de chamar a excitação que habita seu corpo e o transborda.

Com Pepita[xxiv], podemos dizer que na frase “sua vida” nos mostra o caminho de uma redução da economia de gozo que vai desde “a pena”, do mortificante do significante ao vivificante da letra. A pena que voa.

“Produz um estado que nunca surge espontaneamente […] e que esse estado recentemente criado constitui a diferença essencial entre uma pessoa que foi analisada e outra que não foi”[xxv]

M. H. Blancard[xxvi], em relação ao último sonho no final da análise, comenta sobre o esvaziamento do gozo: “Não basta tomar OMO (à palavra), é preciso capturar o gozo na letra […] os dois “O” se barram, escrita do conjunto vazio, enquanto o “M” se transforma em punção que articula o vazio do sujeito com o nada do objeto.” Aponta com seu testemunho a letra que vai ao lugar do vazio do inominável e, de algum modo, o nomeia.

Desse modo, os AE testemunham do furo real. “Não há um” que tenha nomeado o gérmen, e sim a materialidade da letra vazia de sentido.

O gérmen está perdido para o sentido. Há um vazio de nome do real.

A letra é uma redução e é a possibilidade que a linguagem nos dá para indicar o real da lalíngua, o incurável. Aquilo que ronrona e está na porta de entrada.

No que se refere às análises, nos ocupa então um saber-fazer com aqueles impulsos resistentes que ainda nos perguntamos de onde emergem, aos quais Freud chamou de hóspedes forçosos oriundos de um mundo estranho[xxvii].

Dito isto, para concluir, não deixamos de interrogar o que Marcus[xxviii] trouxe ao dizer que cada um vive a língua a partir da lalíngua, e que lalíngua só existe porque tem a língua. É possível fazer disso uma analogia com a carta 46[xxix], onde Freud nos diz que o excedente sexual por si só não pode criar recalque, pois necessita da cooperação da defesa, afirmando, por sua vez, que, sem excedente sexual, a defesa não opera?

Nesse cruzamento entre lalíngua e o excedente sexual encontramos o núcleo traumático que desperta nosso interesse. Será que, pelo mistério do corpo falante que nos atravessa, seguimos perguntando ao tão analisado caso Emma: é o excedente sexual o trauma, ou é a partir da atribuição de um sentido? É igual ter 12 anos ou estar em um momento da vida anterior à aquisição da linguagem?

Ligar o trauma à sincronia[xxx] nos aproxima de uma resposta. Como nos ensina, com seu testemunho, Carolina Koretzky: “Nenhuma palavra, nenhuma imagem poderá restaurar o momento preciso e exato em que as palavras encontraram corpo”[xxxi]

“Isso” surge em qualquer momento da vida, no instante em que se casam o excedente e o sentido, colocando em tensão a torção furo-excesso, para dizer o que não se encaixa.

Revisão: Cynthia Gonçalves Gindro

 


[i] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 55.

[ii] Miller, J-A. Biologia lacaniana e acontecimento de corpo, Opção Lacaniana. Revista Brasileira de Psicanálise. São Pauolo: Edições Eolia. Dezembro de 2004, n. 41,  p. 53.

[iii] Miller, J-A. Piezas sueltas. Paidós, Bs As, 2013, p. 50.

[iv] Clinamen – Installation de Céleste Boursier-Mougenot C’était – janvier 2018 à la biennale d’art contemporain de Lyon. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Mn319FI6EFI

[v] Clinâmen, termo da filosofia dos estóicos.

[vi] Lacan, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 64.

[vii] Miller, J-A. Ler um sintoma. Opção Lacaniana. Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia. Junho de 2015. n. 70, p.21.

[viii] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 118.

[ix] Miller, J-A. El ser y el Uno, 2011, 4/5/2011. Inédito. Tradução Nossa.

[x] Miller, J-A., Biologia lacaniana e acontecimento de corpo, óp. cit., p. 53.

[xi] Lacan, J. O Seminário, livro 19:…ou pior. Rio de janeiro: Zahar, 2012, p. 56.

[xii] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 14.

[xiii] Tarrab, M., Las Huellas del síntoma, Gramma, Bs As, 2005, p. 117.

[xiv] Miller, J-A. Matemas II, Bs As, Manantial, 1988.

[xv] Laurent, E., Paradojas de la identificación, Bs As, Paidós, 1999, p. 62. Tradução nossa.

[xvi] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.31.

[xvii] Miller, J- A., La psicosis en el texto de Lacan, La psicosis en el texto, Manantial, Bs As, 1990.

[xviii] O objetivo da colimação é fazer que o eixo óptico de cada lente ou espelho coincida com o raio central do sistema.

[xix] Lacan, J. O Seminário, livro 19:…ou pior. Rio de janeiro: Zahar, 2012, p. 141.

[xx] Santiago, J. 2025, Ficção e canto da fala e da linguagem. Conversação preparatória para o XII ENAPOL. Belo Horizonte. 31 de maio de 2025.

[xxi] Otoni, F., Falar com a criança! Argumento do XII ENAPOL. 3 de fevereiro de 2025. Disponível em: https://enapol.com/xii/argumento/

[xxii] Kuperwajs, I., Aprender a falar com isso. Textos Preparatórios para o XII ENAPOL. 24 de Marzo 2025. Disponível em: https://enapol.com/xii/aprender-a-falar-com-isso1/

[xxiii] Nieto, S., A mi aire, Revista ELP 34, 2019.

[xxiv] Fuentes, M. J., Una pena, Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, 2018, p. 93.

[xxv] Freud, S. Análise terminável e interminável. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975, p. 259.

[xxvi] Blancard, M.H., “Tomar el goce a la letra”, Revista Freudiana, n. 67, 2012. Tradução nossa.

[xxvii] Freud, S., Conferencia 18, Obras completas, t. XVI, Amorrortu, Bs As, 2009, p. 254.

[xxviii] Vieira, M. A. 2025, Ficção e canto da fala e da linguagem. Conversação preparatória para o XII ENAPOL. Belo Horizonte. 31 de maio de 2025.

[xxix] Freud, S. Carta 46. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol I. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, p. 312.

[xxx] Miller, J.A., Causa y consentimiento, Paidós, Bs As, 2019, p.138.

[xxxi] Koretzky, C, Atividade: Rendez-vous avec la passe, 2024. Tradução nossa.