PRAGA DO PAI, INDIGNAÇÃO DO FILHO

o que nos ensina Philip Roth*

Sérgio Laia**

Não me considero um especialista em Philip Roth. Sou dele um leitor, e nem lhe li (ainda?) todos os livros. Além de sua escrita precisa, irônica e, mesmo quando mordaz, elegante, interessou-me de início sobretudo o modo como ele me pareceu saber dar corpo à sexualidade masculina, seus impasses, desvarios e soluções, inclusive quando, em vários de seus livros, ela é confrontada à velhice. No entanto, quando em minha adolescência, eu ainda morava em uma cidade do interior de Minas Gerais onde livros novos só me chegavam quando passei a ser membro de um serviço de entrega postal chamado, à época, Círculo do Livro, encomendei, por volta 1978, O complexo de Portnoy, no qual são abordados, de fato, as memórias e os relatos que um jovem advogado nova-iorquino dirigia a um psicanalista. Embora bastante surpreendido por esse romance, não foi ele que fez de mim um leitor de Roth. Isso aconteceu bem mais tarde, em 2006, quando meu propósito de exercitar minha relação com a língua inglesa, me levou a ler Everyman (Roth, 2006), traduzido no Brasil como Homem comum 1. A partir daí, passei tanto a seguir os lançamentos que esse escritor norte-americano fez até seu último romance Nemesis (2010), quanto a ler vários outros livros seus.

Cheguei a publicar, na revista Correio, da Escola Brasileira de Psicanálise, uma resenha sobre os seu cinco últimos romances e que intitulei “4 vezes Roth e mais um ainda por vir” (Laia, 2010). Por ocasião da morte desse escritor, no dia 23 de maio de 2018, difundi essa mesma resenha em minha página do Facebook, mas – para destacá-la como uma homenagem – dei-lhe outro título: “Philip Roth: a pulsão que não envelhece e o desejo indestrutível”. Sem dúvida, nessa resenha, está incluído Indignação (Roth, 2008) e ao qual, com mais vagar e talvez mais ao modo de um ensaio, retorno neste texto, após reler esse romance por uma segunda vez.

Trama

Como sou brasileiro e, portanto, marcado pelo “olhar estrábico” com que Piglia (1991) certa vez tematizou a capacidade de, a partir da América Latina, mirarmos tanto o que se passa aqui quanto nesses Outros mundos que são a América do Norte e o Velho Mundo, afirmo que Indignação, assim como outros livros de Philip Roth é um romance à la Memórias Póstumas de Brás Cubas porque esse escritor norte-americano, tal como o nosso Machado de Assis, é mestre em fazer um morto contar a própria vida. Dizer que o protagonista de Indignação está morto e narra sua vida não é exatamente, como se diz hoje em dia, “dar spoiler” porque já somos informados dessa morte antes mesmo de nos inteirarmos da trama na qual ela é decisiva:

mesmo morto, como estou agora e tenho estado sei lá por quanto tempo, tento reconstruir os costumes que imperavam… e recapitular meus esforços canhestros para esquivar-me deles, pois foram esses esforços que, provocando uma série de desastres, terminaram por causar minha morte aos dezenove anos (Roth, 2008 [2009], p. 47).

Assim, “indignação” – que intitula o livro – pode muito bem ser o afeto com que muitas vezes tendemos responder à morte de alguém tão jovem. Mas veremos, mais adiante, que esse não é, a meu ver, o leitmotiv desse título.

O que me surpreendeu, particularmente ao ler por uma segunda vez Indignação, é que a declaração que Marcus Messner faz da própria e tão precoce morte é inserida por Roth (2008) na trama logo depois que esse jovem personagem descreve-nos a excitação sexual experimentada, não sem perplexidade, com o modo como uma colega de Universidade participou ativamente tanto do beijo na boca que ele lhe deu quanto do direcionamento de uma das mãos dela para o meio das pernas dele, logo no primeiro encontro, em 1951. Sexo e morte são, portanto, tramados e considero instigante que a frase na qual a narrativa dessa experiência sexual termina para se enlaçar à declaração – não menos impactante – da morte do protagonista do romance tenha sido literalmente grifada pelo próprio Roth (2008 [2009], p. 47) como: “Não houve nenhuma luta”. De fato, Olivia Hutton não lutou para responder ou mesmo para se colocar ativamente no encontro de seu corpo com o de Marcus Messner e, pelo que sabemos dela, tampouco lutaria caso tal encontro ou outros que aconteceram depois tomassem a dimensão de um ato sexual. Do mesmo modo, a morte súbita desse jovem combatente norte-americano na Guerra da Coreia não se dá propriamente dizendo no âmbito de uma luta, na medida em que ela é consequência muito mais dessa carnificina a qual o governo norte-americano destinou milhares de jovens, antecipando, a meu ver, o que voltará a acontecer, entre 1959 e 1975, na Guerra do Vietnã.

A trama sexo-morte ganha ainda mais impacto, demonstrando-nos o quanto Roth (2008 [2009]) é realmente genial, se nos lembrarmos de que Marcus Messner é filho de um açougueiro kosher e que chegou até a trabalhar por um tempo com o pai antes de se tornar estudante universitário, assim como, desde muito cedo na vida, foi introduzido pelo pai nesse ritual judaico de, por exemplo, abater certos animais e preparar sua carne para o consumo humano. Kosher, em ídiche, significa “adequado”, “bom”. Orientados por preceitos já encontrados na Torá, os judeus, quando seguem a tradição, não comem a carne de qualquer animal2 e, quando este é abatido, não pode sofrer ao morrer e tampouco seu sangue pode ser consumido. Assim, poderemos ler em Deuteronômio, 12, 23: “Sê firme… para não comeres o sangue, porque o sangue é a vida. Portanto, não comas a vida com a carne”. Por sua vez, em Indignação, o próprio Marcus Messner nos relata como, em sua infância, um animal era considerado khosher:

Para ser kosher, o animal tem que morrer devido à perda de sangue. E, nos tempos que eu era o filho pequeno de um açougueiro e tinha de aprender como se fazia o abate, eles penduravam o animal pelo pé para sangrá-lo. Primeiro, enrolavam uma corrente na perna traseira para conter o animal. Como a corrente estava acoplada a un guincho, o animal era rapidamente erguido e ficava preso pela pata de trás a fim de que todo o sangue corresse para a cabeça e a frente do corpo. Só então podia ser morto. Entrava o sochet usando un solidéu…, ajeitava a cabeça do animal sobre os joelhos, empunhava um grande facão, pronunciava uma bracha (benção) e cortava o pescoço. Se fizesse isso num só golpe, se cortasse a traqueia, o esôfago e as carótidas sem tocar na coluna vertebral, o animal morria instantaneamente e era kosher; se precisasse corta duas vezes ou o animal padecesse, se o facão não estivesse perfeitamente afiado ou a coluna vertebral fosse atingida, então o animal não era kosher (Roth, 2008 [2009], p. 119).

Portanto, através do, se posso dizer assim, ritual kosher, define-se o que é “adequado” e o que “não é adequado”, o que “pode ser considerado bom” e o que “não pode ser considerado bom” e é justamente este tipo de partição que marca a curta vida e a súbita morte de Marcus Messner. O problema é que, no âmbito do ritual, essa partição que também é aquela do “puro” e do “impuro” funciona, mas, como nos ensina Freud (1910 [2013] e 1912-1913 [2012]) desde “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas” e, ainda, Totem e tabu, esse funcionamento nem sempre suporta a pressão com que as pulsões tomam o corpo vivo e, tanto pela gramática própria ao fluxo pulsional quanto pelo modo como a linguagem marca e corrompe o que é humano, esse corpo se torna – e retomo aqui uma expressão de Lacan (1960-1961 [1992], p. 296) leitor de Paul Claudel – “refém do Verbo”. Roth (2008, p. 34, 36 e 37), por ter sido excelente escritor, sabe disso e, assim, cria-nos esse admirável Marcus Messner como aquele que, sem dúvida, “queria fazer tudo certo” e que, de fato, é um jovem exemplar, mas também o faz dizer “cresci com sangue”3, esse mesmo sangue do qual o pai “nunca pôde” ensiná-lo a gostar ou mesmo a se acostumar. É bem este o drama de Marcus Messner e, em diferentes outras versões, o que toca a cada um de nós: o sangue que a tradição, desde o Levítico e o Deuteronômio, o interdita a consumir torna-se um tabu tanto quanto o sexo para um jovem da década de 1950, mas o sangue é também a vida que, assim como o sexo, anima os corpos e, portanto, por mais que se o evite, ele pulsa porque a vida – conforme a experimentamos todos os dias – não é propriamente kosher. Além disso, mesmo que um pai se proponha ou até mesmo deva orientar a vida de um filho, a psicanálise também nos ensina o que é também mostrado por Roth (2009): os desígnios paternos falham em determinar a direção certa para a vida dos filhos e essa falha tende a ser menos devastadora quanto menos ela se impuser como se fosse perfeita e sem erro.

A mais bonita palavra na língua inglesa”

A palavra “indignação” aparece pela primeira vez no livro de Roth (2008 [2009], p. 66) que a adota como título extraída de um dos versos do hino dos chineses em uma guerra deflagrada pelos japoneses: “A indignação enche o coração de todos os nossos compatriotas”. Esse hino, segundo nos informa Marcus Messner, passou a ser cantado por ele de memória como uma forma de suportar os sermões que era obrigado a escutar, mesmo sendo judeu e ateu, nos atos religiosos que, nos anos 1950, ainda compunham o cotidiano dos estudantes da Universidade de Winesburg. Marcus o havia aprendido no Primário quando, em plena Segunda Guerra Mundial, a China era aliada dos Estados Unidos e, ao retomá-lo, no contexto histórico da Guerra da Correia, os chineses já não se encontram do mesmo lado que os norte-americanos e, portanto, entoar de memória tal hino é um modo secreto de Marcus Messner expressar sua própria indignação, inclusive por cantar os versos daqueles que se tornaram inimigos dos Estados Unidos “dando todas as vezes uma ênfase especial a cada uma das quatro sílabas que, mescladas conjuntamente, formam o nome ‘indignação’ obsessiva naç009], p. 67), o anodo especial, cada uma das quatro seilatados Unidos.

assim, quando o retoma, j.un guincho, o an” (Roth, 2008, p. 82)4. Nessa espécie de ruminação obsessiva desse hino, Marcus Messner procura marcar clandestinamente sua diferença porque, entoando os versos daqueles que passam a ser inimigos, não se coloca propriamente como um compatriota entre os seus colegas e, mais além da Universidade de Winesburg, entre seus patrícios, mesmo se acaba tendo esvaído de seu corpo o sangue da vida como combatente norte-americano na Guerra da Coréia.

Um pouco mais adiante, indignação volta a aparecer por uma terceira e última vez, quando Marcus Messner, tal como o protagonista do kafkiano O processo, se vê confrontado a responder pelo que o Diretor da Universidade de Winesburg apresenta como “inadequado” e que, de fato, não tem qualquer razão de sê-lo considerado assim. Nesse contexto, escutando os impropérios desse Diretor, ele cantou “para dentro” o que chama então de “a mais bonita palavra na língua inglesa: ‘In-dig-na-ção’” (Roth, 2008, p. 95). Na edição brasileira do livro (Roth, 2008 [2009], p. 75), não está marcada a ênfase que no original foi reforçada na sílaba tônica inglesa na e que, no nosso caso, corresponderia à sílaba dig. Em inglês, tal reforço vem destacar, a meu ver, a consideração, por parte de Marcus Messner, do quanto é indigna a nação, nation, onde vivia, ou seja, os Estados Unidos da América. Afinal, o modo como esse jovem procurava levar sua vida, suas escolhas, não eram propriamente inadequados aos ideais de liberdade preconizados e mesmo defendidos como valores norte-americanos, mas foi justamente contra esse modo, essas escolhas e, kafkianamente, em nome desses valores, que o Diretor da Universidade de Winesburg o inquiria. Nesse contexto, tal Diretor reiterava uma ferocidade que, embora pautada pela nas minúcias que, de formas diferentes, apenas a burocracia e a loucura são capazes de apontar, evocando, então, as restrições e acusações persecutórias com que o pai de Marcus Messner passou a tratá-lo. Se a perseguição alucinante do pai, deflagrada no início da adolescência do filho fez com que este último, seguindo o que não deixa de ser uma tradição norte-americana, inscrever-se em uma Universidade bem distante do lar familiar e, por conseguinte, das pragas com que o pai passou a assolá-lo, o processo inquisitório empreendido pelo Diretor da Universidade na qual Marcus Messner procurava encontrar um abrigo o fez tomar uma decisão que acabou por radicalizar a indignação que custará, a esse protagonista do romance de Roth (2008), o sangue da vida.

Ao ressaltar a palavra “nação” em “indignação”, para designar a pátria que, reiterando o que já lhe fazia o pai, solapava-lhe o próprio ser ao não dar lugar às suas escolhas, Marcus Messner me parece ratificar, ainda, o que temos podido avançar, no âmbito das Escolas latino-americanas vinculadas à Associação Mundial de Psicanálise, com relação a essa paixão hoje em dia tão em voga: a indignação. No argumento do IX Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (ENAPOL), a indignação é abordada como o afeto no qual um sujeito “se detém quando sua singularidade é questionada, não reconhecida, rechaçada” e, então, somos convidados a “interrogar a relação entre dignidade e essa singularidade que Freud chamou de Kern unseres Wesens”, ou seja, de âmago do ser (Carrijo da Cunha, Arenas e Zapata Machín, 2018). Esse mesmo argumento nos remete também a uma passagem do Seminário 8, na qual a expressão “estar indignado” é associada ao termo grego agaiomai, quando Lacan (1960-1961 [1992], p. 145) busca a raiz de agalma, essa outra palavra grega que lhe serve para designar o objeto precioso que podia ser encontrado, escondido, bem dentro, ou seja, no âmago, desse tipo de caixinha grega chamada sileno5 e do qual ele se servirá, alguns anos mais tarde, para designar o objeto que, ao mesmo tempo, como “resto”, determina a “divisão” do sujeito e “o destitui como sujeito” (Lacan, 1967 [2003], p. 257).

Para discernir como esse objeto onde um sujeito localiza o âmago de seu ser é também o que o destitui como sujeito, Lacan (1960-1961 [1992], p. 172) nos ensina que, no desejo, o que “está em questão… é um objeto, não um sujeito”, pois se trata de “um objeto diante do qual desfalecemos, vacilamos, desaparecemos como sujeito” uma vez tal “queda”, tal “depreciação”, somos sempre nós “como sujeito… que a sofremos”. Por sua vez, com o objeto, acontece “justamente o contrário”, ele “é supervalorizado” para “salvar nossa dignidade de sujeito”, para “fazer de nós algo distinto de um sujeito submisso ao deslizamento infinito do significante, … algo distingo do sujeito da fala, esse algo de único, de inapreciável, de insubstituível,… o verdadeiro ponto onde podemos designar aquilo a que chamei a dignidade do sujeito” (Lacan, 1960-1961 [1992], p. 172-173). Nesse contexto, é interessante ressaltar que, de início, a indignação de Marcus Messner é acionada quando ele se vê obrigado a frequentar sermões nos quais ele não se reconhecia, nem encontrava qualquer valor subjetivo, fazendo-o apelar para o hino daqueles que, nas circunstâncias em que se encontrava, passaram a ser inimigos de seu próprio país. Porém, essa indignação deixa de lhe ser mera ruminação de palavras para dar lugar a atos que terminam por extirpar-lhe o sangue da vida quando Olivia Hutton, essa mulher que o perturbava, com sua diferença e ousadia, em seu desejo, lhe é apresentada, por seus colegas, sua mãe e, por fim, o Diretor da Universidade de Winesburg, como indigna. Assim, com seus atos, não apenas Marcus Messner, indignado, procura reafirmar a dignidade perdida como sujeito no deslizamento infinito dos versos de um hino chinês e de seus próprios argumentos: ele visa ainda conferir à Olivia Hutton que, sobretudo ao final, se apresenta como irremediavelmente perdida, um valor que, muitas vezes, ele próprio vacilava em sustentar.

No boletim eletrônico OCI, n. 7, destinado à preparação do IX ENAPOL, Ana Lydia Santiago indaga a Éric Laurent se, de fato, a indignação, como o que se experimenta “diante de uma injustiça intrínseca a um ato” perpetrado contra um sujeito, comportaria uma dimensão mais simbólica que as paixões do ódio e da cólera (Santiago e Laurent, 2019). Em sua resposta, Éric Laurent concorda quanto a esse aspecto simbólico e mesmo sublimado da indignação e, citando os movimentos ainda recentes que, na Espanha e nos Estados Unidos da América, se designaram respectivamente como Los indignados e Ocupy Wall Street, situa o “momento da indignação” como aquele “de um grito diante do Outro mau que se manifesta”, mas que é “um grito de impotência” – afinal, o que aparece depois do grito da indignação é, segundo Éric Laurent: “o que fazer?” (Santiago e Laurent, 2019). Nesse contexto da impotência, a indignação, mesmo quando visa dar lugar ao que é digno, não deixa de ser, como já entoava a canção do Skank, “uma mosca sem asas” que “não ultrapassa a janela de nossas casas” (Rosa e Amaral, 1993).

No caso de Marcus Messner, sua indignação contra as imposições pátrias e também paternas não deixa de enredá-lo, inclusive fatalmente, no que procurava escapar. Afinal, ele termina como uma espécie de herói pátrio e retorna, para sempre, à casa paterna, mesmo se esta passa a ser, de fato, o solo da terra-mãe onde seu corpo morto é depositado. Haveria algum modo de sair da impotência que parece sempre espreitar a indignação, por mais forte e determinante que essa paixão seja? No boletim eletrônico OCI, n. 4, um artigo de Torres (2019) me oferece uma pista para responder essa questão e concluir este texto, ao destacar que a indignação pode separar o sujeito do mundo confinando-o à posição hegeliana da Bela Alma.

Mais algumas pitadas de Lacan

A posição da Bela Alma é aquela na qual se aponta, critica e afronta as desgraças do mundo sem se perguntar como se dá o próprio envolvimento neste mal: a Alma é Bela porque se coloca como alheia ao Mal diante do qual ela, por exemplo, se indigna. Parece-me, então, oportuno retornar à seguinte constatação de Marcus Messner: “cresci com sangue”, esse mesmo do qual o pai “nunca pôde” ensiná-lo a gostar ou mesmo a se acostumar (Roth, 2008, p. 36). Através dessa formulação, assim como da própria e curta vida desse personagem, verificamos um paradoxo do qual, de fato, ele não extrai todas as consequências: como filho de um açougueiro kosher, o sangue lhe era familiar, cresceu com ele, mas era, também, um elemento do qual não aprendeu a gostar e, por conseguinte, mesmo precisando se livrar, então, do sangue que lhe toma a dimensão mesma de um objeto-dejeto, Marcus Messner não é indiferente ao sangue, ou seja, esse objeto lhe é também atraente, agalmático.

Por não conseguir se haver, no âmbito de seu próprio desejo, inclusive quanto à Olivia Hutton, com esse estranho objeto que ao mesmo tempo o degrada, assola e atrai, sua indignação acaba por conduzi-lo à solução de morrer esvaindo-se nessa substância, o sangue e, por que não, o gozo, que lhe era ao mesmo tempo repugnante e que se apegava, como uma espécie de visgo, a seu corpo. Desprender-se da posição de Bela Alma implicaria ter, com relação ao sangue, uma resposta diferente tanto de tomá-lo como tabu quanto de deixar-se arrebatar por ele. Nos termos que Lacan (1955, p. 45) um dia tomou emprestado de Heidegger, tratar-se-ia de realizar o: “Come teu Dasein”, teu Ser-aí, o que te marca a existência ou, ainda, nos termos de João Cabral de Melo Neto cantado por Chico Buarque, tratar-se-ia de te haver “com a cova” que é “a parte que te cabe desse latifúndio” (Melo Neto, 1954-1955 [1994], p. 183).

Por vezes, é verdade, Marcus Messner chega bem perto de seu Dasein, de sua cova no latifúndio pátrio-paterno, do sangue com o qual, por mais que o limpasse, ele havia também crescido. Assim, por exemplo, após reconhecer que o medo que tinha de Olivia Hutton aumentava quanto mais a desejava por ser uma mulher tão fora dos padrões da década de 1950, Marcus Messner chega a dizer: “Eu era meu pai. Não o havia deixado lá em New Jersey, enredado em suas apreensões e enlouquecido por premonições assustadoras: eu me transformara nele em Ohio” (Roth, 2008 [2009], p. 57). Porém, esse tipo de reconhecimento não lhe é determinante o bastante para ele desenredar-se da praga do pai porque, ao se valer do “velho, bom e desafiante norte-americano ‘Vai se foder’” para se livrar das acusações nefastas que o Diretor da Universidade de Winesburg lhe fazia, o protagonista em Indignação, terminando sua vida como combatente norte-americano na Guerra da Coreia, não deixa de realizar fatalmente “o aprendizado daquilo que seu pai não muito educado vinha tentando duramente lhe ensinar há muito tempo: a via terrível e incompreensível pela qual as escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas acabam no mais desproporcional resultado” (Roth, 2008, p. 231).

A praga do pai que atormenta Marcus Messner não é, portanto, apenas aquelas que lhe ressoam nos cerceamentos persecutórios que fizeram esse personagem se distanciar, o máximo que pôde, do lugar onde foi criado e viveu os dezessete primeiros anos de sua curta existência. A praga do pai é, sobretudo, o próprio pai como praga, ou seja, como uma espécie de parasita linguageiro que o acompanha por mais longe que Marcus Messner, como filho, possa ir. Essa acepção do pai como praga e não apenas como praguejador evoca, a meu ver, a concepção, sustentada pelo último Lacan (1975-1976 [2007]), de que a referência paterna é um sintoma do qual só nos livramos quando dele nos servimos.

Onde Marcus Messner se detém, Philip Roth avança. Afinal, esse escritor norte-americano nos mostra a falácia do indignado “vai se foder” como modo de se tentar ir além do pai e, se Indignação termina com uma “Nota Histórica” na qual se destaca como as “agitações sociais, transformações e protestos da turbulenta década de 60” acabam subvertendo radicalmente até mesmo o conservador campus universitário de Winesburg que, dez anos antes, não conferia a um Marcus Messner qualquer lugar digno de sua diferença (Roth, 2008 [2009], p. 169), basta lermos A marca humana (Roth, 2000 [2014]) para constatarmos o quão opressora pode ser também a liberação que, desde a década de 1960, ganha a América e, ainda, todo o mundo. Nesse contexto, aquele que, ainda em vida, foi muitas vezes sagrado como um dos maiores escritores norte-americanos foi também aquele cuja obra se trama como uma efetiva desmontagem do American Way of Life que se tornou, nos nossos dias, cada vez mais o Global Way of Life.

 


 

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Levítico. São Paulo: Paulinas, 1989, 4a impressão.

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Deuteronômio. São Paulo: Paulinas, 1989, 4a impressão.

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FREUD, Sigmund (1910 [2013]). Sobre o sentido antitético das palavras primitivas. In: ____. Obras completas, v. 9: observações sobre um caso de neurose obsessiva [“O homem dos ratos”], Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci e outros textos (1909-1910). São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund. (1912-1913 [2012]). Totem e tabu. In: ____. Obras completas, v. 11: Totem e tabu, Contribuição à história do Movimento Psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras.

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LACAN, Jacques (1967 [2003]. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: ____. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 248-264.

LACAN, Jacques (1975-1976 [2007]). O seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LAIA, Sérgio (2010). 4 vezes Roth e mais um ainda por vir. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), São Paulo, n. 66, p. 99-104.

LINS BRANDÃO, Jacyntho. Nota sobre uma citaçãoo e um lugar comum utilizados por Lacan em “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista na Escola: agalma e sicut paleaCorreio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), São Paulo, n. 81, p. 124-138.

MELO NETO, João Cabral (1954-1955 [1994]). Morte e vida severina. In: ____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p. 169-202.

PIGLIA, Ricardo (1991). Memoria y tradición. Congresso Abralic, 2, Belo Horizonte: Editora UFMG, v. 1, p. 60-66.

ROSA, Samuel e AMARAL, Chico (1993). In(dig)Nação. Skank, CD. Informação disponível na internet (acesso em 1º de julho de 2019): http://www.skank.com.br/musica/indignacao/

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SANTIAGO, Ana Lydia e LAURENT, Éric (2019). Ana Lydia Santiago pergunta a Éric Laurent (Parte 5), Boletim OCI, IX ENAPOL, 26 de junho de 2019. Disponível na internet (acesso em 1º de julho de 2019): https://ix.enapol.org/boletim-oci-7/

TORRES, Mónica (2019). É a indignação uma paixão?. Boletim OCI, IX ENAPOL, 24 de abril de 2019. Disponível na internet (acesso em 1º de julho de 2019): https://ix.enapol.org/boletim-oci-4/

 


 

** Texto apresentado, no dia 3 de julho de 2019, em Belo Horizonte, na atividade Lacan na Academia: conversando com a literatura, promovida pela Academia Mineira de Letras e pela Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG).

**** Psicanalista; Analista da Escola (AE – 2017-2020) e Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia e do Mestrado em Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura).

1 Essa tradução do título, embora possível, deixa de lado a observação, presente na orelha da edição norte-americana, de que Everyman é um termo se refere a “uma peça anônima e alegórica do século XV… cujo tema é uma convocação da vida à morte” (Roth, 2006) .

2 Ver: Levítico, 11 e Deuteronômio, 12, 13-28; 14, 3-21.

3 Em inglês, I grew up with blood (Roth, 2008, p. 36). Acima, inclusive para o que argumento neste texto, preferi traduzir mais literalmente do que o fez Jorio Dauser: “Cresci cercado de sangue” (Roth, 2008 [2009], p. 35). Ao verter with para “cercado de”, Dauser me parece dar ao sangue uma delimitação quanto a Marcus Messner e é justamente essa delimitação que a preposição inglesa with não torna tão clara.

4 Aqui, mais uma vez, decido por uma tradução mais literal que a de Jorio Dauster (Roth, 2008 [2009], p. 67) porque me pareceu importante manter o termo “nome” como correspondente em português a nom em vez de substitui-lo, como aparece na versão brasileira, por “palavra”. Afinal, Indignação acaba sendo o nome do livro de Roth e serve a Marcus Messner como uma espécie de referência frente ao desvarios que ele encontrava particularmente no que concerne a seu próprio pai e coletivamente na Universidade onde estudava e no país onde vivia.

5 Para um maior detalhamento sobre as acepções do termo agalma, considero importante a leitura atenta da 10a lição do Seminário 8 (Lacan,1960-1961 [1982], p. 139-151) e, ainda, um esclarecedor artigo de Lins Brandão (2017, p. 125-131).