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Nada. Ninguém.[1]

Eugenia Serrano[2]

Gosto dessas frases de Freud tão prudentes, judiciosas, antigas, envelhecíeis:
As inumeráveis particularidades da vida amorosa humana são restos da infância.
A ternura materna é sexual.
É a latência que entrega todas as crianças à perversidade.
O amor não tem objeto.
A pulsão sexual é anormal (não normatizada)
(…)
Uma espécie sexuada, pode dizer nós?
Não. Nunca.” [3]

Agradeço ao Charly por ter me aproximado dessa referência tão bonita.

A festa freudiana

Para mim, sempre é uma festa voltar a Freud. Os anos passam e esse banquete nunca me decepciona. Às vezes penso que se trata do que ele diz; outras, simplesmente creio que o segredo do que me captura está na forma como ele diz o que diz.

Encontrei algo bonito de Jacques-Alain Miller há um tempo, uma pequena anedota escondida em uma conferência sua sobre um tema que não deixa de ter ressonâncias com o que nos convoca aqui hoje. Miller se pergunta, naquela oportunidade, se a violência infantil é um sintoma, e diz que, para poder se orientar, se dirigiu à Freud: “Quis me assegurar da definição freudiana de sintoma”[4]. Vou insistir para dar a essa história todo o seu peso. É o mesmíssimo Miller dizendo que retorna a Freud para ter certeza de sua definição de sintoma? Sim, é. Isso não comove vocês?

Não são necessárias desculpas para participar de uma boa festa, e se a festa é freudiana, como nos ensina Miller, o motivo pode ser o sintoma ou, como neste caso, o fator infantil. Mas acredito que há algo mais nesta anedota. Vou dizer assim: a festa de Freud tem algo de reencontro com um velho amigo – a gente já conhece suas manhas, as músicas que não podem faltar, as voltas repetidas de algumas conversas, etc. No entanto, nesse cenário de intimidade conhecida, inclusive no seio mesmo dessa familiaridade, algo inédito, algo impensado pode surgir.

O fator sexual

Freud se deparou desde muito cedo em seu percurso com o estatuto problemático da satisfação. Aquilo que deveria ser vivido como satisfatório, podia adquirir um caráter desprazeroso e vice-versa, e o que era efetivamente satisfatório se apresentava como fracassado, insuficiente. Miller assinala que Freud expressa isso muito claramente em seu texto “O mal estar na cultura”: “há algo que torna o homem incapaz de uma satisfação completa, há algo podre no reino do gozo”[5]. Por outro lado, ele muito rapidamente localizou o caráter traumático da sexualidade para o ser falante. Em sua escrita, é possível perceber o esforço para situar as razões pelas quais a sexualidade advém traumática a tal ponto de requerer uma resposta defensiva.

Foi uma vivência precoce passiva! Não, não! Foi ativa com ganho de prazer! Nem ativa, nem passiva, é a prematuração! Não foi uma vivência, é a fantasia! Talvez a noção de excedente posterior à puberdade! Enfim.

No entanto, como nos recordam na Revista Lacaniana 26 e retoma Irene em um dos textos de orientação para este ENAPOL, Freud também disse em uma Carta a Fliess o seguinte: “À pergunta: o ‘que aconteceu nos primórdios da infância’? a resposta é: ‘nada’. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá”[6].

O gérmen infantil

Embora eu me declare absolutamente fã dos Três Ensaios – um dos meus textos preferidos de Freud, sem dúvida –, acho que nunca havia lido a Conferência Número 20, intitulada – “A vida sexual dos seres humanos”. Como faço parte do grupo de hereges que marca os livros sem nenhum tipo de pudor, posso reconhecer rapidamente o que li e o que não.

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade é de 1905; “A vida sexual dos seres humanos”, de 1917. Na conferência mencionada, ele retoma de maneira um pouco condensada o que desenvolveu no seus Três Ensaios. Talvez seja essa condensação, que o faz avançar muito mais rápido, que me permitiu situar a sequência que quero compartilhar com vocês hoje.

Há uma dialética no texto que me interessa cernir. São três movimentos freudianos que me interessa isolar, três operações sobre o que, na edição de Ballesteros, foi traduzido como “desvios sexuais”.

Então, primeiro movimento. Os desvios/perversões sexuais são mais normais do que se pensa, não há nada de estranho neles. O ponto de partida de Freud é clínico, ele constata que no coração dos sintomas neuróticos se ocultam todo tipo de satisfações sexuais. Freud normaliza – para dizer de maneira mais atual – “despatologiza” as perversões ao sintomatizá-las.

Eu disse que os sintomas neuróticos são substitutos da satisfação sexual [pag.305] e lhes indiquei que a confirmação desta assertiva pela análise dos sintomas viria a defrontar-se com numerosas dificuldades. Pois somente será válida se na ‘satisfação sexual’ incluirmos a satisfação daquilo que se chama necessidades sexuais pervertidas, de vez que, com frequência surpreendente, se nos impõe uma interpretação de sintomas dessa espécie.[7]

Com o segundo movimento, ele dará um passo além que é bem conhecido por nós. Freud nos indica que as inclinações perversas têm suas raízes na infância:

“A sexualidade pervertida não é senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados”. “Esta semelhança, contudo, é evidente: se de fato uma criança tem vida sexual, esta não pode ser senão uma vida sexual de tipo pervertido; pois, exceto quanto a alguns detalhes obscuros, as crianças são desprovidas daquilo que transforma a sexualidade em função reprodutiva”. “Os senhores estão cometendo o erro de confundir sexualidade com reprodução, e com isto estão bloqueando seu caminho para a compreensão da sexualidade, das perversões e das neuroses.”[8]

Ressalto, de passagem, que este é um tema extremamente atual, se levarmos em conta algo que Miller mencionou há alguns anos ao caracterizar o século XXI, entre outras coisas, como atravessado pelo empuxo ao pornô. Há uma nova maneira, eu diria, de confundir a sexualidade infantil não mais com a reprodução, mas com a dimensão do ato sexual. Isso traz grandes dificuldades para quem trabalha com crianças pequenas, e abre toda uma problemática que é a da clínica do ato antes da puberdade, que convém interrogar a cada vez.

Resta situar o terceiro movimento. Para isso, remeto-os à Conferencia 23 – “Os Caminhos da Formação dos Sintomas” – essa, sim, eu tinha totalmente marcada—onde Freud desenvolve suas séries complementares. Este terceiro passo sintetiza os anteriores. Vou retomá-los:

Primeiro movimento: no coração do sintoma, a satisfação é perversa. Segundo movimento: a infância perversa e polimorfa. Terceiro e último: a satisfação perversa no sintoma têm sua raiz na infância.

Nada. Ninguém.

O retorno de Lacan a Freud é um retorno de depuração. Se Freud disse “o fator infantil”, com Lacan poderíamos até prescindir do infantil e ficar apenas com o fator, poderíamos, inclusive, nos contentar com a palavra gérmen. Penso que gérmen é uma palavra muito boa, contém certa equivocidade, tem a potência do que se propaga, do que infecta, para o bem ou para o mal.

Entre os cinco e sete anos, um menino é visitado por uma fantasma que vinha do quarto dos pais. O movimento era preciso, vinha de lá e o sujeito a esperava aparecer. Ele a via se aproximar, assustado, até que ela chegava à sua cama e, nesse momento, de medo máximo, cobria-se com as cobertas. Escapava por pouco, mas permanecia coberto e enclausurado. O grito ficava engasgado, sem pedir ajuda. O menino sabia que todas as noites a fantasma viria e com ela, o medo.[9]

Uma menina de cinco anos observa a mãe se arrumar em frente ao espelho. O telefone toca e ela atende. Do outro lado da linha, uma voz feminina diz o nome da menina e se apresenta como a namorada do pai. A pequena sujeito não sabe quem desligou a chamada. De volta com a mãe, esta lhe pergunta quem era. A resposta não demora, a menina responde: “Não sei, ninguém”.[10]

Certamente vocês conhecem bem estes fragmentos, foram extraídos dos testemunhos de Alejandro Reinoso e Débora Rabinovich. Em ambos, recorta-se a presença ominosa do feminino. No primeiro, a coisa dura três anos; no segundo, apenas o tempo de dizer uma frase curta. Em ambos os casos, podemos gritar: bingo! “Fiquei ali fixada”, relata Débora; “Não havia escapatória”, afirma Alejandro.

Agradeço a Reinoso pela luz que lançou sobre minha clínica cotidiana ao chamar seu fenômeno de “minha pequena alucinação infantil”. Toda vez que discuto com alguém que quer diagnosticar uma criança pela presença isolada de uma alucinação, cito o seu caso. Por outro lado, que ele a chame de “pequena” tem toda uma ironia. Mas agora, que me atrevo a colocar o fragmento de Debora junto ao de Alejandro para esta noite, percebo que, na verdade, a voz no telefone tem um caráter similar.

Esse nada.

Esse ninguém.

Um gérmen.

Um fator em torno do qual é possível inventar-se uma vida.

Tradução: Camilla Baratto
Revisão: Paola Salinas


[1] Texto apresentado na Preparatória da EOL em 15/05/2025.

[2] Membro da EOL/AMP.

[3] Quignard, P. Complementos a la teoría sexual y sobre el amor. (2024) Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2025. p. 181.

[4] Miller, J-A. Crianças violentas. Opção lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 77, ago. 2017, p.24.

[5] Miller, J.-A. Los divinos detalles. Buenos Aires: Paidós, 2010. p.29. Tradução nossa.

[6] Cf. Freud, S. Carta 101. (3 e 4 de janeiro de 1899). In:__ Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V.I. Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 296.

[7] Freud, S. Conferência XX. A vida sexual dos seres humanos. (1916-1917). In:__ Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V.I. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.313.

[8] Ibidem, p. 316;321;317. N.T: Embora a citação esteja em um parágrafo único, salientamos que se refere a trechos de páginas distintas.

[9] Reinoso, A. Oüir. Freudiana, Barcelona, n.88, p. 124-125, 2020. Tradução nossa.

[10] Rabinovich, D. Mi mentira, mi fixión, Revista Lacaniana de Psicoanálisis, Buenos Aires, n.23, p.84, out. de 2017. Tradução nossa.