EDITORIAL

Elisa Alvarenga

As Conversações, tal como introduzidas no último ENAPOL, foram um êxito: epistêmico, clínico e político. Não apenas pelo número de colegas envolvidos e pelos intercâmbios proporcionados entre as três Escolas da FAPOL, mas também pelos avanços que permitiram nossa maneira de pensar a experiência analítica na contemporaneidade e pelos documentos de trabalho produzidos. “Falar com o corpo”, sintagma explorado em várias perspectivas, abriu caminho para o que foi introduzido por Jacques-Alain Miller a seguir como “o corpo falante”, nova maneira de pensar o inconsciente no século XXI. Retomada no ENAPOL VII, a fórmula das Conversações já se coloca em marcha com os grupos de trabalho formados, possibilitando novos encontros, presenciais e virtuais, no âmbito da FAPOL.

Os textos de Mauricio Tarrab e Raquel Cors Ulloa, neste Boletim, apontam o lado inquietante, para o melhor e para o pior, do império das imagens. Sem nostalgia de restabelecer o referente desvanecido, ambos ressaltam a importância da orientação proporcionada pela psicanálise diante da ineficácia simbólica de nossos dias. A precariedade da significação fálica exige um saber fazer com o corpo e o seu gozo que passa por um uso das imagens que valha a pena.

O filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, a propósito do massacre dos cartunistas do Charlie Hebdo, ocorrido em Paris em janeiro – um episódio que se inscreve na época do império das imagens – diz que a violência hoje não é mais dirigida aos chefes de Estado – como Abraham Lincoln – ou aos símbolos do capitalismo – como o World Trade Center. Os alvos do assassinato político são indivíduos, o que seria o resultado da desinstitucionalização e privatização da condição humana. A responsabilidade última seria portanto individual. A violência é dirigida aos formadores de opinião, através de imagens propagadas globalmente, a nível planetário.

Pensemos, a partir desta reflexão, que uso a psicanálise pode fazer das imagens e da presença, in situ, de cada psicanalista. O Seminário de Lacan sobre Joyce é um guia indispensável a ser explorado nas manipulações dos três registros e nas maneiras possíveis de dar consistência ao corpo proporcionadas pela experiência analítica.

Vídeoflash 1 – O desaparecimento do mundo real” uma entrevista com Jean Baudrillard realizada por Susan Loehr em 2007

Uma brincadeira infantil resume bem o que quero dizer hoje a respeito do império das imagens e de seus súditos – sem os quais não haveria império – nós, os consumidores. Essa brincadeira tinha uma ladainha que as crianças cantavam enquanto faziam uma roda: “vamos passear no bosque enquanto o seu lobo não vem… seu lobo tá aí?” O lobo não estava e as crianças voltavam à roda e voltavam a cantar, até que, de quando em quando, o lobo estava lá e aparecia produzindo o júbilo que rompia a roda prazeirosa das crianças. Além do Pai, esse júbilo mostrava finalmente a verdade libidinal da brincadeira.

Hoje esse gozo está deslocado. Hoje brincamos no bosque de nossas telas, no bosque de nossas nuvens, de nossas redes sociais, confiantes de que se pode fazer possível o impossível. A conexão assombrosa e imediata a milhares de quilômetros de distância, a garantia anônima de nossas pobres ou geniais ideias, ou de nossas imagens ou de nossos vídeos. A ilusão de criar uma nova fórmula nas relações pessoais…

Um personagem de South Park, a série dessas criancinhas indomáveis e hiperlúcidas, dizia inocentemente: “meus contatos no facebook são em número muito maior do que os amigos que tenho”.

Acreditamos, sim, nós os súditos do império das imagens, acreditamos que nesse império se sustenta a ilusão do perdurável, o tempo se congela, tudo pode se recuperar. Seríamos freudianos dizendo que é uma forma de renegar a morte. E é, como em A invenção de Morel (1), plenamente realizada. Porém finalmente é uma renegação do real. Passeemos no bosque enquanto seu lobo não vem? Seu lobo tá aí?

No texto O equívoco do Sujeito suposto Saber (2), de 1967, Jacques Lacan ilustra o poder do significante fora do sentido, indicando na história bíblica como a aparição de algumas palavras hebraicas escritas na muralha da cidade, para que todo mundo as lesse, fazia cair por terra outro império: Babilônia. Em nossa Babilônia século XXI não são as palavras e seu poder que contam. No Império das Imagens, é o próprio véu de Maya que se projeta no muro da linguagem. É o véu de Maya como tal o que faz desfalecer a linguagem. Torna-o [o muro] ao mesmo tempo tênue e brilhante, o faz virtual e descartável frente às imagens. Diante das centenas de imagens, dos milhões de imagens, que podem fazer esquecer que o real sem véu, sem palavra e certamente sem imagem, vigia sempre, ou pior que sempre, enquanto “passeamos no bosque”. É o que Lacan ensina a propósito da fantasia, essa janela para o real, que enfim se amplia para os dispositivos tecnológicos, como colocava Mc Luhan nos anos 1970 sobre a extensão dos sentidos nas máquinas.

O império das imagens mostra sua face fascinante ou horrenda que, com a verossimilhança de um passe de mágica, faz com que tudo pareça possível. Possível e sem mistério. Impactante e sem relevos. Plano, sem profundidade.

Se fizéssemos um arco que em uma extremidade tivesse o mistério que o personagem de Blow up de Antonioni quer adivinhar no detalhe insignificante da foto que o obceca, ou no antiquado e detalhado “retrato de família” das primeiras fotografias, ou, para ir um pouco mais para traz, no dedo levantado de Leonardo, ou no sorriso do Pai de Ram, que ainda transmite vida em meio à morte. E no outro extremo colocássemos a aridez das sefies atuais, onde o que se apresenta é um “eu estou aqui” patético, ou um “eu estive lá” da bobagem valorizadora do turista, como diria P. Bourdieu, convertido em um “disparador serial” [de fotos].

Então estaríamos de acordo com Henri Cartier Bresson, que sabia alguma coisa do perdurável, do instante e da imagem: “Os fatos não são interessantes. É o ponto de vista sobre os fatos o que é importante. Algumas fotografias são como um conto de Tchecov ou Maupassant. São rápidas e nelas há todo um mundo”.(3)

O Argumento que a Comissão Organizadora do ENAPOL preparou para nos orientar, situa, entre outras coisas, que no império das imagens não se trata mais “dessa imagem bela e única que reina e localiza em seu cárcere sutil o inominável do gozo e o real”(4). A questão é outra, é a reprodução inumerável, a multiplicidade, a onipresença das imagens, onde o referente se esfumaça, se desvanece. É o que antecipava John Berger (5) em um ensaio deslumbrante a respeito da revolução das reproduções no plano da arte. Isso passou para a vida cotidiana, com consequências imprevisíveis e desmedidas na época da Internet.

Devemos voltar atrás indo contra esse império? Melhor dizendo, com a Psicanálise nos colocamos nesse fio fatal onde o melhor e o pior do império das imagens operam nas subjetividades contemporâneas, nos corpos, nas formas de vínculos e nas relações sociais. Ali, nessa borda onde as imagens parecem usurpar a relevância da ordem simbólica no “ordenamento” do mundo.

No império das imagens subtrai-se a experiência do corpo de uma maneira brutal. Porém, o Outro como tal também mudou.

Por isso, torna-se fundamental estudar sob esta nova perspectiva suas consequências na vida amorosa; na construção dos corpos; nos efeitos adormecedores e fascinantes sobre as crianças cujos pais se demitem de sua função cedendo-a com alívio às televisões; nos efeitos de massificação dos jovens agarrados gostosamente às redes “sociais” que lhes oferecem o mercado; em suas consequências na sexualidade. Isso só para mencionar alguns dos eixos nos quais deverão girar nossos debates com vistas a setembro em São Paulo.

E neste mundo, onde prevalece a fome insaciável do olho do consumidor contemporâneo, afinal um olho bulímico, pleno de imagens descartáveis, quem olha quem? Olhamos as imagens ou são elas que nos olham?

Toda uma clínica pode resultar das respostas que demos a essas interrogações. Contradizendo a ilusão que cria o que chamamos o Império das imagens, podemos dizer com John Berger que “o visível não existe em nenhum lugar”. (6) E eis que, esse mundo achatado e sem relevos em que vivemos, que nos captura e nos fascina, é somente uma superfície. É finalmente só a projeção sobre uma superfície de sistemas expertos (Giddens), que chamamos gadgets tecnológicos.

Essas imagens não estão sozinhas, como estão os sujeitos capturados por elas, essas imagens têm sua Matrix. Essas superfícies brilhantes que exibem um poder insólito, que afetam subjetividades e corpos, duram entretanto até que a bateria termine. E isso deixa o sujeito diante de tudo o que recusou, com o que tem de se virar. Sua solidão, seu corpo, seu desejo, do que afinal não pode se subtrair. OFF. The End. O lobo está aí!!! Enquanto isso “passeemos no bosque”. Porém, isso sim, usemos as imagens para algo que valha a pena.

 

Tradução para o português: Maria do Carmo Dias Batista

 


 

Referências:

(1) Bioy Casares Adolfo, A invenção de Morel.

(2) Lacan J. O equívoco do Sujeito suposto Saber.

(3) Entrevista a Henri Cartier Bresson no New York Times.

(4) Argumento do VII ENAPOL.

(5) John Berger, Modos de ver. Rocco Editores.

(6) Idem

“O regime os exibe. Olhem como gozam”

Lacan
3 de dezembro de 1969

 

O título do VII ENAPOL assim como seu cartaz são inquietantes, perguntam para além da imagem e do que se vê, já que a contemporaneidade é promovida excessivamente pela pluralidade de imaginários, um olhar pouco simples de se ler, pode se dizer – a partir psicanálise. Talvez um curto-circuito imagem/gozo tenha orientado nossa clínica conceitual; sobre a qual teremos que estudar, pesquisar e essencialmente praticar com muito cuidado, partindo do império das imagens e seus ultimíssimos efeitos por interpretar – seja pela sua queda e/ou firmeza. Um olhar que aponta, como o dedo de São João, o que Lacan pronunciou ao final de seu Informe do Congresso de Roma, nos dias 26 e 27 de setembro de 1958, quando diz que é “melhor renunciar quem não possa unir seu horizonte com a subjetividade da época”. [1]

Ao dizer em voz alta: “O império das imagens”- no plural, evoco o título que Jacques- Alain Miller escolheu para o XI Congresso da AMP “Um real para o século XXI” [2]- no singular. Assim, eu li après coup, a insistência imaginaria, desbordante, excessiva, da nossa época e o que ela nos ensina. Nosso século começa mostrando um gozo que não passa pelo simbólico, nem pelo dizer; um gozo no qual predomina o que se vê e não o que se diz; um gozo que o olha todo- toda intimidade sem véu algum.

Sem nostalgia pelo século que deixamos para trás, nossa orientação assinala que a ordem simbólica não é mais o que era,[3] pois o fogo frio da psicanálise, que não é o fogo da paixão nem da ilusão, nos orienta- sem nenhuma tésis ne varietus que daria lugar a um alfabeto, ou compendium lacaniano – por uma clinica que esta se transformando, isso que mobiliza e renova. Trata-se de uma clinica na qual o-corpo-falante-sozinho-não-existiria, é necessária a presença de um Outro para alojar, graças à escuta, as ressonâncias de lalíngua em cada parletre. Trata-se também de uma série de respostas para uma mesma pergunta, que Eric Laurent propôs durante o VI ENAPOL [4] como algo que vale a pena ler: O que há deu errado com o DSM V? What went wrong with the DSM? Efetivamente, a experiência analítica exige hoje uma profunda revisão das últimas elucidações, não sem a primeira.

Neste próximo ENAPOL “O império das imagens”, trata-se de saber ler a desordem imaginária da época e o reflexo da sua opacidade, que para além do sujeito revestido pelos semblantes e, apesar do imperativo de Santo Tomás: noli tangere – não tocar a natureza -, não se conseguiu frear a bestialidade humana em certos atos, precipitando o império do olhar como absoluto. É oportuno destacar que não há nada de natural na relação do falasser com a imagem do seu gozo. Se o poder das imagens já não reside na sua eficácia simbólica, talvez um olhar psicanalítico aponte a saber fazer com a loucura do impudico imperium.

Quando o império do visível exibe sem véu o grande “descaramento” do gozo, parece que as imagens funcionam como suporte e ilusão para alguns corpos. Basta entrar na internet ou ligar a televisão para “ver” o adormecimento do ser falante que se traduz em pedaços de corpos, partes de imagens que pretendem se curar – de si mesmas e sem o Outro, como por exemplo mostram algumas figuras públicas que graças ao seu protagonismo compartilham suas intimidades e estranhezas pelo Instagram, como no caso de Miley Cyrus ou de Kim Kardashian. Assim também a mulher Barbie e o homem Ken – Valeria Lukyanova e Justin Jedlica, que ao se encontrarem pessoalmente jogaram na cara um do outro suas imperfeições… Sem dúvida trata-se do Enigma – anagrama de Imagem.

Então, em função dessa temática e de suas grandes interrogações sobre as mudanças dos últimos tempos, pelo véu de Maya, e não sem A imagem rainha, [5] esperamos poder conversar e recolocar nosso trabalho sobre O império das imagens e o que implique nossa leitura, seja contrariar o impudico ou construir em torno dele. Melhor ainda “ter vergonha de não morrer disso – como diz Lacan – talvez desse um outro tom”. [6]

Jacques Lacan foi enfático em Vincennes quando pronunciou que “É preciso dizer, morrer de vergonha é um efeito raramente obtido (….) Só falo disso porque, vocês vão ver, tem ligação com nosso tema de hoje – como se comportar com a cultura? As vezes basta uma coisinha pequena traçar um raio de luz.

(…) Vocês vão me dizer – A vergonha, que vantagem? (…) Se ainda não o sabem, tirem uma casquinha, como se diz.[7] [8]

 


 

[1] J. Lacan, Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, Escritos. Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1998, p. 322.

[2] J.-A. Miller, Scilicet: Um real para o século XXI (Orgs.) Ondina Machado e Vera Lúcia A. Ribeiro. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 21-32.

[3] Título do VIII Congresso da AMP A ordem simbólica não é mais o que era. Quais conseqüências para a cura?

[4] E. Laurent, La agitación de las normas clínicas y su consecuencia real, in: “Hablar con el cuerpo. La crisis de las normas y la agitación de lo real. VI ENAPOL”, Grama, Buenos Aires, 2014, p. 45.

[5] J.-A. Miller, A imagem rainha, Lacan Elucidado. Palestras no Brasil. Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1997, p. 575.

[6]J. Lacan, O Seminário, Livro 17. O Avesso da Psicanálise, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1992, p. 175.

[7] J. Lacan, O Seminário, Livro 17. O Avesso da Psicanálise, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1992, p. 172-174.

[8]NT: Optamos pela tradução publicada em português pela Jorge Zahar. Contudo vale ressaltar que tanto na tradução para o espanhol, quanto no original francês, a expressão – faites une tranche, parece indicar fazer um pouco de análise.

Os parágrafos são: em espanhol – “es preciso decirlo, morir de vergüenza es un efecto que raramente se consigue (…) Hablo de esto sólo porque, tiene que ver con nuestro tema de hoy – ¿cómo comportarse con la cultura? A veces basta con muy poca cosa para producir un rayo de luz. Me dirán ustedes – La vergüenza ¿para qué? (…) Si no lo saben todavía, analícense un poco.”

 

 

Tradução do espanhol: Ishtar Rincón 

Revisão: Paola Salinas