Miquel Bassols

Vicepresidente AMP

Falar com o corpo. A expressão não é óbvia e tem sua referência no Seminário 20, Mais, ainda, de Jacques Lacan, tal como oportunamente nos recordou Ricardo Seldes. [1] Vejamos o contexto: “Falo com meu corpo, e isto sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei. É aí que chego ao sentido da palavra sujeito no discurso analítico. O que fala sem saber me faz eu, sujeito do verbo”[2]. O que é, então, aquilo que fala com meu corpo sem que eu saiba? Há, no texto em francês, uma homofonia que convém assinalar: o sujeito ‒sujet‒ inclui o sabido ‒su‒ e o eu –je‒, o sujeito do verbo, do enunciado. Tal como havia indicado o próprio Lacan, um pouco antes, no mesmoSeminário, aquilo que fala com meu corpo e no qual deverei reconhecer-me, finalmente como sujeito, como Eu, não pode ser outra coisa que o Isso freudiano, o Isso pulsional que fala, que goza e que não sabe nada disso. Este Isso é, aqui, o sentido da palavra “sujeito” no discurso analítico, assim referido por Lacan: “Lá onde o isso fala, isso goza, e isso (não) sabe nada”. É conveniente, efetivamente, forçar um pouco a gramática em cada língua para aproximar-se daquilo que fala com meu corpo como sujeito, aquilo com que acabarei identificando-me como Eu, no melhor dos casos. Há clínica que nos mostra que isso nem sempre é possível, nem necessário. Em algumas psicoses, por exemplo, o sujeito pode muito bem não se identificar com aquilo que fala em seu corpo. O corpo, então, vai por um lado e o sujeito por outro. Como alguém acaba por se identificar como sujeito, como Eu, com aquilo que fala com seu corpo? É um processo que sempre tem algum desajuste, lá por onde o Isso fala sem que Eu saiba, dizendo mais do que Eu sei, geralmente no sintoma.

Tudo isso supõe, em primeiro lugar, que um corpo não fala por si mesmo, pelo contrário, que um corpo é aquilo com que o Isso fala, com o que fala o sujeito pulsional, se essa expressão tem sentido, na medida em que a pulsão é acéfala, sem sujeito. Um corpo não fala por si mesmo, é preciso que esteja habitado, de alguma forma, pelo que escutamos como o desejo do Outro. Pode parecer óbvio novamente assinalar, mas, não o é, de modo algum, pelo menos para a ciência de nosso tempo para a qual os corpos dizem, falam por si mesmos, significam coisas com um saber já escrito neles, seja no gene ou no neuroma. O sentido que tem o termo “sujeito”, para a psicanálise, implica, ao contrário, que um corpo não fala por si mesmo, mas, que ele é, antes, falado pelo Isso, pelo sujeito do gozo, sem saber nada disso.

Falar com o corpo é, então, uma experiência muito precisa se pensamos, ademais, que um dos ideais da ciência de nosso tempo é, precisamente, pode falar sem o corpo.

Vejamos, por exemplo, o que disse o cientista Kevin Warwick, engenheiro, professor de Cibernética na Universidade de Reading, conhecido por suas pesquisas em robótica e sobre a interface corpo-computador. São pesquisas deste tipo que marcam o horizonte em que o sujeito deste século já faz a experiência de seu corpo como algo separado; dele separável enquanto sujeito, anexável em toda série de artifícios técnicos, aprimorável em todas suas qualidades e, finalmente, parcializado no que conhecemos como o corpo despedaçado anterior ao estádio do espelho. Em sua recente passagem por Barcelona, Kevin Warwick, apelidado Capitão Cyber, que agora tomamos como porta voz de um cientificismo em alta, afirmou sem nenhuma sombra de dúvida: “Nosso corpo já é somente um estorvo para nosso cérebro”.[3] Evidentemente, a primeira pergunta que poderíamos lhe fazer é se ele deixou de considerar “nosso cérebro” como uma parte de “nosso corpo”. O problema não é banal, está no centro das neurociências atuais, quando tentam definir os limites do corpo em relação à mente, em dualismo que retorna, sem cessar, apesar de considerá-lo resolvido. Mas, veremos que esse “nosso”, termo simbólico que deveria fundar a unidade do corpo em questão, termo criado, por sua vez, em identificação com aquilo que fala com “nosso” corpo, esse “nosso” é antes vacilante e, no final das contas, absolutamente prescindível para a ciência. Depois que o corpo está fragmentado em diversas partes, nenhuma das quais inclui necessariamente a identidade do ser que fala, o conjunto ou a unidade que podemos recompor com técnicas cada vez mais sofisticadas não assegura tampouco algum tipo de identificação nem de identidade: “Ai está o problema! A grande incógnita do futuro é nossa identidade”, exclama então o cientista que crê ‒é uma crença‒ que a identidade do sujeito é um dado inscrito no real do organismo, como se fosse uma qualidade inerente à sua natureza.

A imagem que se desenha, no horizonte do avanço tecnocientífico, embora pareça mais uma realidade de ficção ciência é, então, a seguinte: uma rede de cérebros conectados entre si, sem necessidade de suportar esse resto de funções prescindíveis em que se resumiria um corpo. O ideal que acompanha esta imagem é tão explícito como o que levou Kevin Warwick a tentar vencer os insondáveis problemas de comunicação que parece ter com sua mulher. É o ideal de uma conexão direta, cérebro a cérebro: “Estava claro que tínhamos um problema de comunicação. Desse modo, um dia conectamos meu sistema nervoso à sua mão e, quando ela se movia, eu recebia os impulsos de meu cérebro e nos comunicávamos com código morse”. Trata-se de uma experiência que se realiza de forma literal, sem metáfora alguma, como aquela em que o poeta encontra no amor: “Não sou senão a mão com a qual você apalpa”[4]. De fato é uma forma, como outra qualquer, de crer que a relação sexual pode se escrever, neste caso em código morse, e que os sujeitos podem se falar sem a necessidade de passar pelo gozo do corpo, de seu bla-bla-bla tão generoso como ineficaz do ponto de vista do conhecimento científico.

O problema com que Kevin Warwick se deparava, por esta via, é indicativo de outro real que se agita nos corpos e não parece ser reduzível ao real que a ciência aborda com seus instrumentos. É o real da própria linguagem, o real que aprendemos a situar com o termo lalingua. Se o sujeito tampouco assim conseguiu a correta comunicação com sua mulher é porque o engenho “encontrou com a mesma barreira que nós encontramos: a interface entre cérebros, a linguagem […] Comparada com o instantâneo e preciso da transmissão na rede neuronal, nossa linguagem é um código ambíguo e impreciso… E falar, que lenta e primitiva maneira de emitir e receber ondas sonoras!”. Dessa forma, se os corpos se tornaram um estorvo, a linguagem humana, que se mostra absolutamente inexata e ineficaz, equívoca e parasitária, imbuída de um gozo inútil, também o será. Permanece, todavia, na opinião do próprio cientista, um resto impossível de eliminar: essa presença da linguagem nos corpos, um real do qual esse gozo inútil é o melhor testemunho.

Foi exatamente neste gozo inútil onde a psicanálise encontrou o sujeito do Isso, aquele que fala sem que eu saiba, esse Isso que sempre era -“Onde Isso era…”- e ao que Eu, como sujeito, devo advir, retomando a fórmula da ética freudiana relida por Lacan. E Isso sempre fala, embora o faça de modo que parece primitivo, Isso sempre goza lá onde o sujeito menos sabe. E, também no cientista.

Retomemos, então, a preciosa expressão de Lacan: falar com o corpo será sempre o melhor testemunho deste Outro que a psicanálise descobriu com o nome de inconsciente, e que nos convoca, com tanto entusiasmo, para nosso próximo VI ENAPOL.


Tradução: Ilka Franco Ferrari

  1. Em “Presentar el cuerpo”, consultável na Web do ENAPOL: http://www.enapol.com/es/template.php?file=Textos/Presentar-el-cuerpo_Ricardo-Seldes.html
  2. Jacques Lacan, O Seminário, livro 20, Mais, ainda, Jorge Zahar Editor, 1985, p.161.
  3. Ver a entrevista no Jornal “La Vanguardia”, do dia 19 de Novembro de 2012:http://www.lavanguardia.com/lacontra/20121119/54355365278/la-contra-kevin-warwick.html
  4. Evocamos aqui o poeta catalão Gabriel Ferrater: “No sóc sinó la mà amb què tu palpeges”.