A PENEIRA E A LINGUAGEM
SALA: O “TALVEZ” DA CRIANÇA E SUA LOUCURA
A PENEIRA E A LINGUAGEM
“O fato de que uma criança diga talvez, ainda não, antes mesmo de ser capaz de
construir verdadeiramente uma frase, prova que há algo nela: uma peneira que se
atravessa, por onde a água da linguagem chega a deixar algo na passagem, alguns
detritos com os quais ela vai brincar, com os quais, necessariamente, ela terá que lidar.” (Lacan, J. Conferência de Genebra. Opção Lacaniana, n. 23. São Paulo: Eolia,
dezembro de 1998, p. 11).
Relatores: Aliana Santana (NEL) e Cristiane Barreto (EBP)
Participantes: Andressa Luz (São Paulo), Areli Leeworio (Ciudad de México), Carlos Chávez (Bogotá), Carmen Palmieri (Buenos Aires), Fernanda Baptista (Curitiba), Jorge Santiago (Chiapas), Maria Antunes Tavares (Rio de Janeiro), María Luján Ros (Buenos Aires), Matías Mazzotta (Buenos Aires), Rafaela Oliveira Quixabeira (Goiânia), Raúl Sabbagh (Ciudad de México), Verónica Fernández (Venado Tuerto).
O “talvez” da criança e sua loucura
Lacan , na Conferência de Genebra, aborda o sintoma como o detrito da peneira da água da linguagem sob o corpo. Nessa conferência, Lacan fala com a criança. Mais precisamente, diz que ao observá-las, repara que dizem “talvez”, “ainda não”, antes mesmo de construírem uma frase[i].
No Seminário Um, Lacan interroga “como esse mundo se põe em movimento” e “o que representa o apelo no campo da palavra”, responde: “Pois bem, é a possibilidade da recusa. Eu digo, a possibilidade.”[ii]
A palavra “talvez” é um advérbio de dúvida, indica incerteza ou possibilidade, carrega como sinônimo não apenas o ocasional, o que eventualmente acontece ou poderá acontecer, mas também o fortuito, o contingente. A equação de dizer “talvez” antes mesmo de construir uma frase, atesta a existência dos restos com os quais a criança brinca, experimenta e lidará mais tarde. Registro de atividade não-refletida, restos aos quais somarão “os problemas do que a vai assustar”, graças a isso, fará a soldadura, a junção da realidade sexual e da linguagem[iii].
O talvez da criança expressa possibilidades, que ela pode inclusive usar sem saber o que diz, ou fora de contexto, é a sensibilidade das formas de dizer que a circunda. Para Lacan, “o detrito é o ponto a ser retido, não só como sinal, mas como algo essencial”, pois é em torno disso que vai girar a alienação[iv].
Aprende-se a falar com as partículas da língua materna. A aparição da linguagem é consentimento com o que vem do Outro e o registro da insondável decisão do ser. Das palavras que compõe a linguagem, resta a ressonância no corpo e o modo singular com que cada um usa a língua, carregando enxurrada de restos inassimiláveis. O não simbolizado se expresará no sintoma.
O que resta na peneira do cruzamento entre gozo e significante terá lugar estável no corpo como equívocos ou no mal-entendido que se instala quando uma criança diz “talvez”. Vem daí, do leito do rio da linguagem que banha cada criança e dos seus afluentes, materiais que concernem ao “grau zero do ser, mas fragmentário, feito de esparsos disparatados e bricolagens precárias”[v].
Sutilezas: o talvez e o real da mensagem
Nossa hipótese de partida é, com Lacan, que entre homens e mulheres não há relação produto do instinto, o laço se funda na inscrição da linguagem à massa orgânica do ser vivente, a mesma que terá o alcance de transformar organismo em corpo falante. Quando a criança diz, talvez, ou ainda não, já está em jogo o gozo próprio do corpo, efeito da operação do passo do organismo ao corpo.[vi]
Quando uma criança chega ao mundo, não o faz sem que já havia sido falada. Para o bem ou para o mal, com ou sem desejo já falaram dele. É importante assinalar, talvez por sua obviedade, que quando um bebê é falado, implica que alguém, distinto do bebê, faça uso da linguagem.
A linguagem é composta da somatória da língua mais o elemento social que a normaliza. A criança é capturada pela estrutura de linguagem que preexiste, experimentado como lalíngua. Os efeitos de lalingua “vai bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar”[vii].
Além da captura do ser vivo pelo simbólico, Lacan coloca em questão o laço entre o corpo e a linguagem, enfatiza o dizer que fica esquecido por trás do que se diz e só pode ser capturado pelo que se ouve[viii]. Na vertente da fala, a única materialidade é que se diga, porque o dizer inclui o corpo. Que se diga alguma coisa, remete ao objeto a, causa de desejo, que impele a criança a dizer. O “real da mensagem inconsciente” é definido “dos efeitos do significante que lhe escapa”.[ix] O dizer inclui a enunciação e o próprio ato de dizer, feito de relações, elo das pessoas ao social.
Se a língua é “multiplicidade inconsistente de ficção mutante”, compartilhada entre os que falam a mesma língua, por sua vez, a invenção de “lalíngua” aponta a babel subjetiva, mostrando que falar serve mais ao gozo que ao entendimento.[x] Essencialmente privada, lalíngua é coração da singularidade; uma gambiarra que cola, recorta, colore “balbucios, retalhos de palavras escutadas, significantes amo, entonações, sotaques”, “núcleo impossível de compartilhar”, tanto ponto de inserção, quanto de exclusão.[xi]
A linguagem, então, não é considerada como um sistema originário, mas como derivado de lalingua. O infans recebe aluviões de sem sentido e seu corpo se afeta. Balbucia aquilo que mais adiante na vida não dará conta de dizer.
Encontramos em um testemunho de passe de Irene Kuperwajs uma enunciação que ensina. Irrompe na memória um significante primordial esquecido por décadas, de um remoto acontecimento de corpo. “Durante os primeiros seis meses de vida, tive ¨espasmosdesollozo¨, sempre escutado ao modo de uma holófrase”[xii]. Os pais contavam que ela ficava azul e deixava de respirar, retinha o ar e a voz, o grito e o pranto os enlouquecia. Por muito tempo, Irene tentou obter a última palavra sobre esse trauma, até que a analista pontua: ¨responde à insondável decisão do ser¨. Reter, em vez de gritar. Entre os gritos maternos que representavam o gozo ilimitado e o silêncio do pai…o ¨espasmodesollozo¨.[xiii] A insondável decisão do ser fixa esse gozo ao silêncio.
O acontecimento de corpo testemunha que a língua deixa marcas com as quais o falasser tem que se virar, às vezes, pelo avesso, por ser ao mesmo tempo o mais íntimo, indivisível, e o que serve para fazer laço com o Outro. Contudo, há também incidência dos detritos no corpo social. Corpo não é sem outros. Para Eric Laurent, o corpo social se faz a partir de afetos que concernem aos grupos e atravessam corpos individuais.[xiv] Cada ser falante, em singular uso da língua enlaçada com o corpo, dá conta do tratamento da enfermidade humana por excêlencia.
Fragmentos Clínicos
Antes de cair, a morte[xv]
G, inicia a análise aos 14 anos (agora tem 26), para ser psicólogo, mas rapidamente se desvela a verdadeira razão de sua demanda: pensamentos intrusivos de morte. Às vezes queria se jogar pela janela ou ser atropelado por um carro. Nasceu com paralisia celebral, caminha e fala com dificuldade, não escreve com as mãos. Odeia e sente repugnância pelo corpo.¨Desde que nasci odiei a vida e odiei meu corpo¨. Um pensamento o atormenta: cair. Não teme a queda, mas sim o que o corpo sente antes da queda, ou o corpo despedaçado depois da queda. A vida o esgota, a palabra o drena. Não quer continuar sendo a cola da família, o que os mantém juntos e, muito menos, viver só por gratidão a todos. ¨Os amo e os culpo¨.
G nunca pensou chegar à vida adulta, e hoje se surpreende ao se ouvir dizer: “quero viver, porém não da mesma maneira, você tem sido minha parede, não quer me ajudar. Eu precisava de uma parede para dizer o que nunca havia podido dizer”.
Uma carta de amor[xvi]
Lourdes, 7 anos, insisti ser chamada de Joaquim na escola. A mãe não teve relação amorosa com seu pai, que foi embora quando ela tinha dois meses; recebeu sobrenome da avó materna. Conta que o pai lhe deu um segundo nome, Joaquim, para ela o seu nome é Lourdes e seu sobrenome, Joaquim.
O tema familiar é um emaranhado. Diz que o pai tem um filho com uma mulher que também é sua mãe. A analista indaga: “Como, se você já tem uma mãe?” Propõe que jogassem sem falar, a analista aceita. Queria ter nascido menino, se veste de menino, mas diz saber que não é menino. A analista pergunta como sabia disso, responde que a mãe havia dito. “Minha mamãe queria que eu nascesse menino. Eu digo a ela que nasci mal.”
Foi para a escola disfarçada de “gaúcho”. A analista pergunta de quê ela estava fantasiada, ela corrige: “fantasiado”. Na sessão, jogam bola e ela anota os pontos, escreve sua inicial ao lado da inicial da analista, pergunta se poderia colocar o J, a analista consente. Uma alegria se abre e anuncia que Joaquim tinha encontrado um lugar. Conta estar enamorado de Helena. Escreve a ela uma carta de amor. A mãe diz que ela tem insistido, e fica alegre quando chamada de Joaquim. Disse à mãe: “eu não sou como os meninos”, e que teria de deixar de ser menino quando tivesse mamas como ela. A mãe afirma que quando crescesse o corpo mudaria. Ela reflete: “…e bom, eu vou resolvendo”.
O encontro com a analista retificou o lugar que a perspectiva de gênero dava ao seu nome. Dos dois nomes, Joaquim está no lugar do emaranhado familiar, a vestimenta Joaquim faz funcionar o que na mãe não tem lugar. Entre dois nomes, à condição única de fazer par com as mulheres de sua casa, ela promove a diferença com Joaquim. Quando escreve a letra J, de Joaquim, deixa do lado do analista o que há neste nome e alivia-se de estar só com esse nome. Do acting out à carta de amor entregue à Helena, efeito de um vazio de interpretação. Desenha Joaquim com um coração roxo ao seu lado. Joaquim, é Lourdes, um homem que ama.
Do que não se apaga[xvii]
Lúcio, 10 anos, repete sem parar um gesto. A mãe teme que se agrave e que tenha “algo pior por detrás”; cogita um neurologista, TCC, e conta que o filho é feliz. Os tiques iniciaram nas férias com o pai, que mora em outra cidade. Na fila da montanha russa, na sua vez, desiste, ao fim da escada, faz o tique pela primeira vez. A analista pede para que a mãe faça o tal gesto. A relação amorosa dos pais termina a partir da decisão materna, em grande explosão de ira contra o pai, na frente do filho, com menos de dois anos de idade. Ao se virar para pegá-lo e ir embora, ele recusa fazendo um gesto para trás com os ombros. Ao contar, a mãe repete o gesto no lugar das palavras. A analista sinaliza sutil: “Ah, o gesto!” Impactada, sai confiante que o filho deva iniciar a análise.
Lúcio não faz o tique na sessão, a não ser ao se deparar com a mãe na sala de espera. Nada da separação foi ruim “ou traumático”, expressão que chama atenção. Está ali porque a mãe quer e por causa dos tiques, duas razões. Conta que o tique atrapalha desenhar, do incomodo por ter desistido da montanha russa, e que o pai não havia ficado bravo. Comenta ser um gesto sem sentido. Em suspiro, uma frase inusitada: “porque aqui tem um cheiro tão bom?”. A analista aproveita o ensejo e indaga: “o que seu pai faz da vida?” – “É baterista”. A analista repete a palavra, gesticulando. Aceita voltar e irá desenhar.
A mãe diz que ele achou a analista “abstrata”. Leva materiais e pasta com desenhos, e conta que “os tiques desapareceram magicamente”. “Não sou eu que faço isso”. “Quem faz?”, responde: “meu corpo”. A analista diz que numa análise pode-se falar do corpo. Escolhe desenhar uma mão. A analista propõe que não terminasse naquele dia, faz um corte no segundo sombreado do contorno das mãos. Escolhe levar o desenho. Ao sair, faz o tique ao ver a mãe.
Decide escrever uma frase no desenho: “por trás de toda vitória, tem uma guerra!”. Ao escrever a frase, erra duas letras: “Por trás de toda vitória, tem uma gera”. A analista lê. Esquece o U e o R, letras que compõe seu nome próprio e de uma pessoa especial. Ao ato falho, risos. Constata que quando se apaga, algo fica marcado e que “as letras mudam tudo”.
Mesmo associando o gesto à montanha russa da ira materna, o que verdadeiramente se extrai desse caso é que o falasser é afetado pela lalangue que abriga um gozo sem palavras, sem lembrança registrada além da marca apagada que, ainda assim, insere uma iteracão. O indelével de um experiência ordena um modo de estruturar o verbo, habitar um corpo e interagir com os pares.
[i] LACAN, J., Conferência de Genebra. Opção Lacaniana, n. 23. São Paulo: Eolia, dez de 1998, p. 11.
[ii] LACAN, J. Seminario 1, Os Escritos Técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1983, p. 105.
[iii] LACAN, J., Conferência de Genebra. Opção Lacaniana, n. 23. São Paulo: Eolia, dez de 1998, p. 11.
[iv] LACAN, J., Seminario 14, A lógica do fantasma. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2024, p. 101.
[v] VIEIRA, M. A. Sintoma, clínica e política. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/sintoma-clinica-e-politica/ 2021. Acesso: jul, 2025.
[vi] LACAN, J., Conferência de Genebra. Opção Lacaniana, n. 23. São Paulo: Eolia, dezembro de 1998.
[vii] LACAN, J., Seminário 20, Mais Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.190.
[viii] LACAN, J. O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003, p. 448.
[ix] ALBERTI, C (2025). Corpos aprisionados pelo discurso. In: Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. N° 94, 2025, p. 17.
[x] FARI, Pascale (2022). Conferência Internacional: Hablar es un trastorno del lenguaje. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qz4jD-2ONDw . Out 2022. Acesso: julho de 2025.
[xi] Idem.
[xii] KUPERWAJS, I. (2019). Tomar la palabra. In: Revista Lacaniana de Psicoanálisis N°27: Operación Analítica, 2019, p. 13.
[xiii] Idem.
[xiv] LAURENT, E. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2016.
[xv] Caso atendido por Aliana Santana (NEL/AMP)
[xvi] Caso atendido por Verónica Fernández (EOL/AMP)
[xvii] Caso atendido por Cristiane Barreto (EBP/AMP)