Rubrica Eixo 1 – ENTRE DUAS LÍNGUAS
Ennia Favret
EOL/AMP
“Nem frase do fantasma nem invólucro formal do sintoma,
a frase significativa é uma ampliação do nosso
vocabulário clínico”.
É. Laurent[i]
Orientada por esta proposta, apresentarei duas vinhetas.
- Margot é uma criança quando sua professora a nomeia como “a estrangeira que escreve sem erros de ortografia”.
Uma frase com intenção elogiosa, que não possui uma carga traumática aparente, mas que, no entanto, impacta, perturbando sua subjetividade – desconcerta-a, divide-a.
Ela nunca a esqueceu, e foi somente quando levava a filha à escola que a recordou, com um certo matiz angustiado, mas que, ao mesmo tempo, a fez sorrir. Passou-se tanto tempo e, ainda assim, ela recordava com nitidez o efeito produzido: “o enorme esforço de falar bem a língua do Outro, vestir-se como as meninas do bairro, desagradar seus pais respondendo em espanhol…tudo havia sido inútil”. Seguia sendo uma “estrangeira”.
Havia se enganado acreditando que o trabalho realizado a assimilava, que lhe permitia encaixar-se no código do Outro, desconhecendo que o inconsciente impede a total adaptação.
Uma virada ocorreu durante sua adolescência, quando, fazendo usufruto de sua condição de “estrangeira”, se vangloriava diante das amigas de liberdades que, a elas, não eram permitidas.
Em algum momento que não soube precisar, ela transformou a frase inicial em “a estrangeira sem erros”, sublinhando o “sem erros”, que a conduziu a um estilo perfeccionista.
O sentimento de estar sempre um pouco “fora do quadro” a acompanha. Ainda que, agora, diga com tom risonho: “a margem é um bom lugar”.
- O amor ao pai conduziu Cris por um caminho de privação
Nesse contexto, ela recorda uma cena na qual, falando em francês com sua avó, uma mulher se aproxima e diz: “Que linda menina…como fala bem francês!”
Ela olha para o pai e decide não mais voltar a falar aquela língua. Língua na qual se comunicavam sua mãe e sua avó, e da qual o pai estava excluído.
“Desde então, não mais a falei.”
Dou-lhe, de minha biblioteca, uma publicação em francês e corto a sessão.
Os sonhos, as canções infantis, os contos de sua avó – tudo isso se produz de modo incessante e a leva a dizer: “lembro em francês o que havia esquecido em espanhol.”
Tradução: Rafaela Vieira de Oliveira Quixabeira
Revisão: Renata Martinez
[i] Laurent, É., “Frases que hacen marca”. Intervenção nas 54 Jornadas da ECF, 2024.