EDITORIAL

Mercedes Iglesias

Os textos que serão lidos a seguir foram todos, de um modo ou de outro, elaborados a partir de uma reflexão em torno das imagens e das repercussões que têm na subjetividade humana de nossa época.

Joel Meyerowitz, fotógrafo, mostra o modo como concebe a fotografia e assinala um aspecto que me parece fundamental: explica a maneira pela qual se constrói uma imagem. Quer dizer, mostra o modo como toda imagem é a construção de uma moldura onde aparecerá um cenário. Em sua Leika, além disso, não pode observar outra coisa, a moldura exclui toda possibilidade de ver algo mais. Para ele não se trata de fotografar objetos, coisas, se poderia dizer que não se trata de reproduzir a realidade, coisa que fazem muitos bons fotógrafos. Para ele, ao contrário, a moldura supõe aceitar que algo entrará nela e outras coisas ficarão fora. E é isso que interessa: a maneira como, selecionando o que vai dentro, capta um modo de relação não falada, captam-se relações que aparentemente não estão relacionadas entre si e, para ele, isto é justamente o humano. Poder captar algo do potencial, do magnetismo que se estabelece nessas imagens, que podem parecer desconexas, porém ao fotografá-las nos falam de quem somos.

Maria Eugenia Cardona da NEL-Miami, analisa a relação do selfie (nomeada em 2013 a palavra do ano!) e do corpo. Passamos do autorretrato ao selfie, a expor a outros anônimos algo do íntimo. Gozo do olhar sem palavras. O sujeito tenta dar-se um corpo através do semblante. Certamente nos mostra o modo pelo qual se constrói um corpo que não se tem, e a imagem vem tampar o que, de toda maneira, não deixa de insistir. A ilusão de completude que devolve a imagem é o que faz do selfie uma prática adorável, tal como assinalou Lacan, o amor próprio como causa do imaginário para adorar esse corpo que nos devolve a imagem. Porém, também denuncia que a imagem do corpo como espetáculo promove o despudor. Distanciamo-nos da vergonha. E isto é, justamente, uma das consequências que mostrou esse mundo de imagens, que o parletre goza desse espetáculo, que não se trata só de gozar da própria imagem, que há mais, que quer gozar mais além.

Do mesmo modo encontramos a importante denúncia de Edwin Jijena da NEL-Tarija, desta vez relacionada ao mundo da ciência. Evidentemente, como assinala, as imagens nesse projeto aprovado por Obama, passam a ser tema central da ciência. Brian considera-se uma iniciativa na qual se empregará muito dinheiro para que se investigue o modo de funcionamento do cérebro, para detectar doenças cerebrais e diagnosticar doenças mentais e, certamente, o comportamento humano poderá ser estabelecido a partir desse conhecimento do cérebro. Inumeráveis disciplinas envolvidas, enormes quantidades de dinheiro, apostam, como marca o autor, no valor superlativo das imagens. Denuncia que estamos em uma época que prefere um sujeito silenciado, como se a imagem pudesse captar o que fica oculto ao olhar e à palavra.

Antonio Beneti, da EBP, faz dois percursos: por um lado a história da tatuagem na cultura e, por outro, os textos de Lacan e Miller para entender essa inscrição no corpo. Certamente, ainda que tenha diferentes conotações ao longo das culturas, a tatuagem pode representar um estigma, marcas correspondentes a seres em desgraça ou desaprovados, a representação de Satanás para a Igreja, símbolo de valentia e coragem na Polinésia. De qualquer modo que o signifiquemos, tanto nas culturas como na história, todas elas, como inscrições na pele, são dirigidas ao olhar do Outro. Segundo o autor, os adolescentes da atualidade as fazem para mostrar um conflito, servem-se do imaginário para que sejam perceptíveis. A tatuagem é um modo de apelar ao imaginário, porém também invade o campo escópico e a clínica. Quer dizer, o olhar e recorrer ao imaginário como modos de dar solução ou expressão à problemática subjetiva. No primeiro ensino de Lacan há sujeito do inconsciente na tatuagem, no último, há um falasser na tatuagem.

Beatriz Udenio, da EOL, narra sua experiência em relação ao que criou como ‘A TEVE’ em sua infância. Um acontecimento gerou uma queda ‘de seu império da dita’ e uma contingência fez com que aparecesse no mesmo momento a televisão em sua casa. Mostra como em sua relação com o olhar produz-se um horror que leva a que o olho aponte a outro lugar. Neste caso, ‘A TEVE’ foi um lugar para o desenvolvimento da imaginação, para tentar recuperar o valor da palavra, ter uma garantia da palavra em essas cenas de ilusão. O que não se realiza. Por isso, sustenta que quando a palavra não é performativa, a imagem reina, um modo muito pertinente de relacionar a imagem e a palavra. A saída é que cada um, no singular, veja como se serviu dos Black Mirrors a seu alcance.

Para terminar, quero destacar o texto de Carlos Márquez da NEL-Caracas, que contrapõe o caráter performativo desse império, ‘uma soberania dócil para cada um’. Diante do circo-ular do mercado, opõe a clínica pelo sintoma, que marca justamente o que não anda; diante da realização imaginária e da renegação da morte, opõe o inconsciente como o não realizado e, frente à feminização do mundo, a psicanálise orienta para a feminilidade, como o reino do não-todo.

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

Vídeoflash 5 –  Joel Meyerowitz – Edição de Marcelo Veras para o Flash 09

Os escritos no corpo, mais precisamente na pele, sempre existiram na história da humanidade, convocando o olhar do Outro. Desta forma, as tatuagens estariam inscritas sob a forma de um nó: pele, corpo e olhar do Outro.

Paul Valéry, diz que o mais profundo é a pele; ele a considera como um lenço humano onde se desenha e pinta. As crianças, por exemplo, brincam, desenham, pintam e escrevem sobre o corpo. Tatuam-se nesta atividade lúdica. Um provérbio chinês diz que “um corpo sem tatuar é um corpo estúpido!”.

A palavra tatuagem procede da antiga língua do Taiti: ato de desenhar. A prática da tatuagem recebeu, ao longo da história, em cada época e em cada cultura, diferentes tratamentos, leituras e interpretações, numa “prática do sentido” dado pelo Outro da Cultura da época.

Os gregos e os romanos, por exemplo, de onde vem nossa cultura ocidental, não a consideravam uma prática respeitável e a usavam para marcar escravos, criminosos e gladiadores. Usavam-na para marcar aqueles que caíram em desgraça ou desaprovação. Assim, até hoje, uma certa marca de “marginalidade” acompanha quem se tatua.

A palavra latina para tatuagem era: stigma. Assim, “o tatuado era um estigmatizado”. Talvez seja este o sentido universal mais popular, ainda vigente…

Historicamente, a igreja a considerou um sinal de paganismo a ser erradicado, ou uma manifestação dos poderes de Satanás. Mas muitas referências nos textos antigos indicam que era comum o costume dos primeiros cristãos tatuarem uma cruz, o nome de Cristo, um peixe ou um cordeiro, como signo de identificação e pertinência religiosa.

Os árabes, principalmente as mulheres, tatuavam “dagg” ou “daqq”, elemento ornamental ou terapêutico, cumprimento de um desejo com a intenção de preservar o amor de um homem ou facilitar a indução da gravidez.

No antigo Testamento existe uma passagem onde se proíbe a tatuagem ou as escarificações. Na verdade, o judaísmo não permite nenhum tipo de marca no corpo.

Já na Polinésia, a prática da tatuagem é bem desenvolvida; é signo de identidade pessoal nas ilhas do Pacífico. Na antiga Samoa, tatuar era um ofício herdado com posição privilegiada. A tatuagem no rapaz marcava uma transição para o adulto e era prova de virilidade e coragem.

E, assim, a encontramos presente em vários povos do ocidente e oriente, em várias culturas, milenarmente, com várias funções e inúmeras significações sociais: sinal de beleza, devoção religiosa, marca de transição do jovem ao adulto, distintivo do clan ou tribo, meio de identificação pessoal ou forma de demonstrar valor ou virilidade, estímulo de atração sexual, talismã para afastar maus espíritos, parte necessária dos ritos funerais, diferenciação entre a mulher casada e a solteira, prova de amor, forma de marcar e identificar escravos, marginais e convictos (segregação). Também podia ter fins curativos e preventivos. Os temas representados eram eróticos, guerreiros, religiosos, alusivos a mitos ou lendas, plantas, animais ou cenas da vida cotidiana. Mas sempre uma marca inscrita no corpo, um inscrito sobre a pele, endereçado ao olhar do Outro.

Para Severo Sarduy (1996), em seu trabalho “Escritos sobre o corpo”, em que trata da ligação entre literatura e tatuagem, a tatuagem é um escrito sobre o corpo. Ele confere à tatuagem uma dimensão equiparada à literatura e sustenta que esta deve ser moldada pela operação do desenho dérmico, que implica circunscrição, punção, dor e colorimento. Privilegia o campo escópico, o olhar, o espaço e o tato. Para Sarduy, a literatura é a arte do pictórico. A autobiografia de Sarduy pode ser reconstruída a partir das inscrições em seu corpo em forma de cicatrizes e suturas por acidentes e enfermidades, que constituem uma verdadeira arqueologia da pele. Em “El Cristo de la rue Jacob”, escrito autobiográfico, o corpo humano, para aceder ao sentido, tem que se transformar em texto móvel, na marca de uma inscrição e um deciframento.

E a pele funciona como espelho e superfície refletora.

Assim, em “Um testigo fugaz y disfrazado”, ele diz:

“Sirva mi cuerpo cifrado

De emblema o de silogismo

La piel es um blazon vivo

Se descifra em negativo

Se lacera a si misma”

A adolescência parece ser o período em que há o maior “trabalho da tatuagem”, funcionando como coadjuvante de uma ampla gama de conflitos próprios da idade. Ao colocá-los na superfície do corpo, servindo-se do imaginário, tais conflitos ficam perceptíveis.

A tatuagem, hoje, é um fenômeno social que se intensifica, se prolifera, mas é cada vez mais singular. São tatuagens esquisitas, incompreensíveis, ininterpretáveis, nesse mundo onde o imaginário tem um papel prevalente em relação ao simbólico.

Atores e atrizes de toda ordem e de todos os campos (cinema, teatro, televisão, pornô, etc) se apresentam com seus corpos tatuados, provocando o olhar centrado na tatuagem. Parece que vivemos uma época da “tatuagem generalizada”, de um “todos tatuados”: adolescentes e jovens “praieiros”, “acadêmicos”, “baladeiros”, médicos, juízes, etc. É algo que chama a atenção e invade o campo escópico e o da clínica.

Quando surge, hoje, alguém tatuado, olha-se a tatuagem. É como se o resto se apagasse. Trata-se de um detalhe que adquire maior visibilidade que o todo corporal.

A tatuagem no ensino de Lacan

Tentemos pensar a tatuagem ontem, no século passado e hoje, no século XXI, no contemporâneo, a partir de algumas pontuações de Lacan e Miller com relação ao tema.

Evoco de início o texto “A agressividade em psicanálise”¹, de 1948 (p 108 Zahar Ed.):

“Tem uma relação específica do homem com o seu próprio corpo que se manifesta igualmente na generalidade de uma série de práticas sociais – desde os ritos da tatuagem, da incisão, da circuncisão nas sociedades primitivas até no que poderia chamar-se o arbitrário procustiano da moda enquanto desmente nas sociedades avançadas esse respeito das formas naturais do corpo humano cuja idéia é tardia na cultura”. Há um sujeito do inconsciente na tatuagem…

No Seminário da Angústia², de 1963, p 277/303, Lacan refere-se a “mancha e pinta” e, mais precisamente na p. 278, fala das “virtudes da tatuagem”. No Seminário 11, em “olhar do cego e ponto zero do olhar”, Lacan não fala diretamente da tatuagem, mas refere-se à função da mancha em uma ocasião em que ele trabalha a questão do objeto olhar. Ou seja, a tatuagem mostra e esconde, tal qual a mancha (p 75).

Outra referência é o texto “Proposta sobre a mutilação”, de Jacques-Alain Miller (Correio da EBP, número 25, 1997, pg.33 – “Carícia sobre a pele”) ,que coloco no final do texto como “cloture”.

Recorreremos também a uma lição do Silet³ em que Miller trabalha a questão do olhar, ao seminário “Divinos detalhes”, recém estabelecido e publicado pela Paidos, e à Revista “Lazos” n. 6, da EOL/Rosario

Encontrei outra referência sobre o tema em um livro de Sílvia Reisfeld(4), uma psicanalista que faz uma leitura diferente da que um lacaniano faria dos fatos clínicos e da elaboração teórica de certas questões, já que se trata de um trabalho cujo eixo pode ser considerado fenomenológico. Embora trate da subjetividade, não aborda questões fundamentais para nós como a do gozo e a do objeto olhar, temas que só emergem no texto a partir de uma releitura com base nas referências que temos, tarefa que nem sempre é fácil.

Contudo, trata-se de um texto muito interessante, onde ela relaciona o tema com as tribos, a adolescência, as toxicomanias, com ilustrações de casos clínicos. Cita, também, dois filmes importantes sobre o assunto: “Pillow book” e “Irezume, a mulher tatuada”. Neste último, uma mulher tatua seu corpo a partir da fala do amante que aponta seu desejo de que ela tivesse uma tatuagem. A tatuagem torna-se, neste caso, um fetiche, que faz com que ela seja desejada pelo homem: parceiro-sintoma contemporâneo do lado masculino. “Divino detalhe” construído pela mulher para “fetichizar”, causar o desejo do homem que ama.

No seminário “O osso de uma análise” (5), (1998), Jacques-Alain Miller diz que, ao lado do parceiro-sintoma contemporâneo, a devastação, temos o fetiche, um pequeno detalhe, como parceiro-sintoma do homem.

Dessa maneira, para abordar a tatuagem, este fenômeno de massa contemporâneo e o laço social, é necessário pensar uma clínica que considere o falasser, a singularidade subjetiva, mais-além do universal fenomênico contemporâneo, pois a clínica psicanalítica é uma clínica do singular, do detalhe.

Então, além de uma função que cumpre a tatuagem, temos que escutar a posição de cada um com relação à sua tatuagem, em relação ao próprio corpo e seu endereçamento ao olhar do outro. Isto me permite formular uma frase: há um sujeito inconsciente na tatuagem (primeiro ensino), há um falasser (segundo ensino) na tatuagem.

Seria possível escutar no relato de dois fragmentos clínicos (que não relatarei aqui) que a tatuagem cumpre funções diferentes em cada um, possibilitando interrogar o que cada sujeito que se tatua quer com a tatuagem. Os dois casos clínicos sugerem que a tatuagem pode funcionar como uma “autocura”, no contexto de invenções singulares subjetivas, em determinadas situações, para certos sujeitos. Há uma relação singular do sujeito da tatuagem com o corpo, quando ela talvez vá mais além de um detalhe.

O livro de Sílvia traz uma série de itens ligados ao tema: tatuagem e toxicomania, adolescência, erotismo, letra, escrita no corpo, moldura corporal, a pele, o grupo de tatuagens, o olhar, entre outros. Não vou me deter neles, apenas menciono que podemos extrair dali o tema da relação da tatuagem com o laço social (tema que trabalhamos em outro texto publicado em Opção lacaniana on line).

No seminário “A Angústia”, a partir da página 235, e o capítulo “A esquize do olho e do olhar”, que se encontra à página 75 da edição brasileira do seminário 11, Lacan diz que se o que está por trás da mancha é o olho, o que está por trás da mancha é o olhar. Lacan distingue a função do olho e do olhar:

“Dito de outro modo, não deveremos, quanto a isto, distinguir a função do olho e a do olhar? Este exemplo distintivo, escolhido por mim – por sua localidade, por seu factício, por seu caráter excepcional – é para nós apenas uma pequena manifestação de uma função a ser isolada – a função, digamos o termo, da mancha. Este exemplo é precioso para nos marcar a preexistência, ao visto, de um dado a ver, (…) Se a função da mancha é reconhecida em sua autonomia e identificada à do olhar, podemos procurar sua inclinação, seu fio, seu traço, por todos os estágios da constituição do mundo no campo escópico. Percebemos então que a função da mancha e do olhar é ali ao mesmo tempo o que comanda mais secretamente e o que escapa sempre à apreensão dessa forma de visão que se satisfaz consigo mesma imaginando-se como consciência. ¹³

No seminário 11, Lacan faz equivaler a função da mancha, trabalhada por ele no seminário 10, à função do olhar. “Esse exemplo é precioso para nos marcar a preexistência ao visto de um dado ver.” Desta maneira, quando olhamos para a tatuagem, se não vemos o resto, é a mancha que recai, e nos concentramos ali sem conseguir tirar o olho dela, pois somos capturados por ela.

Lacan (14) acaba por abordar o olhar enquanto objeto a, no caminho da mancha e do sinal, observando que a mancha tem o estatuto de tiquê, estatuto de objeto pequeno a, que quebra o automaton do significante. A partir dessas referências, é possível dizer que, no seminário 10 e 11, Lacan articula a tatuagem com a questão do objeto olhar.

Lacan, no texto “Agréssivité em psychanalyse”(15), momento em que temos um Lacan kleiniano, associa a tatuagem com o corpo despedaçado e à prática social. Trata-se de uma abordagem da tatuagem inscrita no contexto dos laços sociais, ou seja, na relação do sujeito com o Outro. Lacan, neste momento, menciona os ritos da tatuagem.

Indago como a tatuagem poderia ser abordada a partir da questão do corpo despedaçado. Se a leitura do estágio do espelho evidencia que não há resto, que falta a dimensão do real, excluída da perspectiva narcísica e imaginária, seria interessante investigar se, em determinados momentos, a tatuagem surgiria como uma tentativa do sujeito de recomposição de uma imagem em determinadas situações, como nas psicoses em que temos o sujeito nessa tópica especular ou na histeria em que sujeitos podem também lançar mão da tatuagem para recompor algo da imagem endereçada ao olhar do Outro.

Por outro lado, a tatuagem, na amarração borromeana, com o fim de reparar o defeito do nó, ou seja, recuperar as propriedades borromeanas do nó, pode não apontar para a estabilização definitiva, mas apresentar-se como algo que produz um certo apaziguamento momentâneo que permite ao sujeito avançar. Podemos observar, na clínica, muitos casos em que isso não é suficiente, casos em que o sujeito faz uma tatuagem, depois outra, e outra, vai se tatuando sem alcançar uma estabilização, mas logrando atingir um apaziguamento.

Neste ponto, lembro o que disse Jacques-Alain Miller, em 1997, depois, portanto, da abordagem do último ensino de Lacan, observação que me parece bastante pertinente com a relação que faço da tatuagem com o laço social. No texto “Proposta sobre a mutilação”, ele fala da escrita sobre o corpo, não como mutilação, mas como uma carícia sobre a pele com função socializante:

“a mutilação ritual responde a uma exigência definida, codificada conforme a lei de um sistema biológico, social, religioso, em todo caso de um sistema constitucional assim como a incidência da realidade social, de seus símbolos, seus semblantes, sobre a realidade do corpo vivo, tanto sobre a matéria quanto sobre a matéria!(verificar citação).Eu não vou lembrar os dados etnológicos que se encontram à disposição de todos. Isto diz respeito à função socializante, simbolizante, da marca escrita sobre o corpo e a pele que é a tatuagem – que é, de algum modo, uma simples, não mutilação, mas carícia sobre a pele, uma pintura – com marcas inscritas no corpo, na carne, nas escarificações, as cicatrizes rituais”(16)

Para finalizar essa pontuação sobre a tatuagem, assinalemos sua relação com o tema do Enapol, com o imaginário, o corpo, citando uma passagem do Seminário 23 de Lacan (no Cap. IV, “Joyce e o enigma da raposa”, pg. 64, Ed. Bras, Jorge Zahar Editor, R.J., 2007, quando fala do “amor próprio” ) :

 “O amor próprio é o princípio da imaginação. O falasser adora o seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante. … O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido, ele é consistente…é precisamente o que é antipático para a mentalidade, porque ela crê nisso, ter um corpo para adorar. É a raiz do imaginário. …é o sexual que mente lá dentro… Na falta da abstração imaginária acima citada, aquela que se reduz à consistência, o concreto, o único que conhecíamos é sempre a adoração sexual, dito de outro modo, o desprezo, pois o que adoram é suposto não ter nenhuma mentalidade, confer o caso de Deus. Isso não é verdadeiro para o corpo considerado como tal — quero dizer adorado, posto que a adoração é a única relação que o falasser tem com o seu corpo — senão quando ele adora assim um outro, um outro corpo.”

Tínhamos a “fuga do sentido” e aqui Lacan marca a “fuga do corpo”, daí teremos sempre um falasser atormentado em sua relação com o corpo. Hoje vemos “corpos tatuados “nesse contemporâneo onde o imaginário joga esse papel preponderante, diferentemente das pequenas “tatuagens no corpo” (I/S), como no século passado onde geralmente simbolizavam algo, onde tinha um sujeito da/na tatuagem, endereçada ao olhar do Outro. Hoje, o falasser tenta segurar a fuga do corpo (I/R) com as tatuagens generalizadas, compráveis como gadgets no “mercado tatoo” capitalista. E, ele foge… sempre. E, as tatuagens existirão sempre, na história da Humanidade… não cessando de deixar de serem inscritas na pele do falasser…

“Ele: não vai acontecer nada. Ela: já está acontecendo em suas cabeças.
Nas suas cabeças, isso é o que você está fazendo, o que meu marido está fazendo”

(Black Mirror, 1ª temporada, episódio 1: O hino nacional).

 

Admito que o uso da palavra “império” me incomoda. Talvez por sua aproximação com “imperialismo”, quer dizer, pelo “uso” abusivo que faz o mercado das imagens daquilo que se produz – sendo este um ponto essencial diante do qual a psicanálise se subverte.

Assim, me perguntei, em mais de uma oportunidade, sobre como abordaria o tema proposto para a noite de hoje. Ocorreram-me algumas ideias que logo descartava. Até que sobreveio uma lembrança de infância que estava adormecida, proporcionando-me o empurrão buscado.

Remonto aos meus sete anos, quando irrompeu na vida familiar a presença de um irmão vários anos mais velho do que eu, causando uma brusca queda de minha versão do “império da dita” – como relatei no meu testemunho durante as últimas Jornadas anuais da EOL. Uma coincidência fez com que entrasse em casa a primeira televisão: “LA TE VE”[1].

Eu passava horas diante dessa tela em branco e preto, absorta, silenciosa. Lembro-me desses momentos amargos, densos, onde eu permanecia “adormecida” em um sonho continuado. Não havia lido ainda, claro, o que Lacan indicava: “Jamais me olhas lá de onde te vejo” e “o que eu olho não é jamais o que quero ver”[2].

Poderíamos dizer que, para a psicanálise, a autoconservação da vida depende da inscrição no desejo do Outro. Para Freud, “(…) os olhos percebem não só alterações no mundo eterno, que são importantes para a preservação da vida (prazer egoico), como também as características dos objetos que os fazem ser escolhidos como objetos de amor (prazer sexual): seus encantos[3]. No que me concerne, rompeu-se, ali, a função de véu, de engodo que sustentava a crença de ser olhada por meus encantos e, deste modo, de me assegurar um lugar no desejo do Outro. Diante do olhar que retornava no horror, o olho foi em busca de outro estímulo.

Frente à LA TE VE, comecei a imaginar que era a encantadora heroína que conquistaria o Cavaleiro Solitário ou ganharia o coração de Maverick. Ou uma amorosa dona da Lassie e, por que não, uma valente cuidadora de Rin Tin Tin. Embeveciam-me as anacrônicas – sim, que o são! – “Papai sabe tudo”… “Mas, é mamãe quem manda”. E as de super-heróis – que paixão! – Super Homem, Batman, Mulher Maravilha.

Ao revelar-se a palavra proferida pelo Outro em seu estatuto de verdade mentirosa –como não podia ser de outra maneira – resultou para o sujeito um momento de encontro com o engano, com a queda de seu poder (o do Outro e o do sujeito).

Não se fez o que se disse. A palavra do Outro perdeu seu valor ao quebrar a promessa de amor pela menina e fui inventar outra ficção com palavras que eu imaginara. Porque, caramba, como eu tinha conversações em meu pensamento, com esses personagens que LA TE VE me provinha!

Tanto é que, naquela época, deixei de escrever, recurso ao qual havia lançado mão desde muito pequena e que tanta satisfação me produzia. Tocada minha imagem amável para o Outro, buscava em meus devaneios com LA TE VE, restituir o perdido.

Está estruturalmente muito longe do que se busca-encontra hoje no mundo voraz da imagem? Prefiro dizer deste modo: o contexto muda, mas desemboca no que o estrutural repete, cunhando um impossível (real) de ser capturado com alguma garantia.

Parece tratar-se da ilusão de um “fazer” que lograria recuperar o valor da palavra dada, sua autoridade, sua veracidade. Que o que a visão pode apreender, o que se vê, funcionasse como verificador do compromisso da palavra: “garantia fantasmática”.[4] Mas, esta é uma busca impossível: o que a imagem verifica não consegue trazer de volta o valor da palavra e se perde no gancho do apetite escópico que se distrai do importante e redobra a indignidade da palavra dada.

O episódio de Black Mirror citado mostra como todos os britânicos estão “cegos” ao essencial: por querer olhar o “ato” que irá garantir que se cumpra a palavra do primeiro ministro e a promessa de liberação da princesa por parte do sequestrador, não há ninguém nas ruas vazias, ninguém para descobrir que a dama já foi liberada meia hora antes do “ato” e, assim, não haveria nada para verificar, vendo. E isto nos remete à deflação da palavra.

Um tweet permite “ver” o que se “diz-escrito”, como se, mediante a fixação da imagem, se pudesse confiar em algo, um pouco mais… As imagens de hoje vociferam sem saber o que dizem. Olhem a “TE VE” destes tempos, atormentada por um blá-blá-blá banal, redundante, insultuoso, pusilânime, imoral também.

Minha LA TE VE era diferente, não apenas porque se situa 50 anos atrás, mas porque é a que eu criei, ficção alimentada em meus pensamentos, fantasia.

Em Black Mirror, o roteirista Charlie Brooker nos leva à dianteira: é um artista, mas está no quadro que filma até deter-se no umbral da tela que se rasga em cada capítulo.

Eu vivia submersa no curioso paradoxo da imagem, que pode nos seduzir de mil maneiras até inventar, sonhar, especular que o que se vê, se imagina, é o que se é e o que se diz do que se é. É o que este recurso da infância me permitiu.

Nos tempos que correm, parece se fazer o esforço de enganchar a palavra em uma imagem que se possa guardar, reproduzir e, melhor ainda, enviar para todo lado para que não se perca! Aos gritoooooooooooos! Isso não vai lhe dar mais legitimidade, mais autoridade.

Lá pelos anos de 1960, John Langshaw Austin, tão britânico quanto o roteirista de Black Mirror, filósofo da linguagem, dedicou-se aos enunciados chamados “performativos”, estes atos da fala que lhe dão autenticidade.[5]

Podemos dizer que uma psicanálise se sustenta de enunciados performativos? Eis um tema controverso que merece aprofundamento. Em todo caso, o que, nesse primeiro episódio de Black Mirror, se mostra em seu lugar é esse “ato” ao qual me referi anteriormente: o ato bizarro de copular com um porco diante dos olhos famintos dos britânicos. Um ato que só pode fracassar, como todo ato. Não há ato (sexual). Não há.

O performativo pode nos levar mais perto desse real, desse impossível, do que a ilusão da tela negra? Se pensarmos que nós, falantes, não chegamos mais longe que do ato de fantasiar, de imaginar…

Eu diria que a chamada “caixa boba” me forneceu, naqueles tempos, uma via de escape ao que me atormentava, fazendo de mim uma sonhadora acordada que não queria despertar desses sonhos de infância, onde era a imperatriz de meu império imaginado e de tudo o que eu quisesse ser. Dessa forma, quem poderia ser mais confiável do que minha própria imaginação?

Já, desde esse tempo, minha desconfiança pelo que vinha do Outro – cujos fatos, considerava puro blá-blá-blá – e também minha interrogação crítica encontravam fundamento e suporte.

Mas, ficava um resto inassimilável que não se dobrava ao véu e que se fazia notar.

O silêncio era acompanhado de um sintoma: presa de uma sinusite crônica, eu me faria objeto dos grandes avanços científicos do momento: nebulizações, operação de adenoide, punção do osso maxilar, antibióticos injetáveis. E, como era de se esperar, na histeria, o corpo contesta a ciência e “fala” com a verdade do sintoma: o muco que a menina dirige ao campo do Outro é um ressabio, fluido que se instala no silêncio da presença muda diante de LA TE VE. Complacência somática para Freud, rechaço do corpo para Lacan. Rompe com a autoconservação e é também objeção muda ao saber do Outro.

Em silêncio, com a caixa boba, eu me entendia melhor. Aqui, o olhar se põe em tensão e se destina a produzir uma “cegueira” de outra ordem para fazer-se, novamente, objeto de atenção do Outro. Mas, sobretudo, se distancia de sua atenção no mundo e goza em sua absorção na TE VE. Refaz-se um gozo enquadrado na TE VE, satisfação substitutiva, transitória, mas um sintoma: o muco que, ao alterar a respiração, transtornava o falar e o canto – zona “amável” para a menina – com o gozo sintomático.

Algo me tirou dali porque, além do mais, eu quis sair dali: um encontro de desejos. Mais precisamente, o desejo de um pediatra e de uma professora. Ele enviou minha mãe a outro consultório (quer dizer, mostrou-se Outro barrado em relação ao saber científico e, portanto, desejante). Então, eu topei com um médico homeopata que soube sugestionar o suficiente a menininha para que, com seus glóbulos, a sinusite fosse de vez. E também a professora do fundamental. Como eu não podia ir ao colégio, ela se ofereceu para ir à minha casa me ensinar a regra de três. Só assim fui abandonando minha quadrada amiga daqueles tempos difíceis – LA TE VE – para entrar em cheio no mundo escolar.

“Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”. Consegui reingressar nas vias do saber, da escritura e da ciência. Uma suposição que me levou a estudar medicina. Mais tarde, recaí em outra suposição: aquela que a psicanálise oferece para me animar a chegar até esse umbral indizível, esse espelho negro de cada um, com sua esquize estrutural.

E é nisso que acredito ainda hoje e o que vou constatando, entre vários, em um dos grupos de pesquisa que trabalha para as Conversações do ENAPOL. Coletamos as respostas únicas de cada sujeito desta época, de como ele se liga e se desliga, e como ele se serve desses Black Mirrors a seu alcance.

 

 Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes

Texto revisado pela autora

Revisão final em português: Adriano Messias

 


 

[1] Por causa da homofonia no espanhol de TE VE com “te ver”, foi mantida a versão original [NT].

[2] LACAN, Jacques. Lição VIII, A linha e a luz. In: O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 100.

[3] FREUD, Sigmund. A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. In: Tomo XI da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1982, p. 201.

[4] MUSACHI, Graciela. Boletim Flash n. 1. Disponível em: http://oimperiodasimagens.com/pt/boletim/
[5] AUSTIN, John L. Como hacer cosas con palabras: palabras y acciones. Buenos Aires: Paidós, 1982.

Como Hector Gallo já escreveu (1), no título de nosso próximo Encontro “O Império das Imagens”, deveria ler-se “império” como soberania. Uma soberania que, seguindo as indicações de Foucault, não há de se entender como o que proíbe ou restringe, senão como performativa. Em sua expansão produz constantemente novos modos de ser e de relacionar-se.

Tarrab atribui-lhe o estatuto de uma renegação do real (2). Dando a aparência de um “congelamento do tempo”, faz com que a entropia caia fora do campo do enunciável, pois, sim, “tudo é recuperável”, nada se perde. Porém, se a entropia caiu fora do campo do enunciável, não é sem nosso consentimento, sem nossa participação nessa desordem do mundo.

É uma soberania dócil às ambições de cada um, às ambições de pão e circo. Por isso é tão difícil denunciá-la e faz mentirosas as denuncias que herdamos do século XIX. “Como você o quer?” Pergunta-se ao consumidor nos grupos focais. “O que faço, faço por teus direitos e representando-te”, diz o funcionário ao cidadão dessa nova soberania global. Não mais automóveis pretos idênticos saindo das linhas de montagem, não mais uma soberania que se exerce em nome do direito do soberano, condensador da nação, única exceção à condição de sujeito (sujet, súdito). A soberania reside no povo, dizem as constituições e, portanto, aquele que manda é o mandatário. Porém, mais além delas, constitui-se a partir da imanência dos corpos que nascem com um determinado catálogo de direitos. Até onde este é um corpo vivo, pulsional, e até onde é uma tela imaginária onde se projetam as necessidades que a ciência lança, é o que se põe em jogo no campo de batalha aberto entre os mercados e as burocracias.

Por isso o documento “El empoderamiento de la mujer y el psicoanálisis” (3) mostra bem como posicionar-se diante dessa batalha. No texto, trata-se de forçar a entrada da feminilidade do “não-todo”, frente ao empuxo à feminização que implica o “não existe um que não”. Quer dizer que se há império das imagens, tem-se de evitar as polaridades que essa forma de soberania exuda, tomando posição com o que não tem posição.

De modo que, diante do pão da necessidade que as burocracias nos dão para mastigar, no lugar do ócio da fome, mais valeria dar a palavra no social ao me pantes. Frente ao circo-ular permanente do mercado, em vez de uma inibição, sustentar uma clínica que se oriente pela objeção que apresenta o sintoma, que “se coloca em cruz para impedir que as coisas andem” (4). Frente à realização imaginária por meio da renegação da morte, ao invés de fazer presente a inevitabilidade da morte à maneira dos cerceadores de cabeças, aproveitar o tropeço do simbólico para encontrar-se com o inconsciente como o que é da ordem do não-realizado.

 


 

(1) Gallo, Héctor. El Imperio de las Imágenes. En Página del VII ENAPOL, El imperio de las imágenes. http://oimperiodasimagens.com/es/faq-items/el-imperio-de-las-imagenes-hector-gallo/

(2) Tarrab, Mauricio. El ojo bulímico y el lobo. En Página del VII ENAPOL, El imperio de las imágenes. http://oimperiodasimagens.com/es/faq-items/el-ojo-bulimico-y-el-lobo-mauricio-tarrab/

(3) Álvarez, Patricio. El empoderamiento de la mujer y el psicoanálisis. http://nel-medellin.org/blogigualdad-de-genero-y-diversidad-sexual-en-relacion-con-el-empoderamiento-de-la-mujer-un-punto-de-vista-psicoanalitico/

(4) Lacan, J., A Terceira. In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eólia, n. 62, p. 11-35.

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

Hoje em dia, o selfie – tirar uma foto de si mesmo – é tão habitual que, segundo as estatísticas do Instagram, foram postadas 58 fotos por segundo durante 2012. em 2013, o dicionário Oxford nomeia a palavra “selfy” ou “selfie”, como a palavra do ano. Em histórias recentes o selfie esteve em primeiro lugar, a partir de quando um macaco toma a câmera de um fotógrafo e se auto-retrata. O simpático macaco roubou a câmera e, seduzido pelo ruído dos clics, começou a brincar com ela, a clicar no ar e a tirar fotos de si mesmo. Isto gerou uma batalha legal pelo copyright, pois as leis sustentam que o dono dos direitos de autor é quem tira a foto. É, então, um fato irônico que levou o fotógrafo a elevar o macaco à categoria de assistente de fotografia. Evento da contingência que faz uma paródia dessa paixão contemporânea.

O fenômeno do selfie fala de qual mal-estar na Cultura?

Mesmo sendo uma foto não tem o caráter simbólico que as fotografias tiveram: um fato gráfico de algo que tem a ver com um acontecimento íntimo. O selfie está acima do íntimo e da experiência de lembrança que a imagem fotográfica pode trazer. Poderíamos dizer que passamos do auto-retrato ao selfie. É uma maneira de registro gráfico onde o importante é expor a outros anônimos algo do íntimo. É uma imagem com a qual se monta uma estrutura de ficção com o sorriso ou o gesto de “sou feliz”. Registro no qual impera o gozo do olhar sobre si mesmo, sem palavras. Evidencia-se uma experiência onde o sujeito, com sua melhor pose cosmética tenta dar-se um corpo por meio do semblante. Sabemos que atrás do semblante não há nada. Não há ser, há ex-sistência. A estrutura de ficção será sempre insuficiente para abarcar o real que escapa. Há imagem não esconde o que não deixa de insistir, é transitória e a angústia aparece como resposta. Há uma significação vazia, o buraco no real da relação sexual que não existe e que necessariamente conduz ao enigma do feminino. A imagem viria a ter o estatuto de um resto-desfeito sem história, tentando tramitar algo do real impossível de dizer.

Sabemos, como diz Miller em o “Ser e o Um”: “Ter um corpo coloca-se do lado da existência. É um ter marcado somente a partir do vazio do sujeito.”[1] O parlêtre tem um corpo e não é um corpo. Desde a origem está marcado pelo mal encontro com lalíngua, que deixa traços no corpo. É, portanto, um encontro imprevisto entre a palavra e o corpo que fará dele um acontecimento singular. Lacan, em “A Terceira”, diz: “o homem conhece o mundo como conhece sua imagem, o que faz com que adore seu corpo. Se o adora é porque acredita que o tem: a única relação do parlêtre com seu corpo é de adoração.”[2] A ilusão de completude que a imagem devolve é o que faz do selfie uma prática “adorável”!

O sefie cumpre a função aparente de “ocultar” o que esburaca a imagem e de dar a ilusão de completude que o ideal pede, onde promove-se a própria imagem, na qual cada um “controla” como aparecer. Porém, é uma época na qual todos mostram tanto que já ninguém olha e é aí onde se faz presente um mal-estar que toca o corpo. como dizia uma adolescente: “sempre espero um like, e quando não os vejo, me dói o coração.” E continua: “voltarei a colocar outro selfie para ver quem o olha.”

Da época dos olhares furtivos e indiscretos, passamos à promoção do despudor onde surge um espelho sem véu que aponta para um ocaso da vergonha. O olhar é convocado para fazer da imagem do corpo, que não se é, um espetáculo. “É um olhar castrado de seu poder de envergonhar…”[3]. O segredo do espetáculo, diz Miller, “é que tu és quem o olha, porque gozas dele. És tu como sujeito e não o Outro quem olha”.[4]

Se há hoje uma queda da vergonha, é porque o íntimo se tornou estrangeiro-estranho? O selfie seria uma manifestação do “êxtimo”? Na medida em que a imagem como tampão “pretende nos enganar sobre o verdadeiro sentido do êxtimo: o de ser uma hiância permanente, quer dizer, um buraco.” [5]

 


 

[1] Miller, J.-A. “O Ser e o Um”, Décima Primeira lição do Curso de Orientação Lacaniana – 2011. Inédito.

[2] Lacan, J. “A Terceira”, In: Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Ed. Eólia, nº 62. p. 11-35.

[3] Miller, J.-A. “Notas sobre la vergüenza”, In: Freudiana 39, 2004, Barcelona, Paidós, p. 11.

[4] Idem. p. 12.

[5] Najles, A. R., Delicias de la intimidad. De la extimidad al sinthome, Grama, Buenos Aires, p.65.

 

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista

Em fevereiro de 2013 o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, apresentou oficialmente um importante projeto denominado Iniciativa BRAIN (por suas siglas em inglês: Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies), o qual busca revolucionar a compreensão do funcionamento do cérebro humano, abrindo possibilidades para detectar de forma precoce as causas de doenças cerebrais e, por conseguinte, prevenir ou encontrar tratamentos específicos para as mesmas.

Para esta iniciativa, a administração Obama Care destina 100 milhões de dólares de verba no ano fiscal de 2014. “O projeto sobre o cérebro dará aos cientistas as ferramentas necessárias para obter uma imagem do cérebro em ação e permitirá ao menos compreender como pensamos, aprendemos ou memorizamos. O cérebro é ainda um enorme mistério que falta elucidar”. (Presidente Barack Obama, abril 2013)

Além disso, o presidente Obama enfatiza que este novo projeto implica o desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias capazes de produzir imagens das interações entre as células cerebrais e a compexidade de circuitos neuronais na velocidade do pensamento. Essas tecnologias abrirão novas vias para explorar o modo como o cérebro memoriza, processa, armazena e recupera enormes quantidades de informação, oferecendo um novo panorama sobre os complexos vínculos entre as funções cerebrais e o comportamento humano. (Idem)

Para se conseguir criar um mapa cerebral são necessários aparelhos capazes de medir a atividade de um dos milhões de neurônios de forma independente e, além disso, seu funcionamento em conjunto com os demais neurônios, portanto, criar uma escala em nível cerebral de modo que se realize um mapa da atividade funcional. O desenvolvimento dessas tecnologias se alcançará através da nanociência, da imagem, da engenharia, da informática e outras áreas relacionadas.

A iniciativa BRAIN envolve quatro agências federais: O Instituto Nacional de Saúde (NIH), a Fundação Nacional para a Ciência (NSF), a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) e a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA). Estas agências fazem aportes econômicos para realizar investigações em áreas específicas e delimitadas claramente para evitar dobrar esforços em um só experimento. O apoio é dirigido ao desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias capazes de mostrar um funcionamento dinâmico cerebral e sua relação com comportamento e transtornos cerebrais. Tais avanços científicos e tecnológicos permitirão melhorar o diagnóstico, tratamento e, até, prevenir doenças mentais, não somente com a Tomografia Computadorizada (TC), Ressonância Magnética (RM), Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP), Magneto Encefalografia (MEG).

A saúde mental no século XXI e na era digital estará tomada pelo império das imagens, em 3D e outros desenvolvimentos mais, e também constitui-se em um assunto de política de Estado, confirmando-se desse modo o declínio do DSM até sua versão 5.

A imagem terá um valor superlativo sobre a palavra no diagnóstico e tratamento das agora chamadas doenças do cérebro, assim os relatos do sujeito a respeito de seu mal-estar ou de seus sintomas, e sobre seu corpo, se tornariam obsoletas para a ciência, que prefere um sujeito silenciado e ignorante de seus sofrimentos.

O desenvolvimento tecnológico prometido pelo presidente Obama, capaz de mostrar mediante imagens o que fica oculto ao olhar, diz que a atividade cerebral e as doenças do cérebro sejam captadas por imagens virtuais, imagens reais, etc. Esse horizonte pode ser tão sedutor para alguns como aterrador e temível para outros.

 


 

Notas

https://www.whitehouse.gov/share/brain-initiative

 

Tradução do espanhol: Maria do Carmo Dias Batista