Susana Dicker (NEL)
Perguntar por essas três paixões – ódio, cólera e indignação – é entrar nesse terreno que Lacan elegeu separar dos afetos freudianos e, em particular, dessa versão da psicanálise, que manteve a confusão com as emoções. Nesse sentido, é oportuno lembrar a afirmação de Éric Laurent, “chamamos de paixão uma articulação do inconsciente com o real do gozo”¹, enquanto fantasia e pulsão estão comprometidas nela. “Uma solda entre o saber do inconsciente e o gozo”², um laço do inconsciente e do real através do a em um corpo vivo.
Nossa prática se orienta para o mais singular do gozo do ser falante. Daí que, quando pensamos nessas paixões, expressões desse gozo singular, nos deparamos com o paradoxo de que não se manifestam sem a afecção que o Outro produz no parlêtre. Seja a partir do Outro da civilização, seja a partir do Outro do amor, tais paixões do parlêtre não se apresentam sem as do Outro. Lacan o plasmou nessa dicotomia entre paixões do ser, da relação com o Outro, da alienação, e paixões da alma, paixões do a. Quando é assim, falamos do Outro e do Um? Ou concordamos com o conceito de extimidade e aceitamos que o Outro é Outro dentro de mim mesmo?
Ali onde o ser falante se defende da pulsão que o habita, situando-a no campo do Outro, fazendo-o responsável do que lhe ocorre, temos a operação da fantasia que encontra sua ocasião num Outro habitado por um vazio em que é possível depositar a causa da angústia, que não é senão o objeto de sua fantasia. Mas podemos traçar uma ponte para não ficarmos presos nessa dicotomia na medida em que a vida do parlêtre inclui o laço ao Outro e, entretanto, é responsável por seu gozo, que não faz laço. Uma citação de Lacan instala esta ponte: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu – o objeto a minúsculo – eu te mutilo”³. É pensar a paixão da falta-a-ser a partir do a e dar lugar aos arranjos singulares de cada ser falante. Eis aqui o que dá ao Outro sua posição: acede-se a ele pelo lugar de um gozo, mas, na medida em que o gozo está proibido, essa posição do Outro está construída não sem o aparelho significante, o que nos instala no terreno da demanda. E, se se demanda dar o que não se tem, já não estamos na ordem do ter, mas do ser, ser de gozo.
Pensar a paixão como um laço do inconsciente e o real através do a em um corpo vivo, não é possível sem a pulsão. E, se dela Freud dizia que seu fim é ativo, ainda que ela seja muda, podemos concluir que as paixões são um de seus modos de expressão. Germán García o diz nestes termos: “Contra a tradição que identifica a paixão com o patológico (…) deve-se dizer, com a psicanálise, que as paixões falam na decisão de tomar a palavra e nas figuras que constituem a dimensão semântica da linguagem, dimensão irredutível à sintaxe”⁴.
E isso é notável, em particular, na cólera e na indignação. Enquanto no ódio se trata de uma temporalidade diferente, Lacan coloca a cólera como irrupção do real. “Quando no plano do Outro, do significante, ou seja, sempre, mais ou menos, no da fé, da boa fé, não se joga o jogo”⁵. Disrupção que quebra a crença no Outro e comove a trama simbólica que sustentava o sujeito.
E a indignação? “Não é a cólera. (Esta) é um afeto e a indignação é uma posição subjetiva, a daquele que responde como sujeito no pessoal e no social ao se ver in-dignado, despojado de sua dignidade subjetiva […] Manifestar a indignação, penso com Lacan, é negar-se a ser reduzido ao ignóbil de um ser que teria que engolir a vergonha de viver sem o valor dado pelos significantes que o identificariam em sua dignidade subjetiva⁶.
Podemos concordar ou não com Gallano, mas, como psicanalistas, não podemos desconhecer a relação entre a indignação e a dignidade como ética do desejo. A indignação, paixão ligada à abjeção, não é sem o objeto a como abjeto, dejeto. Isso nos orienta em direção a uma política do sintoma com seu antecedente em Freud, que acreditou na dignidade dos dejetos da vida psíquica, levou-os a sério. Oportunidade do sujeito de conseguir sua salvação se damos lugar à dignidade de seu gozo e apostamos na dignidade do Sinthoma.
Tradução: Maria Ruth Jeunon Sousa
Revisão: Paola Salinas
Notas
¹ LAURENT, É. As paixões do ser. Escola Brasileira de Psicanalise – Seção Bahia e Instituto de Psicanalise da Bahia, Salvador: nov. 2000. p. 87.
² ___________ Ibid. p. 87.
³ LACAN, J. O seminário, livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 249.
⁴ GARCÍA, G. “El retorno de las pasiones”. Disponível em: http://wapol.org/ornicar/articles/grc0029.htm
⁵ LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 23.
⁶ GALLANO, C. “Genocidio social…”. Disponível em: https://traficantes.net/sites/default/files/Impactos%20subetivos%20del%20actual%20genocidio%20social.pdf