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ME DIVIRTO!

SALA: NÃO EXISTE GENTE GRANDE
ME DIVIRTO!

“Tenho sempre cinco anos” (Jacques Lacan)

“Todos sabem que sou alegre, dizem até moleque: eu me divirto (…). É verdade. Não

sou triste. Ou, mais exatamente, só tenho uma tristeza, naquilo que me foi traçado como

carreira: é haver cada vez menos pessoas a quem eu possa dizer as razões de minha

alegria, quando as tenho” (Lacan, J. “Alocução sobre as psicoses da infância”. Outros

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 361).

Relatores: Alessandra Pecego (EBP) e Flory Kruger (EOL)

Participantes: Adriana Dolengiewich (Mendoza), Alejandro Góngora (Santiago de Chile), Fernanda Carvalho (São Paulo), Giselle Cardozo (Caracas), Guacira Cavalcante (Salvador), Ishtar Rincón (Maracaibo), Jussara Jovita da Rosa (Florianópolis), Livia Beatriz Pereira (Rio de Janeiro), Martina González Arufe (Buenos Aires), Sebastián Zurita (Buenos Aires), Violeta Paolini (Bariloche), Yndira Parra (Maracaibo).

O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho,

com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária.

Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago,

de proteção, e logo novo senso de esperança:

ao não sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se –

certo como o ato de respirar – o de fugir para um espaço em branco.”

“As margens da alegria”, de Guimarães Rosa

1. A criança, o gozo e a alegria

Este relatório é o resultado de uma pesquisa realizada por 12 membros das 3 Escolas da América Latina, a NEL, a EBP e a EOL. O conjunto dos textos aqui analisados nos permitirá extrair pontos em comum e aprofundar a seguinte frase de J. Lacan, proposta para a realização deste trabalho:

“Tenho sempre cinco anos”. “Todos sabem que sou alegre, dizem até moleque: me divirto. […] É verdade. Não sou triste. Ou, mais exatamente, só tenho uma tristeza, naquilo que me foi traçado como carreira: é haver cada vez menos pessoas a quem eu possa dizer as razões de minha alegria, quando as tenho”[i].[1]

Esta frase de Lacan: “eu tenho sempre cinco anos” não remete para uma infantilização ingênua, mas para uma orientação ética que atravessa seu ensino: a de sustentar o infantil como uma dimensão estrutural do sujeito.

Essa posição, que está articulada com o tema do XII ENAPOL “Falar com a criança”, mobiliza uma série de questões clínicas, teóricas e políticas sobre o estatuto da criança, do gozo, do trauma e da alegria, em relação à experiência analítica.

A criança não é um sujeito de ordem cronológica, trata-se de uma questão estrutural: um modo de ser atravessado pela lalangue, pela demanda e pelo gozo.

Se explorarmos o conceito de adultus a partir de sua etimologia – termo que poderia muito bem substituir o título que nos convoca, “gente grande” – e o contrapor ao “adulterado”, podemos deduzir que, na psicanálise, não há completude, não há  ser adulto.

A criança é “o pai do homem”, dizia Freud, indicando que o fundamento da neurose é infantil. A castração, como operação estruturante, marca essa adulteração constitutiva.

No processo de uma análise, o sujeito retorna a essa posição infantil, onde a demanda e o desejo se fundem em uma exigência sem mediações. De tal forma que o infantil não é um estágio a ser superado, mas uma condição que persiste como um modo de gozar e de habitar a linguagem.

2- Trauma, lalangue e o gozo

Em consonância com essa tese estrutural, o trauma inaugural se situa como um acontecimento de gozo: o momento em que o significante toca o corpo e o mortifica. Essa experiência não se apaga, mas funda uma relação sintomática com o gozo que persiste na vida do sujeito. Seguindo essa linha, vemos como o infantil reaparece como ponto de fixação do gozo e como uma análise pode conduzir à disjunção do sujeito com esse objeto que o fixa. O infantil é o ponto de enodamento entre corpo, gozo e significante.

O que encontramos na clínica atual, articulando esses três conceitos, são crianças sem bordas e adultos desorientados, uma época em que a função paterna está debilitada e a criança muitas vezes fica como mestre, objeto de um Outro que não sabe o que fazer.

Época de queda dos ideais, em que as crianças muitas vezes se encontram sozinhas diante do gozo e em que os adultos não encarnam funções de limite ou transmissão.

Esse tipo de desarranjo dentro da estrutura familiar é que produz diversos sintomas nas crianças e efeitos de desorientação nos adultos.

Nesse contexto, a psicanálise tem a responsabilidade de oferecer um lugar onde seja possível uma invenção subjetiva, um laço com o Outro que não se sustente, nem na moral, nem no diagnóstico, mas no desejo.

3- A alegria como prova do desejo

A dimensão da alegria, longe de se situar como um simples afeto, apresenta-se como um efeito do saber fazer com o gozo. Para Lacan, a alegria é uma consequência do ato analítico, da subversão do sentido e da relação viva com a lalangue.

Freud também vincula a alegria à liberação do reprimido e a um retorno lúdico às formas primitivas da linguagem. Lacan se pergunta: “Que alegria encontramos naquilo que constitui nosso trabalho?” e a vincula à transmissão do desejo, tanto na prática analítica, quanto no ensino. Não há alegria sem gozo, mas também não há alegria sem o trabalho de subjetivação que o relança.

4- O sintoma como invenção singular.

A clínica do passe permite observar como o curso de uma análise modifica a posição do sujeito em relação ao seu sintoma e ao seu gozo. Não se trata, na análise, de eliminar o infantil, mas de produzir uma separação em relação ao seu lugar no fantasma. O fim da análise não apaga o passado, mas produz uma travessia do infantil, uma releitura do gozo que o fixava a uma invenção em relação ao seu sintoma que permite alojá-la de outra maneira.

Essa invenção não passa pela compreensão, mas por uma operação com a lalangue, que permite a cada um assumir sua singularidade no dizer. É aí que se joga a alegria como efeito do encontro com uma satisfação que não é da ordem do sentido.

A travessia do fantasma não é a eliminação do infantil, mas sua separação em relação ao lugar imaginário que ocupava; é a verificação da mentira contida na estrutura fantasmática que a sustentava como verdade.

Os testemunhos de passe transmitem a experiência que cada analisante pôde atravessar em sua análise, revelam narrativas inéditas e os diversos modos que cada um encontrou para lidar com o real em jogo.

Surge a pergunta: como encontrar a satisfação e a alegria, como ressalta Lacan, quando o infantil que se apresenta à análise é da ordem do trauma?

Ao fazer um breve levantamento dos testemunhos de passe, o que encontramos são cenas, passagens, significantes de uma experiência infantil marcada por dificuldades, angústia e terror.

Recordemos o testemunho de Silvia Salman e seu relato sobre o dano materno, provocador de um sintoma que perdurava desde a infância, uma anorexia como marca da relação mãe-filha e que circunscrevia o curto-circuito entre o objeto oral e a demanda.

Ou, ainda mais, o passe de María Cristina Giraldo[ii][2], onde ela descreve as tentativas do Outro materno de suprimir seu gozo autoerótico — o de chupar os dedos para dormir — imobilizando seus braços.

Podemos encontrar passagens que trazem explicitamente lembranças da criança como sintoma do casal parental, como no caso de Graciela Brodsky[iii][3], filha única, “ser a única”, mas também ser “a excluída da festa alegre dos pais” e, por isso, do gozo do Outro.

Ou o de Débora Rabinovich[iv][4], que em meio à briga do casal, para negar a existência de outra mulher, passou a sustentar um “não sei” que a acompanhou por toda a vida.

Também podemos lembrar as experiências traumáticas que incluem o real do corpo e as intervenções na infância, tratadas nos testemunhos de Ram Mandil[v][5] (EBP), com o insuportável de um corpo com um “saco vazio”, ou no corpo submetido a diversas internações desde os três anos e meio, como no caso de Sergio Laia[vi][6] (EBP).

Em todos esses testemunhos encontramos as soluções, as saídas singulares, os circuitos pulsionais, que demonstram o que uma análise pode fazer em seu limite.

Miller, em “Como terminam as análises”, dirá que, na verdade, frequentemente, o que observamos no passe é a tragédia, mas também há a comédia oculta.

A tragédia estava antes, e a passagem só terá sentido se a tragédia ficar no passado, para que ali se possa inventar, alegremente, uma pequena comédia. Com o pior, é preciso produzir o riso[vii].[7]

Esses testemunhos dos AEs demonstram isso, pois eles conseguiram encontrar soluções que lhes permitiram recuperar, em vez da angústia, um tipo de alegria infantil.

Com isso, finalmente, sustentamos a hipótese da alegria do infantil no final da análise, quando se verifica a passagem de um inconsciente transferencial produzido em análise para um inconsciente real, no qual “se extingue o sentido da verdade e da mentira”[viii][8].

Lacan nos assegura o encontro com uma satisfação que marca o fim. A alegria diante da transformação do sintoma, que possibilita uma nova solução: a de saber fazer com ele.

Então, podemos dizer que a alegria da criança, aquela que Lacan, o moleque de cinco anos, conseguiu encontrar, é recuperada através do nosso trabalho como analistas.

6- Um real que não envelhece

A frase “não há gente grande” também pode ser lida como uma afirmação sobre a atemporalidade do inconsciente. As marcas da castração e do trauma não esperam a idade adulta para se expressar: estão sempre ativas. Por isso, o infantil não é o que se supera, mas o que retorna como marca, como resto, como nó.

Conclusão

A frase “não existe gente grande” deve ser lida como uma provocação e como uma orientação. Provocação porque subverte os ideais de amadurecimento, de normalização, de evolução linear do sujeito; e orientação porque convida a ouvir o sujeito em sua dimensão mais radical: a de seu gozo, sua singularidade, seu modo de falar e de ser falado pela lalangue.

Nesse sentido, a psicanálise não busca curar nem educar, mas acolher a palavra do sujeito, lá onde não há sentido, mesmo onde há puro equívoco. A alegria, então, é o sinal de que essa operação foi possível: que o sujeito conseguiu separar seu ser do sentido do Outro, que pôde assumir seu modo de gozar, que pôde construir um estilo próprio.

O infantil, entendido como estrutura, não é superado, nem educado: é assumido, reinscrito, alojado de outra forma. A análise permite essa passagem do infantil como sintoma, ao infantil como causa, como ponto de invenção. E isso produz, de fato, alegria.

A aposta da psicanálise, em tempos de declínio dos ideais, de perda das funções simbólicas e de novas configurações familiares, é sustentar a escuta do sujeito, promover a invenção singular, alojar o gozo sem moral e sem pedagogia. E fazê-lo com alegria.

Assim, podemos afirmar que “não existe gente grande” porque não há um fim definitivo para o sujeito do inconsciente: há, sim, uma possibilidade de reinvenção, de alojamento, de saber fazer. E essa possibilidade é o que sustenta nossa prática.

A alegria, então, não é apenas um afeto, mas o sinal de que o sujeito conseguiu fazer algo com seu gozo, transformar o sintoma em sinthome e encontrar um caminho singular de satisfação. É a alegria daquele que atravessou seu fantasma e conseguiu alojar o infantil, sem ser capturado por ele.

A psicanálise não busca curar a criança, mas falar com ela, abrir um espaço onde seu gozo possa ter lugar, onde sua palavra possa ser escutada, onde sua invenção seja possível. Esta é a aposta ética que articula esta investigação e que o discurso analítico tem como tarefa sustentar.


Bibliografia 

Brousse, M.H. (2017). “Violencias en las familias. Pegar y ser pegado”. Bitácora Lacaniana, revista da NEL. Grama edições.

Fryd, A. (2019). “El muro del Infantilismo” em El factor infantil N° 26. Grama Edições.

Lacan, J. (2008). O Seminário, Livro 4 “A relação de objeto” (1956-57). Paidós.

Lacan, J. (2008). O Seminário, Livro 17 “O reverso da psicanálise” (1969-70). Paidós.

Lacan, J. (2007). O Seminário, Livro 20 “Ainda” (1972-73). Paidós.

Laurent, E. (2006). “Os sinais do gozo”. Buenos Aires: Paidós.

Laurent, E. (2015). “Patologias da identificação”.

Miller, J.-A. (2010). “A fuga do sentido”. Em Revista Lacaniana.

Miller, J.-A. (2005). “Como terminam as análises”.

Paolini, V., Zurita, S., Parra, Y., Dolengiewich, A., Carvalho, F., Cardozo, G., Cavalcante, G., Rincón, I., Jovita da Rosa, J., Pereira, L., Gonzalez Arufe, M., Góngora, A. Textos apresentados no âmbito do Grupo de Pesquisa do XII ENAPOL. (2025).

[i] Lacan, J. “Alocução sobre as psicoses da infância”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 361

[ii] Primeiro testemunho de Maria Cristina Giraldo: A voz opaca.

[iii] Primeiro testemunho de Graciela Brodsky. Em: “A ordem simbólica no século XXI – coletânea de textos do VIII congresso mundial de psicanálise – AMP. Rio de Janeiro, Subversos, 2013.

[iv] Testemunho de Debora Rabinovich. Em: Revista Lacaniana de Psicoanálise. Cidade Autônoma de Buenos Aires, ano XIII, número 25, 2018.

[v] Testemunho de Debora Rabinovich. Em: Revista Lacaniana de Psicoanálise. Cidade Autônoma de Buenos Aires, ano XIII, número 25, 2018.

[vi] Testemunho de Sergio Laia. In: “Aposta no passe”. Rio de Janeiro: Contra capa, 2018.

[vii] MILLER, J-A. “Como terminam as análises: Paradoxos do passe.” Olivos: Grama edições, 2022. p.145.

[viii] MILLER, J-A… [ et al]. “Aposta no passe”. Rio de Janeiro: Contra capa, 2018, p. 77.