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O ESTATUTO DO TRAUMA*

Jacques-Alain Miller

Para animar este esforço de seguir passo a passo – que, da minha parte, trata-se de um esforço de precisão – já posso delinear uma grande perspectiva a partir desta pergunta relativa ao estatuto do trauma. A linha clássica – essa que, na psicanálise, acredita-se ser ortodoxa – consiste em procurar a ferida antiga, em pensar o trauma absolutamente dentro da ordem da diacronia, dentro da ordem do que ocorreu anteriormente ao indivíduo, em algum momento. Isso leva a uma indagação diacrônica que situa em primeiro plano a rememoração. Não há dúvidas de que a abordagem de Lacan, que ele nos fez ver em Freud, consiste, ao final, e não de imediato, em tratar o trauma como um trouma – é um neologismo dele – o qual implica não combinar o trauma sexual com a diacronia, mas sim com a sincronia. Quando, no fim de seu ensino, ele chega a formular que não há relação sexual, brinda-nos com a fórmula sincrônica do trauma. Eis a versão última do trauma sexual em Lacan: Não há relação sexual. De algum modo, isso nos dá o axioma dos traumas e não nos permite saber quando, como, nem com quem o trauma se produziu ou se produzirá, mas nos assegura que o haverá e que, em qualquer caso, o há. Não há relação sexual significa que, em qualquer caso, não há boa relação do sujeito com a sexualidade. De qualquer encontro inicial com a sexualidade, o sujeito só pode falar sob a forma do mal encontro, mesmo que nele, esteja especialmente exaltado. Não é necessário que esse encontro tenha um tom de “repugnância e medo”. Se parecer exageradamente excelente, os próximos encontros sempre serão falhos em comparação a  esse. O não há relação sexual diz que, em qualquer caso, há um ponto traumático e que, na dimensão da sexualidade, o sujeito avança aos tropeços.

A ideia de uma história da sexualidade não tem como nos atingir. Se há uma história da sexualidade, isso se deve ao fato de que, ao não haver relação sexual, em seu lugar, há invenções sociais dessa relação – e, no interior destas, o sujeito deve se situar, fazer sua pequena invenção própria, que geralmente está defasada em relação à invenção social. Quando coloquei ênfase na arqueologia religiosa da psicanálise em Foucault, em oposição à arqueologia científica da psicanálise – que é a de Lacan – replicaram-me que se tratava menos de religião do que de prescrição. Mas essa é toda a questão: quando se trata da sexualidade, sempre nos colocamos nas mãos das prescrições do mestre. Em todo caso, sempre há um mestre que prescreve o que deve ser a relação sexual, justamente, sob o fundo desse Não há.

O axioma Não há relação sexual explica o que tão bem se observa e se constata na experiência analítica, o que podemos caracterizar como uma desproporção entre a causa e o efeito (por razões de estrutura, quando há desproporção, a causa está em jogo). O que vemos na relação de causalidade é que há, precisamente, uma falta de proporção entre a causa e o efeito – em cada canto da experiência analítica, encontramos essa desproporção. O que faz com que o sentido comum desconfie dos relatos da experiência é, por exemplo, o seguinte: por que o fato de ter me deitado na cama de meu pai poderia ter arruinado para sempre minha sexualidade, enquanto para alguém isso ocorreria por ter se deitado na cama de sua mãe e, para outro, por ter visto seu pai ou sua mãe nus, ou ainda por jamais havê-los visto nus? Para alguém, ter sido acariciado; para outro, jamais ter sido. Isso nos ilustra o que há de inapreensível na relação entre a causa e o efeito, quando o que está em jogo é a dimensão sexual, tal como se capta na experiência analítica.

O axioma de Lacan, Não há relação sexual, simplifica-nos o trabalho de conceber essa relação de causalidade na dimensão sexual. Como vocês sabem, esse axioma incide na significação da castração, essa significação de Não tenho o que faz falta no nível genital, ou seja, no nível da relação com o Outro, Não sei o que faz falta para fazer existir a relação sexual. Eis o valor de uma das significações de (-φ), esse matema de Lacan que se relaciona com o falo como imaginário e que é o que faria com que houvesse relação sexual (por um atalho, aliás, isto é o que permite distingui-lo do falo simbólico, que não é o que faria com que houvesse relação sexual, senão que designa a função pela qual o sujeito se relaciona com a sexualidade ou, mais precisamente, com a ausência da relação sexual).

Com isso, dei-lhes um pequeno panorama no tocante ao estatuto do trauma. Mas o que ocorre quando tentamos captar o trauma a partir do sentido? Pois bem, nós o captamos como um fato de história. E, agora, iremos avançar lentamente para pensar bem o valor desta noção de “fato de história” e extrair o máximo proveito dela.

O primeiro ensino de Lacan apresenta a própria experiência analítica como uma historicização, e vocês sabem que ele chega a dar um giro até o ponto de dizer, direcionando-se ao fim de seu ensino, exatamente o contrário: que, se há algo de que não devemos jamais nos aproximar, é da história.

Já o destaquei anteriormente: as polêmicas essenciais de Lacan são as que ele mantém consigo mesmo. Para dizer a verdade, as polêmicas que temos conosco mesmo são as únicas interessantes: em vez de acusar o outro por não compreender nada, dar-se conta de que somos nós mesmos que não compreendemos nada – essa é a própria disciplina do levantamento do recalque. Por exemplo, não há nada mais saudável do que reler Freud partindo do princípio de que não compreendemos nada dos textos que já lemos, comentamos e explicamos anteriormente. É uma disciplina, inclusive uma ascese, colocar-se na posição de estar novamente diante de um problema.

Pois bem, o que é o fato de história? Podemos captá-lo pela negativa. Um fato de história é um fato que não é bruto, mas que, em si mesmo, tem um sentido. O miolo da questão consiste, em meu entender, em que um fato é um fato de história quando o captamos como algo que se experimenta com um sentido. Quando tentamos captar algo do trauma – e a consequente fixação – a partir do sentido, ou seja, de algo que o sujeito experimenta como munido de um sentido, o próprio recalque associa-se a que esse sentido seja reconhecido ou censurado. O recalque se torna equivalente à censura do sentido, ao qual se opõe o levantamento do recalque como reconhecimento do sentido. Na medida em que o primeiro Lacan pensa a psicanálise no registro da história, o recalcado é, para ele, da ordem do sentido.

Esta teoria implica que a fixação seja “estigma histórico”, conforme a expressão de Lacan. “Estigma” é um termo muito bem escolhido: designa as feridas, as marcas, as impressões, as cicatrizes, as pegadas; evoca o termo “trauma” e, ao mesmo tempo, é o ponto de fixação, assim como se expressa Freud, a cada vez que fala de fixação. Ela é, então, um fenômeno de sentido, designa um sentido que fora determinante, causal, na história do sujeito.

O valor operacional que o termo “histórico” possui fica bastante claro sob a pluma de Lacan – esse termo se opõe exatamente a “biológico”. Um fato de história está nas antípodas do que seria um dado biológico ou um dado fisiológico. Aqui, “história” se opõe a “desenvolvimento”, tal como “fato bruto” se opõe a “fato de história”. Por conseguinte, na fixação, o que se fixa é estritamente um sentido. O trauma é o trauma de um sentido, e é por isso que Lacan ilustra a fixação mediante o vocábulo “página”, como quando falamos das páginas de história ou das páginas de glória: “página de vergonha que se esquece ou se anula, ou página de glória que constrange”. Sem dúvida, assistimos uma implicação do sujeito na relação de causalidade a partir do “vivido como” (para abordar as coisas, temos aqui, mais uma vez, uma expressão que continua sendo familiar, que nasceu no terreno da fenomenologia e que, inclusive, passou ao uso corrente). Se aqui o sujeito está implicado na relação de causalidade, está, pois, a título de sujeito do sentido. Uma vez que dizemos “sujeito do sentido”, isso não se distingue de uma subjetividade. Observem que, no começo de seu ensino, não há, para Lacan, uma antinomia entre o sujeito e a subjetividade. Pelo contrário, ambos se superpõem, ainda que não aparentem coincidir exatamente em seu uso quando os lemos de perto enquanto os seguimos: o sujeito é pensado a partir de um “isso tem sentido para ele”. Isso quer dizer que, aqui, temos um sujeito absolutamente solidário do significado. Através de um passo ao limite, isso permitirá a Lacan substituir o termo “significante” pelo termo “sujeito”, para surpresa geral. Mas o fato de que o sujeito seja o do sentido é o que torna impensável – e insondável, no relatório de Roma de Lacan, em todo caso, a menos que eu me equivoque – a noção de um sujeito do significante.

O que quer dizer a noção de “historicização primária”? Quer dizer que, de modo primário, o sujeito provém da história e jamais do desenvolvimento. O sujeito vive absolutamente no elemento da história, e não dentro de um desenvolvimento biológico. Isso significa que, inclusive, a interpretação é primária, ou seja, que toda experiência é algo “vivido como”; é imediatamente uma interpretação daquilo que se experimenta. Nesse aspecto, tudo tem sentido para o sujeito do sentido.

De forma correlativa a essa interpretação primária, é preciso reconhecer que também há uma alteridade primária, quer dizer, que algo tem sentido para o sujeito por não ter sentido para algum outro. Essa relação com o outro pode ser – enumero os termos de Lacan – de agressão, de sedução, de simbolização.

Aqui, vemos a conexão e, inclusive, a homogeneização – da qual falei – entre a fixação e o recalque. O recalcado é o significado. Por isso, Lacan diz, nessa época, o que brevemente evoquei na vez passada, a saber: que o sintoma é “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”. Mas, inclusive, ao longo de todo esse relatório de Roma, achamos que, definitivamente, o mistério consiste em saber qual é a instância que recalca, qual é a causa do recalque. Uma vez que tomamos a fixação como um sentido, a causa do recalque é, no mínimo, muito imprecisa. E, neste ponto, dou todo o valor ao que citei antes, rapidamente: “página de vergonha que se esquece ou que se anula, ou página de glória que constrange”. Mas, o que é esse “se” impessoal, senão a marca de uma vacilação, sob a pluma de Lacan, ao afirmar que quem aqui esquece e anula é o sujeito, ou seja, ao relacionar o recalque – e até a forclusão, uma vez que aparece no verbo “anular” – com uma posição subjetiva.

 

Um excesso de sexualidade

Aqui vemos em qual ponto Freud está à frente de Lacan e por que Lacan chegará ao objeto a impulsionado por Freud. Nele, a causa do recalque está indicada de um modo inequívoco, que ressaltei para vocês no texto de sua Carta 46, sob a expressão “excesso de sexualidade”. A tese de Freud, a respeito da causalidade do recalque, é que este se deve ao despertar de um excesso de sexualidade (Sexuellüberschuss) que suscita uma defesa. Por isso, há recalque. Não nos defendemos da “página da vergonha que se esquece ou se anula”, mas do excesso. Por esta via, Lacan chegará a reconhecer que o sujeito não é outra coisa senão uma defesa; que o sujeito se constitui, primordialmente, como um “não”, como uma negação – e vocês sabem que Lacan estenderá a negação até incluir, nela, a elisão. Todo esse assunto está na linha da articulação freudiana: defendemo-nos de um excesso de sexualidade. Quer dizer que o sujeito do recalque é introduzido ali a partir da defesa, e $ não escreve senão essa defesa, ou seja, o sujeito como defesa em relação ao a – que, aqui, consideramos como o excesso de sexualidade. Essa tese de Lacan, segundo a qual o sujeito é fendido, escindido pelo objeto a – tese que parece extravagante e cabalística – é a tradução, mediante o matema mais preciso, da tese freudiana do excesso de sexualidade como causa de uma defesa.

Reitero isso aqui para indicar de maneira palpável – e irrefutável, a meu entender –, que Freud está à frente de Lacan, mas também para que se note que o axioma Não há relação sexual significa que sempre há trauma, que algo sempre dá errado. Esse axioma, a partir do qual vocês podem colocar em série isso que chega em uma análise sob a forma de anedotas, é correlativo deste outro: Sempre há um excesso de sexualidade. Além disso, devido ao fato de que não há relação sexual, ou seja, de que a sexualidade tem a significação da castração, sempre há um excesso de sexualidade. É o que Lacan escreveu como:

a
_______
(-φ)

Penso que, a partir dessas breves indicações, aqueles que não estão habituados a lidar com estas letras – somente penso neles – já têm com o que se orientar: se aqui o (-φ), a castração imaginária, traduz o Não há relação sexual, a letra a traduz o que no texto de Freud é o “excesso de sexualidade” como causa.

A sexualidade aparece com o estatuto de um excesso, o gozo vem como quantidade suplementar. Quando Lacan diz que, na experiência analítica, o gozo é um mais-de-gozar – ou seja, um suplemento em relação ao significante, ao simbólico – e, por isso, deve lhe assignar uma letra diferente –, esse a, que não é uma letra de significante e que parece enigmática, tentará traduzir, a seu modo, o axioma Sempre há um excesso de sexualidade.

Histeria e obsessão

Como estou fazendo a lista dos déficits de Lacan em relação a Freud no momento em que inaugura seu ensino, adicionarei que, nesse relatório de Roma, a própria noção de après-coup não encontra um lugar convincente, devido ao fato de que sempre está, primordialmente, dotada de sentido. Em sua Carta 59, Freud está à frente em relação a essa teoria de Lacan, pois formula o seguinte:

as fantasias histéricas, […] que, tal como as vejo, remontam a coisas que as crianças entreouvem em idade precoce e só compreendem numa ocasião posterior” (nachträglich).

Nessa simples observação de Freud, já está implicado o estatuto do après-coup (o sentido só vem a posteriori) e, portanto, distingue-se muito bem a disjunção do significante em relação ao significado. Toda a primeira teoria de Lacan não dá espaço a essa disjunção – esse fato é determinante.

Quanto ao excesso de sexualidade, podemos adicionar as duas vertentes, segundo as quais Freud o distribui na Carta 75:

para a histeria [a condição é que deve ter ocorrido uma experiência sexual primária (anterior à puberdade), acompanhada de repugnância e medo; na neurose obsessiva, ela deve ter ocorrido acompanhada de prazer.

Vocês sabem que, se estabelecermos uma relação entre o excesso de sexualidade – causa do recalque – e o que aqui é, para Freud, a vivência sexual primária, obtemos essa diferenciação entre a histeria e a posição obsessiva, tendo como referência o fato de haver repugnância ou prazer, e cujas consequências na dialética subjetiva são muito mais complexas. O encontro repugnante com a sexualidade, em sua vertente histérica, parece ser a causa do desejo de que o Outro se distancie, quando, na realidade, isso se transforma, mais precisamente, pelo contrário, em insatisfação. Neste contexto, quando queremos falar do estabelecimento da relação com o Outro, falamos de histerização. Essa repugnância, no nível do gozo, traduz-se, no desejo, como insatisfação; como um “Não é suficiente!”; como um “Mais, ainda!” (encore). Por outro lado, na obsessão, o encontro com a sexualidade é prazeroso e vem acompanhado por um excesso de prazer – ele deveria implicar um “Que venha!” dirigido ao Outro, reverberando como um furo que suscita um “Basta!”, um “Suficiente!”. Poderíamos enriquecer esse “Não aguento mais!” com toda uma gama de sentidos, não somente o da impaciência. É uma fórmula de separação em relação a esse Outro que anseia demais. Esse “Não aguento mais!” também está no princípio da retenção, pela qual, tempos atrás, se explicava a avareza obsessiva. Era um modo de abordar, por meio da teoria do caráter, esse “Não aguento mais!” radical. Dentro dessa teoria, vocês também podem abordá-lo a partir do tema do orgulho de não ter nada para demandar, “porque não aguento mais”.

*Texto extraído da aula do dia 13 de janeiro de 1988, do Curso de Orientação Lacaniana, de Jacques -Alain Miller: Causa y consentimento – 1ª Ed. Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paidós, 2019, p.138-145. Publicado com a amável autorização do autor.

Tradução: Paula Nathalie Nocquet

Revisão: Glacy Gonzales Gorski e Renata Martinez