Alejandra Antuña

EOL (Bs. As.)

Recentemente, foram aprovadas em nosso país a Lei do casamento igualitário (2010) e a Lei de Identidade de Gênero (2013).

A Lei do casamento igualitário implica uma ruptura da ordem jurídica com a suposta ordem “natural”, é um reconhecimento da validade dos laços estabelecidos por casais do mesmo sexo e das famílias que eles vierem a constituir. A família é desvinculada dos laços biológicos e a filiação não exige a presença efetiva de dois pais de sexo oposto.

A Lei de Identidade de Gênero implica um passo a mais nesta ruptura com a ordem biológica. Ela é dirigida ao que se conhece como a “comunidade trans”, permitindo-lhes modificar seu nome e dando acesso a tratamentos, cirúrgicos ou hormonais, para aqueles que queiram adequar seu corpo à sua identidade de gênero. A particularidade e a novidade da lei argentina em relação a outras legislações é que ela estabelece a identidade de gênero como um direito. Consequentemente, para a troca de nomes e de sexo basta o consentimento do sujeito, sem a intervenção de qualquer outra instância. Estabelece assim uma segunda ruptura, desta vez em relação aos discursos médicos e psi, ao “despatologizar” o que no DSM aparece como “disforia de gênero”.

O texto da Lei é baseado na noção de identidade de gênero “autopercebida”. Ao contrário do que nos demonstra a experiência psicanalítica, há aqui uma relação de transparência entre o sujeito, o corpo e o gozo, não há nenhuma opacidade entre eles, supõe, além disso, que o corpo pode ser modificado de modo a adequar-se ao gozo que o sujeito reivindica.

Como nos situamos então frente a estas transformações no social?

Em primeiro lugar, não devem nos surpreender: Lacan tematizou o bastante sobre o regime da civilização contemporânea, J.-A. Miller e E. Laurent têm nos orientado nesse ponto.

Por outro lado, a psicanálise foi o discurso que desnaturalizou os laços familiares e a sexualidade, excluindo-os assim do campo patológico. Primeiramente, Freud afirmando que não existe objeto determinado para a pulsão e definindo a criança como “perversa polimorfa”. Depois, Lacan com sua proposição “não existe relação sexual”.

A partir disso, a psicanálise é interpelada por intelectuais dos “estudos do gênero” para que se posicione. Estes últimos estão comprometidos com uma política baseada na noção de identidade, seja para afirmá-la ou para desconstruí-la, fundamentada como uma construção social ou definida a partir de uma prática de gozo. A psicanálise, ao contrário, é uma prática que se ocupa dos efeitos da linguagem sobre o ser vivente. A operação lacaniana sobre os textos freudianos eleva as noções centrais do pai e do falo à categoria de significantes, para depois atribuir-lhes o estatuto de função dando conta das distintas modalidades em que os falasseres se inscrevem nela. “O termo falo -nos dirá Lacan- (…) designa certo significado, o significado de certo significante totalmente evanescente, pois no que tange a definir o que é o homem ou a mulher, a psicanálise nos demonstra que isso é impossível” [1]. Lacan criticará a noção de identidade de gênero, já que ela demonstra apenas que os seres humanos se repartem em homens e mulheres. Não há dois sexos, mas um sexo e o Outro sexo, duas modalidades de gozo em relação ao falo. Não nos tornamos sexuados por identificação ao significante “homem” ou “mulher”, mas por levarmos em conta a diferença sexual.

Estas novas configurações exigem, certamente, que revisemos e atualizemos nossas conceituações para estarmos à altura do que chamamos a era pospaterna. Contamos com os elementos no ensino de Lacan. Porém, estamos frente a uma nova encruzilhada, aquela que essas leis nos mostram e, de uma maneira mais direta, a Lei de Identidade de Gênero.

Esta Lei abre a possibilidade, sem nenhuma mediação, de tratar o que é da ordem da linguagem, a diferença sexual, fazendo-a passar pelo real ao qual a ciência nos convoca. Como nos diz Lacan em relação ao transexual: “Seu único erro é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual que, na medida em que é impossível, é a passagem do real” [2].

A Lei do casamento igualitário em si mesma iria em sentido oposto, já que vai justamente em defesa de uma inscrição simbólica dessas uniões. A verdadeira questão se situa em outro lugar: é a maneira e o uso que poderá ser dado às novas técnicas de reprodução. Não se trata, certamente, de opor-se a elas, mas de não fazer esquecer que, para além da possibilidade dada pela ciência com seu tratamento do real, o ato de acolher uma criança e dar-lhe uma filiação pertence totalmente ao registro do simbólico.


Tradução: Elisa Monteiro

* Extrato do artigo publicado em Torres, M., Schnitzer, G., Antuña, A., Peidro, S. (comps.), Transformaciones. Ley, diversidad, sexuación, Grama, Bs. As., 2013.

  1. Lacan, J., Estou falando com as paredes, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2011, p. 33.
  2. Lacan, J., O Seminário, Livro 19, …ou pior, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2012, p.17