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Rubrica Eixo 3 – POR QUE FALAR COM A CRIANÇA SOB TRANSFERÊNCIA, HOJE?

Withney Ferrufino – Nova Política da Juventude – NEL

Na época da decadência da ordem simbólica, os sujeitos não querem falar, não querem saber, mas gozam. Parece não haver lugar para falar do resultado do impacto de lalíngua no corpo[1], uma das formas de entender o que esse XII ENAPOL propõe como “falar com a criança”. Apesar de tudo, fala-se sozinho no parlêtre, ou algo retorna no real sem mediação, tornando as urgências subjetivas cada vez mais frequentes, em suas distintas modalidades, carregadas de angústia.

Na atualidade, as terapias recomendadas pela ciência são aquelas baseadas em protocolos que podem ser aplicados por qualquer terapeuta, onde o “obstáculo ao tratamento”, “o falso laço”, se supõe eliminado da equação. Então, por que ainda falamos de transferência, na época em que não se supõe ao Outro um saber?

Nesse panorama, a clínica psicanalítica mantém o princípio de ser uma clínica sob transferência[2], e vê-se que, para a chamada clínica do real, a transferência também deve ser considerada em sua vertente real. Reconhece-se que existe algo anterior à transferência como sujeito suposto saber, em que, posteriormente, o amor pode fazer metáfora[3]. Algo anterior, já presente no sujeito antes mesmo de se consultar com um analista, algo da língua primitiva do sujeito. Se “no princípio era o amor”[4], também antes da linguagem se inscreve lalíngua, como a jaculação pura, “lizmente”[5]. Então, nos tempos da agonia de Eros[6] como metáfora, a psicanálise aposta em um amor de uma lógica distinta: um amor real, mais vinculado ao pulsional.

Essa vertente do amor está na linha da “transferência que devemos ver inscrever-se o peso da realidade sexual”[7]. Alejandro Reinoso dá testemunho de como esse algo – que está desde o princípio e que determinou sua escolha de analista –, depois da análise, fica reduzido, talvez, a algo mais próximo da jaculação de lalíngua: o significante da transferência “sério no trabalho”, que, através das intervenções do analista sobre a transferência no real – como os “sorrisinhos sem sentido”[8] –, pôde cair, para que ele, depois, pudesse servir-se desse semblante em sua própria clínica, podendo, então, “jogar a sério”. É assim que, unicamente, falando com a criança sob transferência – nesse caso, operando com o corpo do analista –, aquele efeito pôde ter sido produzido.

Assim, também, na clínica do autismo, nesse “laço sutil”[9] com um outro intrusivo, apresentam-se, nas diversas invenções dos analistas por meio dos objetos, modos de emprestar o corpo ao sujeito para possibilitar a construção de suas soluções.

É assim que, mais além de insistir no amor por uma nostalgia, pelos velhos tempos, os praticantes da psicanálise se servem do amor em suas vertentes simbólica, imaginária e real, não para falarem com a criança – pois não há intersubjetividade – mas sim para que o parlêtre fale com a criança, com isso que fala nele como resultado do impacto de lalíngua em seu corpo. O que só é possível com a presença do analista.

Tradução: Caroline Quixabeira
Revisão: Olívia Viana


[1] Lacan, J. A terceira: teoria de lalíngua (1974). Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

[2] Miller, J.-A. C.S.T. (1994). In: IRMA, Clínica lacaniana: Casos clínicos do campo lacaniano, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1994. p. 9.

[3] Lacan, J. O Seminário, livro 8: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. Lição de 30/11/1960.

[4] Idem. Lição de 16/11/1960.

[5] Miller, J.-A. “Clase VI: El escrito en la palabra” (1996). In:  La fuga del sentido. Paidós, Buenos Aires,  2012, Lição 17/01/1996.

[6] Han, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

[7] Lacan, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. Lição 29/04/1964.

[8] Reinoso, A. “Ouïr”, En: Bitácora Lacaniana #8, Grama, Buenos Aires, 2019, p. 39.

[9] Tendlarz, S. “El lazo sutil con el autista”. 2012. Disponível em: https://www.silviaelenatendlarz.com/el-lazo-sutil-con-el-autista/ . Acesso em 20 Jun. 2025.