Maria do Carmo Dias Batista
A mulher não existe, afirma Lacan no Seminário 20, quando demonstra que a mulher entra no jogo pelo lado da Existência e não do Universal, terreno do homem e do falo. Entretanto, quem não existe é A mulher toda, completa, onipotente, não barrada pela castração, que também estaria do lado do Universal. Ao contrário, uma mulher, barrada, demonstra em si a própria efemeridade e a contingência da existência, do estar no mundo. Uma mulher existe encarnando o buraco, a barra, a castração, a divisão, o não-todo. “[…] quer dizer que quando um ser falante se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica.”[1]
Muito diferente dA mulher na psicose ou mesmo dA mulher fálica (ou em seus momentos fálicos). Diferente também da mulher-imagem-toda apresentada a seguir.
François Ozon, no filme Uma nova amiga[2], mostra o império das imagens dA mulher em toda sua diversidade: mulher-menina; mulher-casada; mulher-mãe; mulher-amiga; mulher-morta; mulher-avó; mulher-bebê; mulher-que-ama-homem-vestido-de-mulher; homem-vestido-de-mulher que ama uma mulher e a engravida…
Com poucos diálogos, a imagem no filme é imperativa, predomina sobre as palavras. Instrumento principal da narrativa, mostra em quadros sucessivos a extrema plasticidade contemporânea de se estar no mundo como mulher, as várias formas de existir como mulher hoje.
A primeira cena é a dA mulher morta vestida de noiva, as joias sendo dispostas em seu colo, suas orelhas, suas mãos, os cuidadosos preparativos do corpo antes de ser enterrada, misturados a imagens de sua infância com a melhor amiga: quase 10 minutos sem palavras. “Há outros momentos rápidos e eficientes, em que a imagem diz tudo, quando algo é imaginado ou sonhado, revelando um medo, preocupação ou desejo. Ou quando a câmera invade a intimidade, praticamente entrando no personagem por seu rosto, seus olhos, sua boca”.[3]
As palavras vêm no discurso de despedida da melhor amiga, quando se propõe a cuidar por toda a vida da filhinha bebê e do marido da amiga, o homem que secretamente gosta de se vestir de mulher. Travesti ou crossdresser, é sem dúvida com muita delicadeza que Ozon o expõe vestido de mulher; assim travestido, conquista a amiga e surge a reciprocidade do amor e a nova gravidez. Porém, ela quer amá-lo somente através da imagem dA mulher que pode representar. A mulher completa.
A pluralidade dos semblantes de mulher hoje faz com que A mulher-toda, não-barrada, passe a existir. Essa pode ser uma das lições desse belo filme: a interpenetração dos gêneros através da imagem-semblante transforma A mulher em um todo acessível ao universal, independentemente da anatomia.
[1] Lacan, J. O Seminário – livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro, JZE, 1982, p. 98.
[2] Ozon, F. Uma nova amiga – longa metragem francês de 2014, com Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz. http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,provocativo–filme-uma-nova-amiga-seduz-o-espectador-para-melhor-tira-lo-de-seu-centro,1727458
[3] Egypto, A. C. François Ozon vai de Hitchcock a Almodóvar em Uma nova amiga. http://pipocamoderna.com.br/critica-francois-ozon-vai-de-hitchcock-a-almodovar-em-uma-nova-amiga/434686