EDITORIAL

Carlos Augusto Nicéas

Em vez de “rainha”, a imagem se faz soberana em seu Império, se nos lembrarmos de como falávamos, antes, dela, em 1995, supondo-a poder ser um equivalente no imaginário do significante-mestre no simbólico. Agora quando pretendemos interrogá-la, outra vez, em 2015, “não nos cabe contemplar a realidade mas recolher o que cai do império como pedaços do real que, desde sempre, modulam o sintoma”, como já se disse aqui num dos editoriais deste Boletim (1). Assim, no ENAPOL VII, partilharemos o que nossa prática clínica nos tem ensinado sobre os novos sintomas da civilização, à escuta que estamos de sujeitos contemporâneos deste início de século, afetados pelo poder das imagens. Analistas de orientação lacaniana, não estaremos reunidos, portanto, para fazer uma “sociologia psicanalítica”, da atualidade do Império, mas para insistir no inquietante que se esconde atrás de seu fascínio (2).

Uma relação estreita entre “O império das imagens” e “O inconsciente e o corpo falante”, temas do ENAPOL de 2015 e do Congresso da AMP de 2016, parece apoiar a maioria dos textos deste Flash 07. Um autor, Fernando Vitale, precisa-nos, assim, o eixo sobre o qual se desenrola seu texto: numa civilização “que desdobra triunfalmente todas essas incríveis possibilidades no campo das imagens, a clínica parece nos mostrar que os corpos informam algo que faz obstáculo” (3), orientado que está pelo que já dissera Miller: “A vontade em jogo, que opera por trás desse império, veicula, por definição, uma lógica que é sempre de incitação, intrusão, provocação e forçamento ante a qualquer limite que se lhe oponha” (4). A leitura de dois testemunhos de AE, o de Ram Mandil e o de M. A.Vieira, privilegiando o encontro de cada um com uma imagem particular ao final da análise, permite-lhe ir ao Lacan do último ensino para concluir seu texto: ao lançar um novo olhar sobre o Imaginário, Lacan teria localizado, entre o Imaginário e o Real “uma enigmática referência a um Outro gozo que ele chama Gozo da vida”. O autor nos deixa, então, com essa referência da qual deveríamos nos servir para pensar nossa clínica de hoje (5).

Marcus André Vieira nos dá um texto que põe em relação as imagens que na atualidade de nossa civilização são “tomadas como real e não como significantes” e a psicanálise, que não para de reafirmar Lacan desde sua conferência de 1953, “SIR”, nos introduzindo, lembra Marcus, a um necessário espaço para o enigma na experiência: “Só é material para a análise aquele elemento que possa significar outra coisa que não ele mesmo”, cita Marcus (6). Ora, se hoje se considera que “não há mais impossíveis para ciência, fica difícil levar alguém a abrir-se à dimensão do enigma”. Repensar o   “inconsciente e o corpo falante”, permite então a Marcus começar a responder a esta pergunta: “A falência das narrativas, por ocaso da falta, do desejo e do furo, seriam a falência da psicanálise?” (7)

Irene Greiser, respondendo ao convite de Miller na apresentação do VI Congresso da AMP, pensa a posição do analista diante da pornografia como sintoma atual da civilização. Ela quer nos fazer refletir sobre como a escuta do analista pode propiciar ao sujeito uma experiência singular com a fantasia inconsciente, confrontado que ele vem à oferta massificadora de imagens pornográficas via Internet (8).

Mirta Berkoff vai nos interessar pelas mudanças das coordenadas do gozo do sujeito contemporâneo em face da “presença do feminino e da mulher”: o império das imagens lhe “parece facilitar hoje que uma identificação à imagem da mulher responda à falha na construção do corpo”. Assim, ela nos convida mais particularmente a interrogar, na clínica com crianças, de que maneira essa “feminização”, na atualidade de nossa civilização, pode afetar os meninos no exercício de sua sexualidade (9).

O encontro do analista, em sua prática, com “acontecimentos de corpo que revelam um malogro, uma ruptura do ser falante com a imagem narcisista do mesmo” nos é de grande interesse clínico na elaboração que nos oferece Susana Dicker (10).

Fechando este Flash 07, Maria Helena Barbosa nos propõe à leitura um exercício rigoroso e fecundo para encontrar os termos de uma homologia de estrutura entre dois textos-referências da psicanálise de orientação lacaniana (11).

Uma alegre leitura.

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(1) Luis Fernando Carrijo, Flash 3

(2) Fernando Vitale, “Impossible is nothing ou o enigmático sorriso do gato de Chesire”

(3) idem, ibidem

(4) Miller, na apresentação do tema do próximo Congresso da AMP (www.wapol.org)

(5) Fernando Vitale, “Impossible is nothing…”

(6) Marcus André Vieira, “Sujeito, objeto e corpo: quem fala?”

(7) idem, ibidem

(8) Irene Greiser, “Pornografia”

(9) Mirta Berkoff, “A identificação à imagem feminina como resposta à falha na construção do corpo”.

(10) Susana Dicker, “O drama do espelho”

(11) Maria Helena Barbosa, “(imagem rainha, I), (Significante mestre, S) (objeto a, R)”

Vídeoflash 4 – Miquel Bassols Conferência de Encerramento do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano Parte 2

Acredito que os três eixos temáticos, depreendidos do argumento que convocou ao trabalho o conjunto dos colegas sediados ao redor das três Escolas da América, indicam muito bem que o VII ENAPOL nos convida a explorar o modo como se enovelam, para nós, hoje, as três perspectivas que devem ser interrogadas em sua íntima articulação, com a finalidade de manter viva a psicanálise de orientação lacaniana no século XXI.

Explorar os impasses atuais de nossa civilização, dar conta de sua incidência na transformação da clínica com a qual cada praticante se confronta, seja no consultório ou nos mais diversos dispositivos institucionais, revisitar nossos conceitos para tentar cernir com mais precisão o que efetivamente fazemos, e compartilhar os resultados que daí se deduzem, é a oportunidade que se apresenta ao nos encontrarmos em São Paulo, nos dias 4, 5 e 6 de setembro próximos.

Exploremos, então, um pouco, algumas das questões para as quais o Encontro nos convoca.

É incontestável que o título “O império das imagens” é uma maneira precisa de caracterizar um dos aspectos mais notórios da realidade efetiva em que se desenvolve nossa prática hoje. Não dizemos nada de novo ao afirmar que as incríveis possibilidades realizadas no mercado das imagens pelos novos dispositivos das tecnociências transformaram radicalmente, em poucos anos, o mundo em que vivemos. O que se trata de questionar como psicanalistas são os novos sintomas que acompanham tal processo. A respeito disso podemos constatar que, ao mesmo tempo em que o sujeito contemporâneo parecer ter ao alcance da mão a toda hora e para os mais diferentes fins todas as imagens que lhe ocorram, o que observamos em nossa clínica é uma dificuldade crescente de enovelamento do Imaginário corporal. Teremos de explorar o por quê, nessa mesma civilização que desenvolve triunfalmente todas essas incríveis possibilidades no campo das imagens, a clínica parece mostrar que os corpos informam algo que faz obstáculo.

Nesse sentido, uma questão me parece importante que nos detenhamos: se com a expressão “O império das imagens” nos referimos a uma transformação somente definível em seu aspecto quantitativo ou se nela há em jogo algo mais inquietante. Miller assinalou que a vontade em jogo que opera atrás desse império veicula uma lógica que é sempre de incitação, intrusão, provocação e forçamento em relação a qualquer limite que se queira opor(1). Quando repetimos que a incidência nos agrupamentos sociais do efeito conjunto do discurso da ciência e do discurso capitalista implica, por estrutura, o questionamento de tudo aquilo que antes ocupava a função do que Lacan chamou de Nomes do Pai, não estamos fazendo sociologia psicanalítica e sim nos referindo a questões palpáveis diariamente em nossa prática.

Para sustentar esta afirmação tem-se antes que fazer uma precisão. Devemos distinguir o modo absolutamente singular no qual habita em cada um essa instância de gozo repetitivo, que levou Freud a postular a existência da Pulsão de Morte, dos modos de gozo coletivos que se elaboraram, construíram e sustentaram nos agrupamentos humanos durante séculos e se decantaram em traduções, sabedorias sedimentadas, etc.(2). É a isso que aprendemos com Lacan a chamar de os Nomes do Pai, que encarnam, em cada uma da diferentes culturas, a dimensão do grande Outro ao qual cada uma se refere. Esses modos de gozo já supõem um modo de fazer algo com essa instância de gozo repetitivo, por definição opaco e extraviado, dado à ausência da fórmula da relação sexual.

Diante de cada nova invenção que surge do discurso da ciência, sua inserção nos mercados somente pode fazer tábua rasa com as organizações culturais prévias que, assim, demonstram seu estatuto de semblantes. Tomando um só exemplo: podemos acaso supor que os modos que prescreviam o encontro entre os sexos poderiam ficar isentos das incidências do efeito Tinder?

Podemos então afirmar que o tipo de imagem que se faz império sob a promessa do impossible is nothing é uma ilustração perfeita do que Mauricio Tarrab colocava como a matriz operante por detrás desse império(3). Diante dele o sujeito contemporâneo fica cada vez mais só e sem recursos frente aos embates com o real.

Como assinalou em reiteradas oportunidades Éric Laurent, Lacan captou com precisão que Freud chegou numa época na qual já não sobrava mais do que o sintoma como o que verdadeiramente interessava a cada um, pois interroga sobre aquilo que vem perturbar o corpo.

Pois bem, devemos, em primeiro lugar, nos reconhecer nesse mesmo movimento que tantas vezes cansamos de descrever com tanta exatidão.

Nossa prática, esteja ou não definida nesse movimento, aponta a confrontar o sujeito colocando em questão os Ideais com que cada um sonha em poder, finalmente, normalizar-se, com essa mesma instância repetitiva que resiste à operação de deciframento e que demonstra que cada um é habitado por marcas singulares que são produto do puro encontro entre lalíngua e corpo, e induzem a um gozo parasitário, que não faria falta, e que, por estrutura, desordena o sonho do gozo suposto em sua natureza corporal.

Como diz Lacan: “O sintoma é a irrupção da anomalia que consiste o gozo fálico, na medida em que nele se desdobra amplamente aquela falta fundamental que qualifico de não relação sexual”, e acrescenta: “Que o gozo fálico se torne anômalo ao gozo do corpo é algo que se percebeu muitíssimas vezes”(4). Recordemos brevemente o itinerário de nossa formação: das especularidades do imaginário aos poderes do simbólico articulado ao universo das regras. Dos poderes do simbólico à sua debilidade frente ao real do gozo que resiste e que o sentido não faz mais do que aumentar.

Coloquemo-nos a respeito algumas perguntas básicas:

É somente esse real que nos orienta? Então, o desejo do analista é um desejo puro? Lembro a propósito deste ponto uma indicação precisa de J.-A. Miller:

Caso se contentasse em fazer par com as exigências libidinais do sintoma, o pensamento do psicanalista, quando chega nessa zona na qual desfalece a interpretação, nessa zona da análise onde experimentamos a paralisia, correria o risco de ficar aspirado, fascinado, cativado, imobilizado pelo que do sintoma gira em falso(5).

Diante dele assume importância não esquecer que, no final de seu ensino, Lacan interroga de maneira renovada o registro do Imaginário, assinalando que diante do sem limites do empuxo ao gozo que habita cada um, o único limite real não é dado pelo Nome do Pai, mas pela maneira na qual cada corpo encontra a forma de manter enoveladas suas três consistências.

Honrando a terra que nos hospedará em setembro, tomo duas breves referências de dois testemunhos de AE: um de Ram Mandil e outro de Marcus André Vieira.

Ram Mandil está no final de sua análise com uma imagem muito particular extraída das três fotografias que existem de seu pai em um campo de concentração. Em todas ele aparece sem camisa, com o corpo esquelético, porém sempre sorrindo. Assinala então o que isso lhe evoca: “sob a sombra da morte, o sorriso da vida”. Diz então a seu analista: “Amar a vida, fazer de minha vida minha parceira, eis aqui para mim um novo nome do pai, um novo sinthoma. É isso!”(6).

Marcus André Vieira também refere o surgimento inesperado de uma imagem que só aparece no final de sua análise. “Em um dos últimos encontros vejo como o analista ri mostrando os dentes. Nunca havia reparado isso. Só me recordava de seu sorriso, mas não de seu riso. Ao comentar esta observação ele me oferece o que tomei como um último presente, me faz lembrar do sorriso do gato de Alice para indicar o que resta do analista no final. Aquele sorriso que agora levo comigo, que agora está escrito em mim, sempre será para mim riso, cheio de dentes, mordida…”(7).

Poderíamos dizer que cada uma dessas imagens vale mais do que mil palavras. E isso sempre será uma verdade mentirosa. Porém, teremos de obedecer a Wittgenstein e dizer que o que não pode ser dito deve ser calado? Ou trata-se para cada um deles de mostrar algo que, por definição, só pode transcorrer em um campo fora do simbólico?

Não colocou Lacan ali, entre o Imaginário e o Real, uma enigmática referência a um Outro gozo que se chama Gozo da vida? O que nos ensinam estas referências a respeito da efetividade da prática analítica hoje?

 


 

  1. Miller, J.-A. “El inconsciente y el cuerpo hablante”, en wapol.org
  2. Miller, J.-A. “Extimidad”, Editorial Paidós, Buenos aires, 2010, pág 52.
  3. Tarrab, M. “El ojo bulímico y el lobo”, en Flash 04, oimperiodasimagens.com
  4. Lacan, J. “La tercera”, en Intervenciones y textos 2, Ediciones Manantial, Buenos Aires, 1991.
  5. Miller, J.-A. “El lugar y el lazo”, Editorial Paidós, Buenos aires, 2013, pág 305.
  6. Mandil, R., “Conjunto vacío”, en Revista Lacaniana de Psicoanálisis, número 15, Grama ediciones, Buenos Aires, 2013, pág 92.
  7. Vieira, M. A. “Primer Testimonio”, en Revista Lacaniana de Psicoanálisis, número 14, Grama Ediciones, Buenos Aires, 2013, pág 92.

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

O Impacto das imagens e o corpo falante

Inicio a partir do tema do próximo Encontro Americano: “O império das imagens”. Podemos contrapor o “império das imagens” ao “corpo falante”. A primeira expressão dirige-se ao que convencionamos chamar “a cidade”, propondo-lhe uma leitura: vivemos o império das imagens. A segunda, mais enigmática, dirige-se à nossa comunidade, ela nos convida a avançar em nosso entendimento sobre o modo como o analista deve situar sua prática no momento atual da civilização, centrando-a no inconsciente como corpo falante mais do que como mensagem cifrada.

A proposta de J.-A. Miller, que é vetor para nossa comunidade, é essa: o inconsciente, hoje, muitas vezes se apresenta mais como corpo falante do que como Outra cena.

Nossos dias, como andam? O tema do ENAPOL nos ajuda. Ele indica, para começar, que nossa civilização fez sua escolha, colocando os poderes da fala submetidos ao imaginário. Assim entendo a ideia de um “império” hoje, radicalmente diferente do império do pai, muito mais uma presença maciça das imagens com sua exigência superegoica de subordinação. A referência aqui é Império de Negri, e a Biopolítica de Deleuze.

Em termos de Lacan, diria que nossos dias vivem no imaginário “como se” o simbólico não existisse. É o mundo das imagens tomadas como real e não como significantes. Este mundo, com suas certezas imediatas, impera sobre o tempo linear das narrativas com suas certezas conquistadas.

Um exemplo, o modo como lidamos com os exames de imagem cerebral. Elas são tomadas por si, como se real fossem. Antes havia toda uma discussão diagnóstica entre pares para decidir o que significavam aquelas manchas. Era no contexto dessa narrativa clínica que as imagens ganhavam a função de representar um real. As imagens podiam ser um ícone do real, mas sempre em uma narrativa que vinha traduzi-las como índices de uma doença. Hoje, as imagens são tidas como o real em si, sem discussão, pois o diagnóstico não é mais uma produção discursiva, seus elementos de composição tendem a ser processados pelos computadores. São eles que a princípio realizam o diagnóstico.

No extremo oposto, a psicanálise não para de demonstrar como uma imagem (em um sonho, por exemplo) pode ser tomada em um jogo de dizer, na estrutura do significante. Neste caso ela poderá vir a dizer mais muito do que indica, por isto abre a dimensão do enigma. A referência aqui é a conferência “SIR” de Lacan que em 1953 já definia “só é material para a análise aquele elemento que possa significar outra coisa que não ele mesmo”.

Mas para isto é preciso que haja um espaço para o enigma, é preciso que haja um vazio no saber, um ponto cego na estrutura. Hoje, quando todos consideram que não há mais impossíveis para a ciência, fica difícil levar alguém a abrir-se à dimensão do enigma e, sem enigma, como contar uma história? O Outro do discurso e da narrativa exige este ponto de furo. A falência das narrativas, por ocaso da falta, do desejo e do furo, seriam a falência da psicanálise?

 

O corpo falante

Ora, o inconsciente nunca foi somente um discurso do sexual recalcado. Se mergulhamos em nossa história, como fazemos em uma análise, sempre topamos com algo que fala sem ser, porém, narrativa, discurso articulado. Cenas, fragmentos de cenas de cheiros e imagens: o inconsciente nem sempre é Outra cena (com estrutura encadeada análoga à da consciência), é mais uma alteridade disparatada não encadeada, mas assim mesmo linguageira, que Lacan chamou de lalíngua.

É o que busca destacar a expressão “O corpo falante”, com um ganho, de peso: dar lugar a essa experiência da língua antes da língua. Ela não é coisa de um céu das ideias, mas uma experiência de corpo, ou melhor, de um corpo “pré-corpo”, já que o corpo é habitualmente o espaço de uma unidade e estamos falando de algo essencialmente múltiplo. Assim, não se experimenta exatamente o corpo falante, já que uma experiência supõe uma subjetivação, por um eu bem arrumado. Por isto, dizemos, com Lacan e Miller, que o corpo falante, como lugar de lalíngua, não se experimenta, ele apenas se apresenta, ele é vivido como um evento, um “acontecimento de corpo”.

Dito de outro modo: uma análise envolve toda uma série de experiências corporais (da Madeleine de Proust ao mal-estar causado por uma lembrança desagradável) vividas por um eu, em seu corpo, como reação ao material inconsciente. Mas ela envolve também eventos corporais que não são do ego e de seu corpo, mas de algo que o perturba por não ser bem a experiência de um Outro discurso afetando o corpo e sim o falante do corpo que vibra e produz um acontecimento. É o falante de lalíngua que faz vibrar algo corporal que, no entanto, não é nenhum órgão do corpo, muito mais “entre os órgãos” para usar a expressão célebre de Freud para localizar seu inconsciente.

O tema que nos convoca para o VII ENAPOL atualiza o paradoxo do espelho: sua condição de suporte da identificação, mas também objeto que causa angústia. Isso se enraíza nas duas faces do drama do espelho, que Lacan desenvolve em seu texto de 1949[1], e do qual nos oferecem testemunhos a clínica da neurose, a das anorexias-bulimias, a das psicoses e, por que não, as experiências com adolecentes.

Momento crucial na medida em que torna possível o enovelamento das dimensões Real, Simbólica e Imaginária. Momento estruturante, onde o triunfo do infans é a realização de uma identificação, reconhecer-se em uma imagem de si mesmo. Porém, também paradoxal pois a imagem desse corpo que se reconhece no espelho não é a mais própria, vem do Outro, da imagem do outro que se reconhece antes da sua. É uma operação libidinal, circulação de libido que é perda de gozo – que até alí era gozo realizado, autoerótico – mas também condição para que a imagem se sustente e faça de um corpo fragmentado – real do corpo em fragmentos – uma unidade formal e imaginária. Este é o paradoxo: “A imagem em sua exterioridade é constituinte em relação ao ser do sujeito” [2].

Sem dúvida em nossa prática nos deparamos com acontecimentos de corpo que revelam um malogro, uma ruptura da relação do ser falante com a imagem narcisista de si mesmo. São experiências de extravio do próprio corpo certas anorexias, quando já não se reconhece como próprio. Trata-se de um defeito fundamental na constituição narcísica dessa imagem, que se mostra insuficiente para manter unidos os registros Simbólico e Real, e, portanto, insuficiente como suporte identificatório. “Uma devastação da imagem [ravage dell’imagine] que permite que o corpo se faça presente em seu puro estatuto de objeto a” [3]. Por isso, o pulsional retorna do exterior como imperfeição da imagem, revelando a dificuldade em simbolizar a dimensão real corporal. A imagem do corpo magro permite que nos aproximemos de uma diferença entre a clínica das neuroses e o que mostram os diversos quadros de anorexia. No primeiro caso, essa imagem pode jogar como significante do desejo do Outro, fazer do semblante o que vem no lugar da ausência de falo para entrar na dialética desejo-gozo. E conhecemos o empenho em cultivar a figura magra em nossa época, através de tratamentos variados que incluem dietas, exercícios, cirurgias. Porém, esse corpo magro pode encarnar uma paixão – algo que não nos é estranho na anoréxica contemporânea – e como tal ser testemunha do apego narcisista, da fascinação mortífera com a própria imagem especular que, em sua magreza, encrna um ideal de beleza que se separa do corpo sexual e coloca no centro o objeto olhar, não para causar o desejo do Outro – tão familiar à histérica – mas para provocar a angústia do Outro.

Mais radicais ainda são os casos de anorexia psicótica, onde “não é somente gozo do vazio, mas também uma forma de tratamento do vazio, do risco psicótico de uma dissolução da imagem do corpo”[4]. Alí onde se experimenta ruptura do vínculo imaginário entre corpo e sujeito, há uma particularidade na anorexia psicótica na qual os ossos adquirem relevo na imagem narcísica, porém insuficiente para formar o corpo, dar-lhe identidade. Em seu lugar, a visão do osso na magreza extrema apazigua o psicótico pois o resgata da angústia diante da decomposição do corpo. O corpo-osso, o corpo-esqueleto, transforma-se em objeto, dá consitência ao corpo, “unariza o sujeito, pois o corpo anoréxico não se deixa fecundar pelo símbolo. Essa é sua esterelidade fundamental”[5].

Nomeando-as como imagens rainha, J.-A. Miller designou o corpo próprio, o corpo do Outro e o falo, como imagens que “sobrevivem no mundo das imagens em psicanálise”[6]. Todas são o corpo e, portanto, “são o lugar onde o imaginário se liga ao gozo”[7]… sempre que façamos delas um significante. E aí está o tropeço, inclusive o fracasso, em alguns dos exemplos mencionados.

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

 


 

[1] Lacan, J “O estádio do espelho como formador da função do Eu”. In: Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1983.

[2] Recalcati, M. (2003): Clínica del vacío. Anorexias, dependencias, psicosis, p. 80, Síntesis, España

[3] Recalcati, M- Op. Cit., p 54

[4] Recalcati, M: Op. Cit., p. 72.

[5] Recalcati, M: Op. Cit., p. 64.

[6] Miller, J.-A., “A imagem rainha” em Lacan Elucidado, Rio de Janeiro, JZE, 1997, p. 581.

[6] Miller, J. A., Op. Cit., p .585.

Estamos em um momento onde a presença do feminino e da mulher mudam as coordenadas de gozo do sujeito contemporâneo. Mas, não é apenas a aspiração feminina atual, é também o império da imagem que parece facilitar hoje que uma identificação com a imagem da mulher dê resposta à falha na construção do corpo.

Esta Identificação imaginária dá unidade ao corpo diante da falha do Espelho e pode suprir a falta de significação fálica nos casos em que essa lógica não esteja presente.

É importante ter em conta que o que está em jogo aí pode não ser uma escolha sexual, mas uma resposta à falha na corporização, resposta que interpreta o gozo. Quando esta feminização se dá no caso de crianças, vemos que, embora não seja tempo ainda de inventar-se uma sexuação, não podemos dizer que esta precoce interpretação do gozo não terá efeitos sobre sua escolha posterior. No entanto, isso não faz com que nos impliquemos nela.

Por exemplo, em um caso de uma criança que vem ao consultório e está em posição de realizar a fantasia materna, fazendo Um com a imagem da irmã, realizamos construções na sessão para que não diminuísse a dieta, para dar volume ao corpo e vivificá-lo, para que não ficasse reduzido a seu envoltório.

 

Tradução do espanhol: Mª Cristina Maia Fernandes

A pornografia, onde exibem-se corpos em gozo, enuncia a verdade de que a relação sexual não existe. A pornografia pela Internet faz uso da inexistência da relação sexual. Vende-se sexo e comercializam-se fantasias para todos. Voyeurs, exibicionistas, sadomasoquistas, a dois ou a três; como não há cardápio fixo para a relação sexual, a Internet oferece cardápios a la carte.

Se Miller, em sua apresentação do X Congresso, convida os analistas a se interessarem por esse fenômeno, obviamente não é pela vertente de dar uma resposta a partir da moral. A pornografia como sintoma da civilização é o formato apresentado hoje pelo discurso capitalista, forcluindo o singular da fantasia de cada sujeito, para promover uma indústria que vende sexo para todos: os sujeitos não têm mais de recorrer às suas fantasias porque estas aparecem na Internet. Responder a essa massificação a partir da psicanálise, implica oferecer em nossos consultórios uma escuta que propicie os mouses de cada um, que não estão à venda na Internet.

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

A hipótese que pretendo desenvolver aqui é a de que o texto A Imagem Rainha é homólogo ao texto A Terceira.

A Imagem Rainha, de J-A. Miller, foi apresentado no V Encontro Brasileiro do Campo Freudiano por ocasião da fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, no Rio de Janeiro, em abril de 1995. Encontra-se no livro Lacan Elucidado*, que reúne as palestras de Miller feitas no Brasil desde 1981 até a fundação da EBP.

A Terceira**, de J. Lacan, está na revista Opção Lacaniana. É uma intervenção de Lacan no VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, que aconteceu em Roma, em novembro de 1974, mesmo ano em que proferiu o Seminário XXII, R.S.I.. Pertence a uma série de três intervenções de Lacan, em Roma, sendo que a primeira é Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, de 1953, por ocasião do Seminário I, Os Escritos Técnicos de Freud e, a segunda é A psicanálise. Razão de um fracasso, de dezembro de 1967, por ocasião do Seminário O Ato Analítico. É como se ele, Lacan, fizesse um movimento de après-coup sobre estes textos, acrescentando, a cada vez, os tantos anos que se interpõem entre eles.

Cada um, a seu modo, trabalha a partir da noção de gozo e da topologia do nó borromeano, avançando além do Édipo e da lógica cartesiana. Miller está às voltas com o imaginário e Lacan sustenta A Terceira pelo real que ela comporta.

Miller, logo na primeira página, propõe introduzir a expressão imagem rainha como homóloga ao significante-mestre, uma no imaginário e o outro no simbólico. Lacan, ao desenvolver a noção real, colocará o objeto como homólogo ao S1, um no real, outro no simbólico.

Na matemática, consideram-se homólogos os elementos equivalentes, correspondentes, embora mais ou menos diversos. Proponho, então, alinhar estes termos da seguinte forma:

(imagem rainha, I), (significante-mestre, S), (objeto a, R)

Os dois, desde o início, privilegiam o objeto olhar como encarnação do objeto a, como suporte do gozo. Apresentam o trajeto desde inscrever inicialmente o gozo, como imaginário, na ordem especular, no estádio do espelho, até chegar na pulsão escópica como paradigma do objeto a, não mais reduzindo o imaginário ao especular e, avançando, esvaziando-o de qualquer substância ou semblante possível (seio, fezes, olhar, voz e falo- os objetos parciais), para chegar ao objeto de pura fórmula, no real, onde não há nenhuma esperança de alcançá-lo por meio da representação.

Miller, para desenvolver isto, se vale do relato de Freud e sua comoção ao visitar a Acrópole para mostrar como todos os enunciados por ele proferidos seriam defesas frente ao gozo, a um mais-de-gozar visual contido na imagem perceptiva e seu júbilo excessivo. O olhar do pai surge para funcionar como censura, para interditar o gozo. A visão o preenche e é aí que surge o olhar do pai, que recai sobre ele, em seu gozo. Miller aponta que este olhar surge antes de tudo do mais-de-gozar que provoca a censura. A realeza da imagem, que realiza a captura significante do gozo, acontece sob o império do olhar que seria um “a mais”, não uma imagem e, sim, “o sem imagem”.

Em A Terceira, Lacan, por sua vez, esvazia o objeto olhar a partir da operação significante tal qual desenvolveu ao longo de sua obra, privilegiando na estrutura do simbólico o efeito metonímico, de suporte de gozo e não seu aspecto metafórico, de sentido, de significação ou sexual. O objeto olhar só pode ser compreendido como objeto a enquanto um estilhaço do corpo, destacado do corpo e somente pela psicanálise. O objeto a só se mantém pela existência do nó que o constitui e só pode ser apreendido no bloqueio do simbólico, do imaginário e do real. Isto o torna operante no real como o objeto do qual justamente não há ideia, relacionado à lógica.

Quanto ao significante-mestre, Miller aponta que, mesmo que ele seja o significante distinto pelo qual o sujeito busca ser representado no simbólico e veiculado na cadeia significante, efetivamente, não existe um significante privilegiado – a própria definição de significante é um elemento suscetível de metáfora e metonímia.

Lacan coloca o significante-mestre como um representante comercial que insere o sujeito no discurso sem, no entanto, dar conta do saber que é sempre impossível de ser reintegrado pelo sujeito. É o significante-mestre que só se escreve ao fazê-lo sem nenhum efeito de sentido. A interpretação não é uma interpretação de sentido mas joga com a equivocidade, onde o saber em que consiste o inconsciente somente está enlaçado ao corpo falante pelo real do qual se goza.

Já o imaginário, tanto para um, como para outro, será abordado pelo fantasma e localizado no corpo.

Isto é amplamente desenvolvido no texto de Miller, mesmo porque este é seu tema. Apresenta três imagens rainhas da psicanálise – o próprio corpo, o corpo do Outro e o falo, todas do corpo, questões do corpo. A estas imagens correspondem três operadores, sendo o espelho para o próprio corpo, o véu para o corpo do Outro e, para o falo, toda uma série de palavras – o apoio, o pedestal, o enquadre, a fenda, a janela. Estes operadores são operadores visuais que delimitam e isolam o que fica exposto como uma imagem una e que, como tal, passa a ser significantizada e investida na fantasia, termo que a tradução utiliza para se referir ao fantasma.

Miller articula que a fantasia, por um viés, é considerada uma frase que tem a função de um axioma, e que só podemos fazer da imagem um elemento do registro imaginário se fizermos dela um significante. Por outro, afirma que não há fantasia que não se ofereça na ordem imaginária, onde a imagem é uma modalidade inevitável da fantasia. A imagem fantasística é uma imagem imóvel, um elemento suspenso, fixado e errático, que subsiste a todo tratamento dado pela palavra. Nela se concentra os ditos do analisando e as deduções do analista. A diferença entre a imagem rainha e o significante mestre seria que a imagem rainha não representa o sujeito mas, se coordena com seu gozo. É aí que surge a antinomia entre o que é próprio ao campo da realidade perceptiva, que supõe o recalque do sujeito, e o que é lembrado que, no exemplo de Freud, é a extração do objeto a, que veio se inscrever no espetáculo como mais-de-gozar e como olhar. É a distinção que Lacan reestabeleceu entre percepção e perceptum, uma nova teoria da imagem, por onde ele passa a interrogar o campo da percepção a partir do desejo e do gozo, enquanto Freud o aborda a partir do recalque, eludindo o mais-de-gozar.

Lacan introduzirá o imaginário pelo sentido que é abordado pelo que surge na junção entre o simbólico e o imaginário, e reduzindo a função da representação ao corpo, localizando-a no corpo. Sem papas na língua, afirma que o pensamento consiste em palavras que introduzem no corpo algumas representações imbecis. O corpo, ele o introduzirá na economia do gozo pela imagem. A relação do homem com seu corpo é da ordem do imaginário, é onde a imagem alcança seu valor no processo germinal, desenvolvido no estádio do espelho, e no que passará a estabelecer a relação com o Outro.

Numa finesse, introduz o mais além do estádio do espelho, dizendo que “há para cada um algo que se ama ainda mais do que sua imagem” e que sabemos, se refere ao objeto a. Encontramos aqui o desejo implicado na relação com o objeto através do fantasma, e onde o fantasma é a interpretação mesma do desejo, em seu ciframento, em sua relação com a pulsão, colocando o objeto no estatuto do real. Analisar o fantasma é encontrar nele a estrutura que se revela, uma unidade-elemento que promove um ponto de basta no deslizamento do sentido, do deciframento.

Em A Terceira, Lacan coloca o imaginário como o registro que operaria no sentido de fazer parar o deslizamento infinito do real que não cessa de não se escrever, e do deslizamento do simbólico que não cessa de se escrever. O imaginário seria o registro que se manifestaria no sentido de atar os outros dois, constituir o nó.

Os registros, na psicanálise, e somente nela, podem estruturar-se cada um pelos seus elementos correspondentes – imagem rainha, significante mestre e objeto a, na condição de não constituir um novo imaginário instaurando sentido, e sim, uma orientação do real.

Mas Lacan não para aí! Coloca que este nó, é preciso sê-lo, oferecê-lo como causa de seu desejo ao analisante. Operar através da interpretação que abole o sentido, visando a reduzir o gozo fálico, e ao que do sintoma está fora da linguagem, suportar enquanto ato, na transferência. É o que ele desenvolverá em seu próximo seminário, o XXIII, o sinthoma, colocando os três registros desgarrados entre si e agarrados por um quarto nó, o sinthoma.

Uma última frase, de Lacan, em A Terceira: “As bugigangas, por exemplo, será que realmente tomarão a dianteira? Chegaremos a nos tornar nós mesmos realmente animados pelas bugigangas? Isto me parece pouco provável, devo dizer”.

 


 

*Lacan Elucidado, palestras no Brasil, Miller, Jacques-Alain, Jorge Zahar Editor, p. 575

**A Terceira, Lacan, Jacques, Opção Lacaniana, nº62, Edições Eolia, p. 11