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O CORPO E O MAL-ENTENDIDO

SALA: FILHOS DO MAL-ENTENDIDO
O CORPO E O MAL-ENTENDIDO

 

“Já que me interrogam sobre o que se chama de estatuto do corpo, sublinho que ele só

se aprende a partir disso: o corpo só aparece no real como mal-entendido” (Lacan, J. O mal-entendido. Opção Lacaniana, n.72. São Paulo: Eólia, 2016, p. 10-11)

Relatores: Leticia Acevedo (EOL) – Tânia Martins (EBP)

Participantes: Agustín Barandiarán (La Plata), Anderson Barbosa (João Pessoa), Anna Luiza Almeida (Rio de Janeiro), Evelina San Martín (Chaco), Jimena Rivas (Lima), Jovita Lima (São Paulo), Luciana Bordas (San Juan), Luis Diego Baudoin (La Paz), Marcela Baccarini (Belo Horizonte), María Luján D´addona (Buenos Aires), Martha Idrovo (Santiago de Chile), Sandra Rebellón (Cali).

Introdução

No âmbito das Conversações Federativas fomos convidados a trabalhar a citação acima.

Dialogamos com quatro referências, escolhidas por seu potencial de tensionar e enriquecer os conceitos implicados. Nos organizamos em quatro subgrupos de três integrantes, cada um dos quais se encarregou de um dos temas. Essa dinâmica nos permitiu sustentar uma abordagem coletiva sem perder a singularidade de cada leitura.

A linhagem

Lacan alude, em diferentes momentos de seu ensino, à importância da linhagem na constituição subjetiva. Do que se trata fundamentalmente é da transmissão. No Seminário 5(1958) faz referência ao “escolher do sujeito” entre aspas, já que “…não é ele quem manipula as cordinhas do simbólico (…) a frase já foi começada, antes dele, por seus pais”[i].

Na Nota sobre a criança (1969) “…, destaca a irredutibilidade de uma transmissão… que é a de uma constituição subjetiva implicando a relação com um desejo que não seja anônimo.”[ii]

No Seminário 17, acrescenta que cada um deve se reconhecer no objeto (causa de desejo ou dejeto), aborto daquilo que foi para aqueles que o engendraram. Na “Conferência de Genebra” (1975), ressalta a importância do desejo, as consequências de sua ausência, e introduz as marcas no sujeito das palavras em torno desse desejo. Cinco anos depois, o “corpo como fruto da linhagem já nadava no mal-entendido tanto quanto podia”[iii].

Esse percurso é interessante já que nos introduz ao conceito de lalíngua, Lacan diz: “A linguagem, sem dúvida, é feita de lalíngua. É uma elucubração de saber sobre lalíngua.”[iv]

E o falasser está banhado de significantes marcados pelo equívoco próprio da entrada na linguagem, pela inadequação entre fala e gozo. Lalíngua é o resultado desta inadequação em cada falasser.

Em “O inconsciente e o corpo falante”[v], Miller propõe que o corpo, recortado pelo significante, torna-se superfície de inscrição  do Outro. Lalíngua, transmitida em primeiro lugar pela mãe, como um enxame de S1 sem ordem, deixa marcas de gozo que o sujeito tenta recobrir com o fantasma e os discursos disponíveis. Porém, sempre fica um resto opaco, um gozo que não cessa de não se escrever, e cujo retorno se manifesta como um acontecimento de corpo.

Carolina Koretsky em seu testemunho[vi] afirma, “Sou uma traumatizada da língua”, um trauma “inocentemente” produzido pelo fato de ter sido falada, de ser um falasser. “Essa língua que nos exila e mortifica e que, ao mesmo tempo, nos faz palpitar”.

Duas frases “irremediáveis da mãe” deixam marcas: a primeira, “devemos estar prontos para partir, mas não sabemos quando”. O peso do significante “partir” produz nela, hiperatividade, agitação no corpo, bem como o sintoma fóbico relativo ao personagem do filme ET. A segunda, uma marca inexorável no corpo, diz respeito à história de seu nascimento. O risco de vida anunciado e ligado à possibilidade de nascer prematuramente, produz a frase materna “eu falei com você a noite inteira e você quis viver”, dito que foi interpretado por Koretzky como “para viver é necessário que falem comigo”, um sintoma, pôs-se em forma: a obstinação de fazer o outro falar, bem como a angústia e o desamparo diante do silêncio.

“Não podemos esgotar o mistério do corpo falante nem apreender todos os efeitos da língua. Nós nos aproximamos deles, os contornamos e assumimos a responsabilidade pelo peso dado a certas marcas”[vii].

Não há relação sexual, não há relação linguística

O falasser se reparte em dois falantes que não falam a mesma língua, que se conjuram para a reprodução a partir de um mal-entendido estrutural. Este é inerente ao fato de que lalíngua afeta o corpo e tem uma finalidade distinta da comunicação e do diálogo.

Esta lalíngua, nos diz F. Otoni Brisset participa na trama das formações do inconsciente, de seus equívocos. Pergunta-se: “Como falar no ENAPOL essa língua que se fala em análise?” É a criança que vive no corpo falante, presença que fala de uma experiência inesquecível e insondável. Em uma análise trata-se disso, seja qual for o tamanho do falasser”[viii]

Como é que lalíngua afeta o corpo?

Em Piezas sueltas, Miller cita Lacan quando diz que: “… lalíngua é, para cada um, algo recebido e não aprendido. É uma paixão, sofre-se dela”.[ix] As marcas sobre o corpo serão o resultado do que se transmite no encontro entre lalíngua e o corpo.

Nessa linha, Miller localiza o que ele chama de “a mais íntima palpitação da experiência analítica”, isto é, quando a palavra perde sua função de comunicação, informação e transformação para “não ser nada além da palpitação de um gozo”.[x] Nesse sentido, estamos diante do sujeito sem o Outro, situado por Lacan em Joyce e sua posição de desabonado do inconsciente.

Miller estabelece então uma analogia que nos interessa quando afirma que “não há relação sexual” pode ser pensado como “não há relação linguística”.

Trauma

Aqui, destacamos a noção de trauma ligada ao mal-entendido. Podemos nos perguntar então: De que mal-entendido se trata?

Na Conferência “A língua familiar”, pronunciada na abertura do VIII ENAPOL, “Assuntos de família”, por Miguel Bassols, temos “ocorre um mal-entendido radical entre a língua amorosa e terna dos adultos, que querem, sem dúvida, o melhor para seu rebento, e a língua do gozo infantil, que interpreta esse amor como um gozo impossível de assumir, como uma sedução imperdoável e finalmente traumática”[xi]. “Trauma não existe outro: o homem nasce mal-entendido”.[xii]

Entender ou não entender passaria por esse sentido que tenta aprisionar algo sem sentido do corpo traumatizado, sabendo que esse sentido é apenas um engano, um engano necessário para contornar o que insiste como real aí.

No testemunho de Kuky Mildner[xiii], nos orienta o momento em que o fantasma começou a delinear-se: repete a frase familiar, “a tua mãe te tem como numa caixinha de cristal”, foi interrogando-se sobre esta, que pode tirar-lhe um pouco do amor ao qual ela se mantinha atada. Diz “estar em uma caixinha de cristal, trancada, ajustada e, sobretudo, me olham desde fora”.

Uma experiência de separação máxima entre corpo e palavra, uma lembrança se produz: tinha bronquites de repetição até que um enfermeiro se negou a dar-lhe uma injeção e disse: “Essa bebê o que necessita é de ar…leve-a a passear todos os dias…” Estas frases fizeram às vezes da função paterna: “isso é o trauma- nomeou o analista”. A falta de ar, os pulmões cheios, tinha sido a resposta diante do impacto do desespero materno. A partir dessa localização, essa angústia se alivia e desaparece o sintoma claustrofóbico.

Sobre o trauma fundamental estava construído o fantasma e sua mascarada, o caminho para o final começava…

Sabemos que não há língua comum, até o final Kuky se dá conta, a partir de um sonho, que do que se trata é do encontro com sua língua, sobre a que teria que escrever, da qual o analista já não fazia parte. Isso facilitou a despedida.

Inconsciente e falasser

Lacan, no Seminário 23 assinala que diferentes objetos ocupam as hiâncias cujo suporte imaginário é o corpo, em  contrapartida, o gozo fálico se situa na conjunção do simbólico com o real, isto na medida que “no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser”[xiv].

Miller diz que “analisar o falasser é o que já fazemos”[xv]. “O ser de que se trata não precede a fala É o contrário, é a fala que outorga o ser a esse animal por um efeito a posteriori e desde então, seu corpo se separa desse ser para passar para o registro do ter. O falasser não é o corpo, ele tem”[xvi].

Mildiner, faz referência ao acontecimento do nascimento de sua filha quando ao recebê-la sussurra: “Benvinda preciosa, vais ter o dom da palavra”, e se pergunta: De onde saiu este dizer? O que falou de mim? De onde?[xvii]A resposta a estas perguntas implicou em situar na análise o lugar de sua relação natal com o gozo, o modo em que um real entra em sua análise, ou com a forma em que se transmite o gozo.

Pensar a chegada ao mundo de uma criança, como objeto desejado pelos pais, é pensar em duas línguas, que ao não copularem impactam o ser vivente para marcá-lo, deixando uma marca indelével, marca de gozo que captura o corpo, acontecimento de corpo, frente ao qual cada um armará sua própria novela, ficção, delírio, via o enodamento real, simbólico e imaginário.

Apesar desse esforço de bordear simbolicamente esse acontecimento de corpo,  é imposto ao falasser armar respostas ao traumatismo da lalíngua, respostas que são diversas e sintomáticas. Não se trata de uma tradução ou transformação, mas de um caminho em uma análise para situar a letra de gozo.

O esforço dos testemunhos de passe é de tornar legível esse indizível do troumatisme que faz corpo e que não é sem um resto, desse ponto de incomensurável. “O testemunho é um relato que reverbera o intratável do qual ele trata, a preservação desse vazio no relato é o que leva a comunidade analítica ao trabalho, graças a essa fuga do real”[xviii].

Conclusão

O percurso nos permitiu abordar o status do corpo, este longe de ser um dado biológico, aparece no real como efeito de um mal-entendido estrutural: o encontro entre lalíngua e o corpo deixa uma marca de gozo que o sujeito tenta recobrir.

Os testemunhos de passe mostram como essa marca se inscreve em frases, cenas e modos de gozar, e como a análise possibilita uma invenção singular para fazer aí… com isso. Assim, falar com a criança implica alojar o falasser em sua maneira única de habitar um corpo atravessado por lalíngua.

 


[i] Lacan, J., “Os três tempos do Édipo”, O Seminário, Livro5, As formações do Inconsciente, Rio de Janeiro, Zahar,1999, p.192.

[ii] Lacan, J. “Nota sobre a criança”, Outros Escritos, Rio de janeiro, Zahar, 2003, p.369

[iii] Lacan J., “O mal-entendido”, “Nos confins do seminário”, Zahar, Rio de janeiro, 2022, p.87

[iv]  Lacan J., “O rato no labirinto”, O Seminário, livro 20, “Mais, ainda”, Rio de janeiro, Zahar,1982, p.190.

[v] Miller JÁ, “O Inconsciente e o Corpo Falante”, Scilicet O Corpo Falante, Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2016, p.25.

[vi] Koretsky. C. “Desvelar a Rasura, Texto apresentado no XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, na Plenária Conferências dos Analistas da Escola, em São Paulo, no dia 10 de novembro de 2024.

[vii] Ibid., p.120.

[viii] Argumento do ENAPOL

[ix]Miller, J.-A., (2004-2005) Piezas sueltas, Buenos Aires, Paidós, p. 75.Tradução nossa.

[x] Miller, J.-A., (2006-2007) El ultimísimo Lacan, Paidós, Buenos Aires, 2013, p. 76. Tradução nossa

[xi] Bassols, M., A língua familiar, Opção Lacaniana n° 79. São Paulo: Eolia, 2016, pág. 46.

[xii] , Lacan, J., “O mal-entendido”, “Nos confins do seminário”, Zahar, Rio de janeiro, 2022, p.87.

[xiii] Mildner, K. “Primer Testimonio”, Saber Hablar, Revista Lacaniana de Psicoanálisis 19, Buenos Aires, Grama, 2025, p.119. Tradução nossa.

[xiv] Lacan, J. “Do nó como suporte do sujeito”. O seminário, livro 23, O Sinthoma, Zahar, Rio de janeiro, 2007. P.55.

[xv] Miller, J. -A., “O Inconsciente e o Corpo Falante”, Scilicet O Corpo Falante, Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2016, p.26.

[xvi] Ibid

[xvii]Mildiner K., “Primer Testimonio”, Revista Lacaniana de Psicoanálisis, óp. cit., p.119. Tradução nossa.

[xviii] Koretsky, C. Testimonio de pase, desvelar a rasura, óp., cit.,  p.111