RUBRICA 1

TRANSFERÊNCIA

Fatalidade da transferência

Graciela Musachi – EOL

Uma indicação de Lacan nos orienta: o bom de ir rápido é que se pode voltar atrás. Precisamente, o retorno a Freud se produz, a propósito da transferência em sua “Intervenção sobre a transferência”[1], quando destaca este conceito no caso Dora.

Cinco anos antes da “Interpretação dos Sonhos”[2], em 1895 (“Estudos sobre a histeria”[3]), Freud menciona a falsche Verknupfung, que foi traduzida como “falsa conexão”, mas –Eric Laurent o assinala– é literalmente “falsoenodamento”, mostrando o detalhe com que Lacan continua bebendo em Freud até o final. Trata-se de um erro a respeito da pessoa, uma substituição que faz com que, diz Freud, ao sair da captura hipnótica, a histérica lhe jogue os braços ao pescoço, mas ele não se altera; “Fui bastante modesto em não atribuir o fato aos meus próprios atrativos pessoais irresistíveis, e senti que então havia apreendido a natureza do misterioso elemento (mystische Element)”.[4]

Entre 1912 e 1915, Freud produz os textos canônicos sobre a transferência (“Sobre a dinâmica da transferência”, “Observações sobre o amor transferencial”, “Sobre o início do tratamento”[5]), onde expressões como “a transferência surge necessariamente no tratamento” ou, “fatalidade da transferência” recordam a mais precisa (porque implica o mal dizer) e contundente expressão cunhada por J.-A. Miller: “a maldição da transferência”, que recolhe a comprovação feita por Freud já no início: no começo de sua experiência tinha problemas para que os pacientes ficassem na análise, mas depois não queriam mais ir embora.

Freud põe em jogo na transferência: a) a causa: “é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie”[6] porque a presença do analista é imprescindível e não se reduz à presença do corpo mas sim ao silêncio que acompanha a palavra, por isso “a necessidade humana de uma causa única não pode satisfazer-se”; b) a escolha de objeto incestuosa: determina os fins e condições da vida erótica, do que resulta uma série de clichês inconscientes que se repetem e se orientam em direção ao analista (sublinho tanto a palavra “série” quanto a insistência de Freud em que estes clichês são “elementos” inconscientes que se colocam em série); c) a resistência: a transferência é o que permite a análise avançar e é aquilo que se torna obstáculo quando o pensamento para. Freud assegura que nisso há pensamentos sobre o analista (aquilo que sua presença faz calar e que poderia escrever-se assim:

sendo “x” a presença; d) o amor: o paradoxo do amor de transferência é que ele é, ao mesmo tempo, um amor autêntico, porque é uma falsa conexão, como todos, e é por isso que se produz em todos os âmbitos onde o saber é suposto, como nos lugares de tratamento, etc. Freud menciona que os pacientes se espantam com sua memória, mas ele sabe… ler os elementos (significantes) inconscientes.

E os mystische Elements? É surpreendente observar que esses “elementos” conduzem, nos exemplos de Freud, à paixão feminina que coloca problemas para o manejo da transferência, Freud (como Lacan em “A direção do tratamento…”[7]) responde enodando estratégia da transferência, tática da interpretação e política do desejo.

Tradução: Flávia Machado Seidinger Leibovitz
Revisão: Paola Salinas


[1] Lacan, J., (1966) “Intervenção sobre a transferência”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 214-225.

[2] Freud, S., (1900 [1899]) “A interpretação dos sonhos”, Edição Standard Brasileira Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.

[3] Freud, S., Breuer, J., (1893-95) “Estudos sobre a histeria”, Edição Standard Brasileira Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. II, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.

[4] Freud, S., (1925 [1924]) “Um estudo autobiográfico”, Edição Standard Brasileira Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996, p. 40.

[5] Freud, S., (1912) “A dinâmica da transferência”; (1915 [1914]) “Observações sobre o amor transferencial”; (1913) “Sobre o início do tratamento”, Edição Standard Brasileira Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1969.

[6] Freud, S., (1912) “Sobre a dinâmica da transferência”, op. cit., p. 143.

[7] Lacan, J., (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.

RUBRICA 2

TEMPO / TEMPORALIDADE

A solução Lispector!

Iordan Gurgel – EBP

“Como começar pelo início, se as
coisas acontecem antes de acontecer?”[1].

Abrir a porta no momento adequado é a atualização da pergunta de Freud: “em que ponto e com que material deve o tratamento começar?”[2].

Na perspectiva freudiana, o material com que se inicia o tratamento é indiferente: a história da vida do paciente ou a história de sua doença, ou suas lembranças infantis. Impõe-se, no começo do tratamento, diz Freud, anunciar a regra fundamental: “Uma coisa mais… O que vai dizer deve diferir […] de uma conversa comum […]. Assim, diga tudo o que lhe passa pela mente”[3]. Freud também associava o uso do tempo com a resistência: determinados pacientes, para fazer melhor uso do tempo, preparam com cuidado o que irão comunicar, e esta avidez é resistência. Também há aqueles que querem adiar o uso do tempo ao fazer comentários de maneira informal e amistosa, depois do término da sessão.

Quando Freud falava do inconsciente como atemporal, podemos ler como real, e o exemplo na histeria é contundente: o que foi vivido há trinta anos é atualizado no presente[4]. Assim, em contraponto ao inconsciente freudiano, que supõe o passado, o último ensino de Lacan faz avançar a experiência analítica ao propor o inconsciente como assemântico, incluindo o futuro contingente. A referência é ao tempo lógico e suas escansões: o instante de ver –a implicação subjetiva, que desemboca no tempo de compreender para chegar ao tempo de concluir–. Por exemplo, nas entrevistas preliminares, a decisão de se analisar.

Esta referência repercute na experiência clínica: a sessão analítica é concebida como um lapso de tempo que se conecta com a dimensão atemporal do inconsciente[5]. Para tanto, o tempo é escandido em dois momentos: o tempo que progride e o que retroage. É atualizar no presente o passado, que sob transferência produz saber. É um modo de dizer sobre a presença do analista que se verifica pela produção do inconsciente do sujeito, que, assim, atualiza o instante do passado. Em consequência, duas outras leituras[6]: 1) a sessão longa vai contra a condição atemporal do inconsciente e dificulta a escansão entre o essencial e o não-essencial. Essa ideia favorece as sessões curtas principalmente porque valoriza o corte, que pode ter uma força interpretativa máxima que não aconteceria se o tempo considerado fosse o cronológico, quando o sujeito poderia calcular seu tempo; 2) a interpretação se inscreve no tempo da surpresa, quando o sujeito é levado a remeter sua fala ao texto original.

Enfim, o paradoxo do futuro contingente também se aplica na relação entrevista preliminar/análise propriamente dita, as quais ocorrem em ritmos distintos: quando a análise acontece, já havia iniciado desde as entrevistas. É a solução “à la Lispector”, que implica o inconsciente como atemporal a partir da lógica e não da cronologia.


[1] Lispector, C., A hora da estrela, Água viva, Rio de Janeiro, Rocco, 1973. Agradeço a Wilker França, associado do IPB, por ter me lembrado esta frase de Clarice Lispector.

[2] Freud, S., (1913) “Sobre o início do tratamento”, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 12, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 176.

[3] Ibid., p. 177.

[4] Miller, J.-A., A erótica do tempo, Rio de Janeiro, EBP, 2008, p. 28.

[5] Ibid., p. 49.

[6] Miller, J.-A., Conferencias porteñas 1, Buenos Aires, Paidós, 2009, p. 217.

RUBRICA 3

PERSPECTIVA DO SINTOMA

Hoje como ontem?

Susana Schaer – NELcf

Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta
sua época na obra contínua de Babel, e que conheça
sua função de intérprete na discórdia das línguas.[1]

Jacques Lacan

A psicanálise é hoje diferente daquela que em 1900 Sigmund Freud concebia? Sem dúvida… Entretanto, existe algo que, desde seu ato de fundação, permanece o mesmo. Duas ideias, colocadas em dois escritos que o próprio autor propõe ler nas entrelinhas. Uma delas, um único preceito, que não nomeia e que se depreende de uma série de regras que serão chamadas de conselhos[2]. Freud colocará isso com a seguinte pregunta: como se chega a ser analista? Não nos ressoa esse postulado com a pergunta em torno da qual se ergueu toda uma Escola?

Freud responde de imediato “Pela análise dos próprios sonhos”[3]. Nessa ocasião coloca que, em contrapartida à regra fundamental imposta a quem se aproxima de uma análise, e para que algo da ordem do analítico se produza, devemos nos servir, como um instrumento, de nosso inconsciente. E estabelece a própria análise como condição indispensável para a sua prática.

Propõe que, conhecer os complexos ocultos que provocam resistência –a única que se apresenta em uma análise– a partir da própria “experiência”, inclui “impressões e convicções que em vão seriam buscadas no estudo de livros e na assistência de palestras”[4]. E nos desafia ainda mais…

Todo aquele que possa apreciar o alto valor do autoconhecimento e aumento de autocontrole assim adquiridos, continuará, quando ela terminar, o exame analítico de sua própria personalidade sob a forma de auto-análise, e ficará contente em compreender que, tanto dentro de si quanto no mundo externo, deve sempre esperar descobrir algo de novo[5].

Não reconhecemos nisso o germe do que mais adiante Lacan nomeará e colocará no centro da discussão na Escola, o passe e seu testemunho?

É assim que ganha sentido o exposto ao iniciar seu escrito. Esclarece que tais regras são adequadas a sua personalidade individual, isto é, ao mais singular da sua subjetividade e que não é impossível que cada um se sinta impulsionado a adotar uma atitude diferente diante da prática analítica. Cada um inventa a psicanálise, dirá Lacan.

A segunda ideia se refere a “Sobre o início do tratamento”[6]. Freud expõe ali sua oposição veemente à mecanização da prática psicanalítica e o fundamenta na seguinte razão: “A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica”[7].

Ambas as ideias, a de que um analista surge a partir do mais singular, pela sua própria experiência de análise, como condição para que algo da ordem do analítico se produza e a diversidade psíquica em relação àqueles que chegam para a consulta, orientam-nos no sentido de que a psicanálise, por suas próprias condições discursivas, pelo furo agalmático no centro do seu saber, por sua abertura para o “novo”, sua docilidade, constitui-se como uma possível resposta ao mal-estar da época, aos seus sintomas e aos desafios que ela implica.

Tradução: Bruna Guaraná.
Revisão: Ruth Jeunon.


[1] Lacan, J., (1953) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 322.

[2] Freud, S., (1912) “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Ed. Imago, vol. XII, 1969, p. 155.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibid., p. 156.

[6] Freud, S., (1913) “Sobre o início do tratamento (Novas Recomendações sobre a Técnica da Psicanálise I)”, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Ed. Imago, vol. XII, 1969, pp. 163-187.

[7] Ibid., p. 164.

A quarta via de pesquisa proposta na argumentação do XI ENAPOL1 é um convite aos praticantes para manter viva a posição analisante daqueles que encarnam o discurso psicanalítico.

A orientação é a relação que cada praticante mantém com a psicanálise mesma, com seus dilemas políticos, impasses de formação, encruzilhadas éticas ou desafios com a clínica contemporânea. É com esses eixos que convocamos um colega de cada Escola para que possa expor desde sua posição de analista, mas também atravessado pela posição de analisante, algumas dessas arestas.

Desta vez temos o texto proposto por Sérgio Laia da EBP.

1 Véase: https://enapol.com/xi/pt/argumento-e-eixos-tematicos/

O que é, para um analista, começar a analisar-se?

Sérgio Laia – EBP

De um modo mais simples, começar a analisar-se, para um analista, responde à orientação presente desde os chamados “Escritos técnicos” de Freud: a análise pessoal é imprescindível a quem deseja praticar a psicanálise. Essa orientação me parece manter-se como invariável nas várias instituições que, de formas diferentes e até antagônicas, se propõem a formar analistas. Porém, Lacan não se restringe a essa invariável, ele a complexifica, ao abrir, por exemplo, o Seminário XX, dizendo a seus ouvintes que só podia estar ali, ensinando, por encontrar-se “em posição de analisante” de seu “eu não quero nada saber disso”[1].

Por que Lacan, como um analista, insistiria em apresentar-se, em tais circunstâncias, como analisante? Nessa insistência, ele me parece indicar que um analista estaria sempre começando a analisar-se porque o começo de uma análise, para um analista, não se limitaria à primeira vez em que se busca um analista ou à entrada em análise. Essa não limitação pode evocar a célebre prescrição freudiana de que “todo analista, periodicamente, por exemplo, a cada cinco anos, deveria voltar a se tornar objeto da análise, sem se envergonhar desse passo”[2], ou seja, um analista deveria, a cada quinquênio posterior à sua análise, começar a analisar-se. Porém, é desmerecer a verdade freudiana tomar tal prescrição de forma literal e, sobretudo, sem se ater ao que vem logo a seguir, ou seja, à observação de que Freud não tinha, com tal prescrição, “a intenção de afirmar que a análise seja de todo um trabalho sem fim”[3].

Logo, se começar a analisar-se é um chamado que insiste para cada analista, se Lacan fala, em um seminário, a partir da posição de analisante, é porque um analista dará tanto mais provas de ter chegado ao fim de sua análise quanto mais não se envergonhar (e retomo aqui o verbo utilizado por Freud) de que um “eu não quero nada saber disso”[4] insiste ao longo do infinito de sua formação analítica. Esse “eu não quero nada saber nada disso” não deixa de ser um dos nomes do inconsciente, mas, quando um analista decide abordá-lo na vertente que Lacan o faz, por exemplo, no Seminário XX, ele dará mostras de que itera em sua condição de analisante, e sem que o inconsciente lhe tenha mais qualquer “alcance de sentido (ou de interpretação)”[5]: ele se dispõe a falar para os outros, como um analisante, mas –por ser um analista– sem dar sentido ou interpretar seu nada querer saber, para além da adoração que todo falasser tem quanto a si como corpo, sem ficar falando só para si ou de si mesmo. Em outros termos, se aqueles que ainda não começaram uma análise preferem se calar (ou mesmo atuar), se aqueles que começam uma análise vacilam frente ao que não querem nada saber, um analista –como efeito mesmo de sua análise e, sobretudo, do seu fim de análise– avança e tem, como Lacan, a coragem de dizer: falo para os outros do que eu não quero nada saber, do heteros que toma corpo, e não só para mim e de mim.

Haveria muito ainda a dizer sobre esse eu não quero nada saber do qual um analista fala a partir de uma condição de analisante não menos infinita que sua formação como analista. Porém, a brevidade exigida a este texto me leva apenas a destacar que Lacan demarcou sua posição como analisante em uma lição dedicada ao gozo e em um seminário voltado para esse ainda (encore) que insiste em tomar um corpo (encore) e, particularmente, o corpo feminino. Em outros termos, frente à opacidade do gozo e ao enigma do que Freud chamou de “fator” feminino e pulsional[6], cada analista, no infinito de sua formação, é chamado a começar a analisar-se.


[1] Lacan, J., (1972-1973) Le séminaire, livre XX, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 9. Trata-se da primeira lição deste Seminário, referente ao dia 12 de dezembro de 1972.

[2] Freud, S., (1937) “A análise finita e a infinita”, Fundamentos da clínica psicanalítica, Belo Horizonte, Autêntica, 2017, p. 357.

[3] Ibidem.

[4] Lacan, J., (1972-1973) Le séminaire, livre XX, Encore, op. cit., p. 9.

[5] Lacan, J., (1976) “Prefáce à l’édition anglaise du Seminaire XI”, Autres écrits. Paris, Seuil, 2001, p. 571.

[6] Freud, S., (1937) “A análise finita e a infinita”, op. cit., p. 361. Pude elucidar a aplicação freudiana do termo “fator” às pulsões e à feminilidade em: Laia, S., “O analista, sua análise, e o fator feminino”, Correio, n.º 84, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, pp. 109-120.

VARIAÇÕES

Helena Silvestre*

A psicanálise em meio às militâncias

Helena Silvestre é uma escritora brasileira, afroindígena, nascida na periferia de São Paulo, militante das lutas por moradia e território. Entre seus livros, se destaca Notas sobre a Fome (2019), indicado ao Prêmio Jabuti. Em 2022, Helena participou das Jornadas da EBP-Seção Rio de Janeiro. Nessa ocasião, pudemos explorar o modo como ela tece um trânsito muito dinâmico e potente entre diversos ativismos e um profundo mergulho em si mesma, para o qual serviu-se, entre outas coisas, da psicanálise. Para o Boletim Abertura, dirigimos a ela duas questões em torno de seu livro.

Boletim Ap/bertura: Helena Silvestre, seu livro Notas sobre a fome é impactante sob inúmeros aspectos, mas algo que nos toca especialmente é o modo como você costura os ativismos coletivos com suas vontades, seus sofrimentos e suas histórias particulares. De que maneira o encontro com a psicanálise te serviu nessa trajetória tão plural, tão intensa?

Helena Silvestre: Meu encontro com a psicanálise se deu, por assim dizer, em dois tempos: o primeiro, numa dimensão bastante individualizada e outro numa dimensão diferente, coletiva, mas que estava alimentada pela primeira experiência.

O primeiro, quando eu passei por um momento depressivo ligado a uma ruptura familiar abrupta, me impôs a necessidade de entender algo sobre o sofrimento psíquico. Eu aceitei a ideia de que precisava de auxílio, mas, desconfiada das figuras médicas, eu me coloquei a ler textos de Freud, buscando não estar completamente à mercê num processo de análise. Lembro ainda do primeiro texto, um livrinho chamado “5 lições de psicanálise” que me foi revelador, animador até. A psicanálise me atraiu mais do que outras vertentes porque tinha no currículo o esforço histórico de diálogo com as teorias e práticas marxistas, de modo crítico. Entrei em itinerário analítico com uma psicanalista e frequentei seu consultório durante um ano, numa das ruas de Higienópolis. Na prática analítica, a minha relação com a psicanálise seguiu se construindo, com maiores contradições agora. A profissional se definia como lacaniana e, embora me cobrasse um valor simbólico (que era o que eu podia pagar), tinha suas regras sobre como o pagamento deveria ser realizado em dinheiro e a cada sessão. Era um ambiente extremadamente distinto dos meus locais habituais e ela falava pouco. Passei por muitas fases: de descobertas desconcertantes em atos falhos enquanto eu contava histórias, de revisitar lembranças incompreensíveis, de trazer à consciência dispositivos inconscientes que guiavam minhas reações, mas chegamos ao momento em que senti que minhas questões se tornavam incompreensíveis a ela, como se uma barreira de classe impermeabilizasse sua condição de compreender alguns dos traumas que chegamos a encontrar.

Havia uma hierarquia e eu não suportava. Ela estava em condição superior à minha: eu não sabia nada dela, ela sabia coisas muito íntimas minhas e, além de tudo isso, só a ela pertencia o direito de chancelar alguma argumentação minha como negação. Minhas entabulações contrariando associações por vezes engessadas demais (pai-autoridade, p.e.) eram desfeitas assim e nunca entravámos no conteúdo do que eu dizia, um conteúdo onde as situações também estavam determinadas por dispositivos raciais, de gênero e classe.

Um dia, resolvi que não iria e nunca mais fui, mas segui me aproximando de autores com influência da psicanálise como Erich Fromm, o próprio Marcuse, lendo também Walter Benjamin. Muitos elementos que me atraiam em sua teoria crítica estavam em diálogo com a psicanálise ou tinham nascido do contato com ela.

Na segunda dimensão, o encontro foi coletivo e eu era responsável por processos de formação política e educação popular nas Ocupações, entre 2005 e 2008. Eu produzia materiais, como cartilhas populares, que ligavam problemas cotidianos a escolhas macropolíticas e tentava, com isso, elucidar o que o movimento pensava do mundo, contra o que lutávamos e o que queríamos. Cada grupo que eu reunia para ler e conversar me revelava que as pessoas nas ocupações estão em processo de luta para reconstruir condições materiais de vida, mas precisam ao mesmo tempo reconstruir a subjetividade estilhaçada pelos golpes brutais que ela impõe à vida aos pobres. Meu próprio processo analítico e as leituras que se seguiram me faziam pensar que nenhuma formação política seria capaz de fomentar “revolucionários” se não criasse condições, primeiro, para a re-existência de sujeitos refeitos de cacos.

Passei a pensar na escuta clínica como uma possível referência de escuta que pudesse integrar os momentos coletivos de reflexão e formação, o relato da própria vida como base essencial para uma leitura de mundo e, simultaneamente, novas leituras de mundo ampliando o conhecimento de si mesmo, as determinações sociais elucidando os mecanismos inconscientes que determinam nossas escolhas –por vezes operando contra nosso projeto consciente–. Então, a relação com a psicanálise me fez romper seja com uma ideia tutorial de formação e construção de elaborações, seja com perspectivas que têm no indivíduo seu único centro de gravidade onde apoiar-se para se refazer. As formações passaram a começar sempre com conversas que, em algo, poderiam se assemelhar a grupos terapêuticos, mas com conclusões que incidiam não apenas sobre o sujeito, seus traumas e mudanças, mas também sobre o coletivo, sua capacidade geradora e seus limites – quase sempre correspondentes à matéria humana que os conformava. Pensando aos outros, eu entendia sobre mim mesma e melhor compreendendo a mim podia melhor interagir com o coletivo. E alterava os coletivos dessa forma, me integrando a eles, que também me alteraram sempre, às vezes tanto ao ponto de me desidentificar e partir, para então me integrar a outra construção coletiva.

Produzir coletivamente um projeto político passava inevitavelmente por perscrutar os próprios desejos e, não raro, questioná-los. Em organizações políticas que prezam mais pela obediência do que pela rebeldia, a produção coletiva e amalgamada de projeto político e desejo singular pode assustar quem detém privilégio e hierarquia.

Boletim Ap/bertura: Helena Silvestre, seu livro Notas sobre a fome ensina de diversas maneiras como é impossível pensar as identificações e a singularidade como experiências distintas e apartadas. Você reafirma profundamente os seus lugares coletivos no mundo, mas faz deles um solo para viver e criar coisas com um estilo muito próprio. O que te orienta a se identificar sem se diluir nessas identificações?

Helena Silvestre: Talvez eu não saiba responder a isso, mas percebi muito cedo que não havia possibilidade de viver melhor que não passasse pela pertença ao coletivo. Acredito que a vida nas favelas e periferias é bastante mais coletivizada do que em regiões onde se concentram as classes médias e isso –embora ocorra por força da precariedade e não da decisão consciente– ensina, molda, esculpe as pessoas. Esculpiu também a mim, que também muito rápido descobri que não poderia viver bem me submetendo. Por submissão quero dizer aquilo que se faz em virtude de força maior, externa e desalinhada ao que conscientemente desejo. Minhas ideias sobre disciplina se voltaram contra si mesmas e se rearranjaram, como autodisciplina. O coletivo não está acima do indivíduo e vice-versa, a hierarquização bloqueia o indivíduo e também o coletivo. Porque o coletivo é o indivíduo e ao mesmo tempo não é. Assim como o indivíduo é o coletivo e simultaneamente não. Eu sou a minha classe, mas não só. Minha classe sou eu e muito mais do que eu. Essas duas dimensões da convivialidade ativista existem mescladas. Tudo o que acontece ao indivíduo altera o coletivo e tudo o que o coletivo produz altera os indivíduos que lhe integram.

Foram as minhas singularidades que me levaram à militância e eu não poderia simplesmente acolher a ideia de que nela o que me era próprio devia desaparecer. Se minha rebeldia e questionamentos me permitiram refazer coletividades que eu desejei fortalecer constituindo, não poderia seguir em espaços que, na primeira esquina, exigiam disciplina fabril e aderência sem convencimento. O caminho para a geração e a fertilização de coletividades afins com o que acredito é o que fortalece as singularidades. A pretensão de que algo pode ser universal e a tudo englobar é da mesma natureza que a pretensão de que todas as singularidades devem se resignar aos limites e às potências do conjunto, desaparecendo numa falsa homogeneidade que serve como base para falidos mecanismos de gestão do poder, como o de representação. Esses pensamentos, assim sintetizados ou em sua forma mais rebelde e corporal, foram o que me conduziu.

* Escritora afroindígena nascida na periferia da região metropolitana de São Paulo é militante das lutas por moradia e território. Coeditora da revista Amazonas no Brasil é também educadora popular na Escola Feminista Abya Yala em São Paulo. Entre seus livros se destaca Notas sobre a Fome (Sarau do Binho, 2019), indicado ao Prêmio Jabuti em 2020.


Tanto a imagem da capa quanto as imagens do interior correspondem a fotografias da obra do Sabina Tiemroth, artista têxtil argentina que reúne arte e design a partir de pesquisas com remanescentes têxteis. No seu atelier presta serviços de design e oficina. Suas obras foram expostas na Argentina e em vários países. Agradecemos sua permissão para usar seu trabalho nos boletins do XII ENAPOL.