O GOZO E A ALEGRIA
SALA: O “TALVEZ” DA CRIANÇA E SUA LOUCURA
O GOZO E A ALEGRIA
“Freud sentiu que era seu dever reintroduzir nossa medida na ética através do gozo. E
acaso não é tentar agir com vocês [nesse sentido] (…) deixando-os com esta pergunta:
Que alegria encontramos nos naquilo que constitui nosso trabalho?” (Lacan, J.
“Alocução sobre as psicoses da infância”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003, p. 367).
Relatores: Liège Goulart (EBP) e Francisco Pisani (NEL)
Participantes: Ana Sanders (Belo Horizonte), Christian La Torre (Cochabamba), Cynthia Barreiro Aguirre (Buenos Aires), Diana Ortiz (Ciudad de Mexico), Francisca Menta (Rio de Janeiro), Gabriel George (La Habana), Gisela Calderon (Buenos Aires), Irene Rosero (Cali), Luciana Silva Pedron (Brasília), Nanci Nakamura (Salvador), Natalia Kalejman (Buenos Aires), Pablo Olivero (Buenos Aires).
Que estranha alegria!
Tomamos a citação (1) e a dissecamos. Ela nos interpelou e, mais ainda: fez surgir um desejo habitado por um trabalho alegre. Nos interessou o entusiasmo, a ética e o desejo do analista, mas também uma frase de Lacan sobre não ter com quem compartilhar suas alegrias (2). Isso sugere que a alegria não é para um só, mas requer ser transmitida. Um fazer passar isso a outros, talvez possa se ligar à transferência de trabalho.
A palavra “alegria” vem do latim e significa vívido, animado, leve, ágil ou vigoroso (3). Tem conotações de movimento, energia e entusiasmo. Que alegria nos habita nesse trabalho que nos confronta com o gozo, a dor, o fora de sentido? Talvez seja a alegria de saber fazer, contingencialmente e a cada vez, com o incurável e transmitir, mesmo em silêncio, a marca do desejo do analista.
Marie H. Brousse também nos aproxima ao “vivaz” e “animado” quando considera que a alegria que sacamos de nosso trabalho é “a alegria da improvisação” (4). Argumenta que a experiência analítica enquanto prática tem uma relação com o múltiplo e, dessa maneira, combate a inércia, a repetição e a rigidez.
Então, há alegria em ocupar o lugar do analista?
Essa pergunta é uma interpelação ética: desde que lugar opera o analista? O que busca nesse trabalho com o incurável, com o excesso e com a transmissão?
A psicanálise não é apenas uma prática clínica, mas “a dimensão mesma da experiência é ética” (5), na medida que confronta o sujeito com o real do gozo e com o extravio que se encontra em relação a ele. Para isso, Miller aponta que tal experiência envolve uma escolha, pois “buscar a verdade do próprio gozo perturba, indubitavelmente, o bem-estar.” (6)
Lacan sustenta que a ética tradicional se vincula ao Ideal ou ao irreal, assinalando que o próprio da psicanálise é um caminho inverso, que aprofunda a noção do real (7), conformando uma ética que nada tem a ver com a moral. O caráter superegóico da cultura ganha, como seu reverso, um tratamento a partir de uma ética, a da psicanálise. Lacan a revitaliza por considerá-la essencial para compreender nossa experiência e animá-la a partir dessa ética (8). No campo da cultura e suas exigências, prevalecem certos sacrifícios que geram sofrimento, ligados a ideais culturais que não se emancipam da ideia de amor universal: “ama teu próximo como a ti mesmo”, máxima que gera hostilidade e ódio.
A leitura lacaniana foi a de enlaçar isso mesmo como um “mandamento” articulado à civilização que exige resolver um problema ético, a saber, que o gozo permanece interdito como antes de se soubesse que Deus está morto. Um problema do mal que foi eludido pelos moralistas tradicionais, mas não por aquele que formulou um Além do princípio do prazer, afirmando: o gozo é um mal. Por quê? É um mal na medida em que implica o mal do próximo. “É isso que se anunciava, se averiguava, se expunha à medida que a experiência analítica avançava. Isso tem um nome – é o que se chama de para além do princípio do prazer” (9).
Lacan se libera da problemática do bem, separando-a do que implica a experiência psicanalítica. Porque, se retomamos a Kant, o bem só pode engendrar um excesso real (gozo) cuja consequência fatal é a tragédia.
E diz algo mais sobre o que nos orienta em “nosso trabalho”: “quanto mais somos santos, mais rimos” (10). O bem-dizer é ético e o mal-dito, dirá ele, aponta para o pior. O bem-dizer não diz onde está o bem e o afasta de uma questão moral e hedonista. É preciso bem-dizer o que falha para cada um na estrutura (11).
Como o bem-dizer não ignora o que aparece como impossível, Lacan, em Alocução, se questionava se estamos à altura daquilo que parece que somos, pela subversão freudiana, chamados a sustentar isso que se chama ser-para-o-sexo, ou seja, o não há. E continua: não somos suficientemente valentes para sustentar essa posição, nem suficientemente alegres (12). A alegria lacaniana se perfila assim com a castração.
Trata-se de não operar apenas com a paixão da linguagem, com palavras belas ou com aquilo que caia na ficção sem compreender nada da estrutura em que ela se realiza (13). Não seria acaso porque operamos sobre o fundo do real, do impossível, do que há e do que não há? O corte, o silêncio ou um ato do analista podem fazer aparecer o gozo de lalíngua.
Miller situa que o último ensino de Lacan é mais realista ao não tomar como referência a linguagem senão a lalíngua – que concebe como uma secreção de um certo corpo – e ao ocupar-se menos dos efeitos de sentido do que desses efeitos que são afetos, irredutíveis ao sentido (14). O corpo está marcado pelos acontecimentos de gozo, pelos traumas dessa lalíngua. Isso faz ressoar o que é de outra materialidade, lalíngua, que faz sua aparição em pedaços por meio da palavra.
Miller (15) dirá que, cada vez que o saber (mito) se decompõe, e o significante falta ali onde era esperado, há um efeito sujeito (dividido pelo seu gozo), e isso é o que se deve considerar na orientação do que constitui a experiência analítica, por verificar o sujeito como uma descontinuidade no real.
Em Alocução (16), Lacan faz um chamado a não eludir aquilo que mortifica por habitar o corpo da criança. O que uma análise ensina não é tanto o que uma criança foi, mas o que ainda persiste como resto do infantil no gozo. A pergunta pela infância, na clínica, surge assim não como arqueológica, mas como uma atualidade do gozo. É uma via para localizar o real com o qual o sujeito tropeça hoje.
O desejo do analista, então, é também o desejo de dar lugar àquilo que não foi representado e que retorna na repetição.
Então, qual seria a alegria de nosso trabalho?
Pode tratar-se de uma alegria que não desconhece a castração, nem a ética do bem-dizer, nem os princípios psicanalíticos. Uma alegria que pode ser sustentada por aqueles cujo trabalho os leva por onde não há um fio, onde há falhas e impossíveis. Justamente porque se pode sustentar o lugar da causa, como o santo seco de gozo, para ler onde o vivo se captura. Um saber no real também foi traduzido como “ter circunscrito a causa do próprio horror de saber”: um analista é portador dessa marca que não é outra senão a de sua própria singularidade, aquele que não desconhece o vivo, presente no dizer.
Mais contundente, Lacan o disse com a noção do santo, em Televisão: é aquele que não faz caridade — mais ainda, “presta-se a bancar o dejeto: descaridade”, dizia (17). Se o santo goza, já não opera… já não é alegre.
Seja criança ou adulto, o registro das satisfações é o mesmo, portanto, não há gente grande. Não esqueçamos que a descoberta freudiana foi precisamente que a criança é um perverso polimorfo atravessado por pulsões parciais, ou seja, goza. E para um analista, o trabalho é ler essa trama de fixações. Tudo isso se torna acessível a partir do que se lê sob transferência.
Privilegiar a marca que se inscreve no corpo, feita de lalíngua, pode abrir a via pela qual o sujeito possa advir como sujeito do inconsciente. Lembremos que o operador lógico no discurso do analista é o objeto a, no lugar do agente. Lacan acrescenta: “quando se verá que o que prefiro é um discurso sem palavras?” (18).
Graças a certas relações estáveis, incluindo a do objeto a, é possível ler algo que se inscreveu de forma mais ampla, muito além dos enunciados. E a enunciação é um enigma na medida em que se põe em jogo o sujeito que fala na criança. Portanto, fazer a criança falar, para escutar o sujeito da enunciação, envolve um desejo decidido por parte do analista de fazer falar essas marcas vivas.
Onde quer que se instale o discurso analítico, encontraremos a criança como seu agente, quando de repente, ao se dar conta de sua presença (esvaziada enquanto essência), surge o objeto em sua ex-sistência como causa inspiradora, ali onde nada há.
A alegria de nosso trabalho, podemos pensá-la como marcada pela arte de produzir uma necessidade de discurso, é fazer avançar o sujeito por sua estrutura para alcançar a virtude que não absolve do pecado original, mas que leva à gaia ciência [gay sçavoir]. A virtude de não compreender, a do bem-dizer sobre aquilo que causa horror ao saber e pode tingir a felicidade comum. Para quê? Para fazê-lo passar pelo bom furo do que a cada um se oferece como singular. Como se lê em Extimidade (19), não dizemos que o Outro é alegre, porque o Outro não existe, e “nós” em “nosso trabalho” podemos sê-lo, com a condição de não dizer que descobrimos um saber, porque não há nada a descobrir, mas sim se constrói e se inventa.
É preciso localizar, em cada um, esse gozo não-todo que pode apontar para uma ética do singular, que se encontra no núcleo do sintoma e que, não segregado, mas lido de outro modo, permite um bem-dizer que inclua o fora de sentido e o fora do campo comum do universal. Uma orientação ao real implica essa vertente do inconsciente como real, onde o analista pode encarnar um suposto saber do gozo, desse resto que não faz história ou que não é história. Mas que, por não fazer comunidade, pode fazer laço quando, no discurso do analista, permite fazer-se suporte da letra como agente desse discurso que produz efeitos que ressoam no corpo e no programa de gozo de cada um.
Nesse sentido, faz-se necessária uma manobra que permita pescar o lugar de onde isso goza. Para isso, o analista orienta seu ato com uma dose de ousadia, essa coragem que se requer para cortar a infinitude do dito – que tende a deslizar como uma reta sem fim – e, então, que decante um dizer. Esta operação supõe uma leitura prévia do que se escreve no corpo, ali onde pode se inscrever um gozo que equivoca a escritura. Lacan assinala que não se trata de jogar com os equívocos, senão de desmistificá-los (20).
O real converte o corpo em uma caixa de ressonância, uma vibração em sintonia com lalíngua. O que importa aqui é intervir nesse gozo e fazê-lo emergir, dar corpo àquilo que se situa como fora do sentido, como um perturbador pedaço do real: uma modulação que equivoca um significante que toca e afeta lalíngua do corpo.
Inventar recursos para encarnar a “abjeção” do Um do gozo é um instrumento ético que pode propiciar uma torção. Essa topologia deve se manter durante todo o percurso analítico, e não apenas no final, quando o inferno de um gozo alcança uma torção no ponto da causa do desejo e da causa do dizer, como potência de contração e hiância entre sentido e gozo, entre enunciado e enunciação, entre o dito e o dizer, entre a palavra e a vociferação.
Laurent Dupont, em seu testemunho de passe, diz que, ao final da análise, o que restou fora de sentido, por meio da letra, foi a ressonância de lalíngua, que pôde produzir um efeito de riso. Esse efeito do real, como furo no sentido, diferente do gozo fálico articulado à frase que condensa o “entusiasmo” do fantasma, produz um gozo não-todo: “Posso estar só no caminho e rir à beira do vazio” (21).
A alegria, no entusiasmo lacaniano, é aquela que acompanha a ideia do objeto a como causa do desejo e letra de gozo. E por isso, como o santo, rir! Rir com outros!
(1)Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p 367
(2)Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p 361
(3) Gómez de Silva, Guido. Breve dicionário de la lengua espanhola (1998). México: FCE, Colmex. p. 45
(4) Brousse, Marie-Hélène. (2013). “Eldeseodelanalista” En, Freudiana 68, Revista Psicoanalítica en Barcelona Bajo Los Auspicios de La ELP. p. 82.
(5) Miller, J-A. (2018). La ética del psicoanálisis. En Del síntoma al fantasma. Y retorno. Paidós, Buenos Aires, p.144
(6) Miller, J-A. (1988). Lacan clínico. Matema II. Ediciones Manantial. Buenos Aires, p.132 (livre tradução),
(7) Lacan, J., Seminário livro 7, A ética da psicanálise, [1959-1960] (2008), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 23
(8) Lacan, J., Seminário livro 7, A ética da psicanálise, [1959-1960] (2008), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 51.
(9) Lacan, J. Seminário livro 7, A ética da psicanálise, [1959-1960] (2008), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 221
(10) Lacan J., Outros Escritos, Televisão, [1973] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.519
(11) Lacan J., Outros Escritos, Televisão, [1973] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 524
(12) Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.362-363
(13) Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 364
(14) Miller J.-A., Piezas Sueltas. Ciudad de Buenos Aires, Paidós (2013). p.71
(15) Miller J.-A., Respuestas de lo real, El sujeto, respuesta de lo real. Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller, [1983] (2024), Paidós, Buenos Aires. p 29-30
(16) Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.366
(17) Lacan J., Outros Escritos, Televisão, [1973] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.518
(18) Lacan J., Outros Escritos, Alocução sobre as psicoses da criança [1967] (2003), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.p. p.368
(19) Miller J.-A., Extimidad, La consistencia lógica de a, Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller, [1986] (2011), Paidós, Buenos Aires. p 466-468
(20) LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 133.
(21) Dupont, Laurent. In: https://shs.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2016-2-page-85?lang=fr