A escolha do título do VI ENAPOL[1]: “Falar com seu corpo” indica uma inquietação e corresponde a um fato. As palavras e os corpos se separam na disposição atual do Outro da civilização. O subtítulo “a crise das normas e a agitação do real” remete-nos a uma dupla série causal. Por um lado, as normas nem sempre conseguem fazer com que os corpos, por sua inscrição forçada, se insiram em usos padronizados, nessa máquina infernal na qual o significante-mestre instala suas disciplinas de fazer marcas identificatórias (marquage)e de educação. Os corpos são muito mais deixados por sua própria conta, marcando-se febrilmente com signos que não chegam a lhes dar consistência. Por outro lado, a agitação do real pode ser lida como uma das consequências da “ascensão ao zênite” do objeto a. A apresentação da exigência de gozo em primeiro plano submete os corpos a uma “lei de ferro”[2] cujas consequências é preciso acompanhar.

Os corpos parecem ocupar-se deles mesmos. Se alguma coisa parece se apoderar deles, é a linguagem da biologia. Ela opera sobre o corpo, recortando-o em suas próprias mensagens, suas mensagens sem equívoco, diversas daquelas da língua. Produz corpos operados, terapeutizados, geneticamente terapeutizados ou geneticamente modificados (em pouco tempo, todos seremos organismos geneticamente modificados), alvos de uma operação cosmética que segue a mesma via desses recortes – real cuja efetividade foi sublinhada por Jacques-Alain Miller em seu pequeno tratado sobre a “biologia lacaniana”.

A psicanálise apreendeu a junção das palavras com os corpos por um viés preciso, o do sintoma. Freud, baseado no espetáculo clínico de Charcot, extrai o rébus da formação do sintoma histérico. Lacan pode dizer: “Freud chegou em uma época na qual apreendeu que não havia nada mais que o sintoma pelo qual cada um se interessava”, que tudo aquilo que havia sido sabedoria, modo de fazer, e mesmo, justamente, representação sob um olhar divino, tudo isso se distanciava; restava o sintoma na medida em que ele interroga cada um sobre o que vem incomodar-lhe o corpo. Esse sintoma, por ser presença do significante do Outro em si, é marca identificatória (marquage), corte. Nesse lugar, o surgimento traumático do gozo se dá. Baseado no sintoma histérico, Freud reconhece a via na qual se impõe o incômodo do corpo que vem, pelas palavras, recortar mais uma vez, marcar as vias pelas quais o gozo advém. O que constitui o eixo em torno do qual gira a constituição do sintoma histérico é o amor ao pai. Trata-se do que faz com que o corpo histérico esteja sempre prestes a se desfazer, o que faz dele a ferramenta[3], segundo a expressão de Lacan. É precisamente isso que está em questão em nossa época. Por isso, precisamos conceber o sintoma não com base na crença no Nome-do-Pai, mas baseado na efetividade da prática psicanalítica. Essa prática obtém, através do seu manejo da verdade, alguma coisa que toca o real… A partir do simbólico, alguma coisa ressoa no corpo, e faz com que o sintoma responda.

O que se colocará para nós como questão é como “falam os corpos” para além do sintoma histérico, que supõe no horizonte o amor ao pai.

O inconsciente e o sintoma histérico

No inconsciente, trata-se de algo diverso de inconsciência. O inconsciente freudiano não é o inconsciente automático, não é o inconsciente da inconsciência, não é proveniente dos automatismos inscritos sem que se tenha deles uma consciência no sentido cognitivo. De que se trata no inconsciente? Deste, temos uma ideia mais clara pelo que Lacan chama de “o grande quadro clínico da amnésia da identidade” – no qual o sujeito não sabe quem é, não pode absolutamente responder sobre nada concernente à sua identidade, suas lembranças, sua família, de onde ele vem… mas, em compensação, pode muito bem aceder aos saberes que adquiriu: línguas estrangeiras, o manejo de máquinas complicadas… E esse contraste entre o sujeito da enunciação e tudo o que é da ordem do enunciado – os enunciados possíveis – coloca um problema maior. Lacan propõe, nesse contexto, que o inconsciente freudiano é uma certa relação entre falas e escrita, da qual se dá conta a partir da nova escrita que propõe então, aquela dos nós. Ele o diz explicitamente na primeira aula do Seminário posterior ao 23, o Seminário 24: “Tento introduzir alguma coisa que vai mais longe que o inconsciente”[4]. Não se trata do Lacan do retorno a Freud, mas do Lacan do adeus a Freud. Já era tempo, Lacan havia esperado muito tempo, ele próprio estava muito pressionado pelo tempo: disse isso em 1977, quando tinha mais quatro anos de vida. Propõe alguma coisa que vai “mais longe que o inconsciente”. É, de início, uma metáfora espacial, e ela imediatamente se completa com uma questão sobre o tempo: “Por que obrigar-se, na análise dos sonhos, a se restringir ao que ocorreu na véspera?”. Para explicar o sonho, é necessário sem dúvida apelar para as coisas que remontam ao “próprio tecido do inconsciente”. Situar o inconsciente como tecido é também introduzir o que faz furo, ou seja, precisamente, a questão do trauma. Naqueles anos, Lacan enuncia uma série de proposições novas em psicanálise, dentre as quais a reformulação da questão da histeria é crucial. Após o Seminário sobre Joyce, Lacan propõe uma série de releitura dos Estudos sobre a histeria, mas pelo avesso. Pode-se seguir esse percurso por um ano, um ano de pontuações entre o dia 9 de março de 1976 e o dia 26 de fevereiro de 1977 (data, justamente, de uma conferência, em Bruxelas, sobre a histeria). Vamos começar este ano, com Lacan, pela decifração do que ele nos propõe sobre a histeria no Seminário 23. Pelo que sei, no Seminário 23, há apenas uma referência direta à histeria, e é a propósito de uma evocação amigável, de uma mãozinha dada a uma de suas amigas, Hélène Cixous. Vocês a encontram na terceira parte do Seminário 23, cujo título é surpreendente: “A Invenção do Real”[5], e no capítulo 7 que tem também um título provocante: “De uma falácia que testemunha do real[6]”. “Falácia” é uma palavra antiga como “sinthoma”, pouca utilizada na língua moderna. O que permaneceu na língua contemporânea é o adjetivo “falacioso”. Este termo feminino antigo, falácia, corresponde ao novo lugar que Lacan dá ao falo: o falo é um semblante e o que dá testemunho do real. É muito diferente da maneira como o falo é representado nos Escritos. No texto que expõe a posição clássica, Die Bedeutung des Phallus (“A significação do falo”), o falo estava ali para testemunhar da significação, e mesmo para demonstrar todos os efeitos de significação. Agora, ele é reencontrado como uma falácia que dá testemunho do real. Essa nova posição do falo, fora da metáfora paterna, permite a Lacan retomar a questão da histeria. A peça “Retrato de Dora”[7], escrita por Hélène Cixous, que estava sendo encenada num pequeno teatro, permite a Lacan dizer: “algumas pessoas podem se interessar em ver como a peça é realizada”, “é realizada de um modo real”. A questão de ser “realizada de um modo real” é estranha e Lacan a explica: “quero dizer que a realidade, por exemplo a dos ensaios, no final das contas, foi o que dominou os atores”. Portanto, foi realizada de tal maneira que não é o texto que dominou os atores, mas a pragmática mesma do dizer. Isso ajuda a se desfazer da ideia de que o significante organiza um texto organizando os atores. Agora, são antes os atores que realizam o texto. Nesse espetáculo, “trata-se da histeria”, sublinha Lacan. Ele nota que, entre os atores, a que interpreta Dora está bem embaraçada. Ela “não mostra suas manias de histérica”. O termo “manias” deve ser destacado. O ator que representa Freud está ainda mais embaraçado, “ele dá a impressão de estar chateado, e isso se vê por sua entonação”. Lacan diz: “Temos ali a histeria… que eu poderia dizer incompleta. Quero dizer que, com a histeria, é sempre dois, pelo menos desde Freud. Ela aparece ali reduzida a um estado que eu poderia chamar de material”. Essa estranha qualificação “estado material da histeria” é explicitada assim: “E é por isso que acaba combinando com o que vou lhes explicar. Falta ali esse elemento que foi acrescentado há algum tempo – no final das contas, desde antes de Freud –, a saber, como é que ela deve ser compreendida”. Com a compreensão, reencontramos nossas balizas clássicas sobre a histeria. O sintoma histérico é por excelência um sintoma que fala, que é endereçado. Ele é portador de um sentido. O material, no fundo, é o sintoma como tal, separado do sentido. E Lacan acha que o interessante na Dora de Cixous é que ela apresenta a histeria sem o sentido. O que faz com que não se a compreenda mais. É isso que ele considera importante. Lacan o diz de um modo muito surpreendente: “Isso constitui alguma coisa muito impressionante e muito instrutiva: é uma espécie de histeria rígida”. A histeria de Cixous apresenta Dora sem nenhuma aparelhagem de sentido, uma histeria sem seu parceiro. Quando Lacan diz “A histeria, desde antes de Freud, é sempre dois”, ele designa desse modo que a histérica é acompanhada de seu interpretante, e isso começa com Josef Breuer, e mesmo antes, com as terapias de hipnose. Em A História do inconsciente, de Ellenberger[8], pode-se ver o catálogo de tudo o que, no final dos anos 1870, havia começado a animar o interpretante.

Para compreender o que Lacan quer dizer quando ele diz “histeria rígida”, é preciso nos reportarmos ao Seminário. Ele apresenta ali uma cadeia borromeana “rígida”[9]. Com exceção do fato de que é representada por elos retangulares no lugar de redondos, por que ela é chamada de rígida? Nada é “rígido”, a não ser pelo fato de se manter sozinho, unido, ou seja, de ser um modo do sujeito em que não há necessidade de uma rodinha suplementar, o Nome-do-Pai, e esta é toda a questão. A histeria apresentada por Cixous é uma histeria sem este interpretante que é o Nome-do-Pai, é uma histeria que se mantém inteiramente sozinha. Lacan não representa esse estatuto “rígido” da cadeia apenas sob a forma retangular, mas também na forma da chamada esfera armilar. Como reescrita dos Estudos sobre a histeria baseada em Joyce, é o mínimo, mas essencial. Passa-se do sistema falante ao sintoma como escrita.

No fim do Seminário, na “Nota passo a passo” redigida por Jacques-Alain Miller, encontramos o seguinte: “Se o nó como suporte do sujeito segura, não há necessidade alguma do Nome-do-Pai: ele é redundante. Se o nó não segura, o Nome exerce a função de sinthoma. Na psicanálise, ele é o instrumento para resolver o gozo pelo sentido[10]”. Era o que Lacan havia de início escrito com a metáfora paterna. O Nome-do-Pai permitia dar valor fálico ao Desejo da Mãe. O instrumento, o Nome, permitia dar a tudo o que se diz um valor fálico. Essa metáfora será generalizada por Lacan, com o gozo (J), que é o que vem se inscrever sob a barra, na linguagem, no lugar do Outro (A), para ser metaforizado – A/J. O Nome é o instrumento para resolver o gozo pelo sentido, da mesma maneira que, na metáfora paterna, o Nome resolve o significado do desejo materno dando-lhe a significação do falo.

É isso que é reformulado nas escritas da chamada cadeia rígida, aquela que se mantém inteiramente sozinha. Trata-se de uma cadeia tal que nela há uma apreensão do gozo e do sentido sem necessidade de passar pelo Nome-do-Pai, pelo amor ao pai, pela identificação ao pai.

Na primeira lição de L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, o Seminário posterior ao 23, Lacan prossegue sua busca por um “para além do inconsciente”[11]. Ele ousa traduzir l’Unbewusste freudiano, o inconsciente, por l’Une-bévue (“Um-deslize”) que, em francês, é uma homofonia do termo alemão, e não uma tradução. Mas isso é extremamente fundamentado, pois o título, L’insu que sait, é um jogo de palavras formidável sobre o inconsciente como insabido (insu), um insabido que se sabe, que se sabe em alguma parte. Dentre as novas expressões da língua francesa, tornou-se famosa esta expressão usada por um ciclista surpreendido na prática de doping: “ao insabido da minha plena vontade” (à l’insu de mon plein gré). Ela é muito instrutiva quanto à questão do saber. Que saber é esse que se sabe? L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre se inquieta com isso.

Sintoma e identificação

Na primeira lição desse Seminário, Lacan levanta questões que se encadeiam diretamente ao capítulo 7 do Seminário 23. Ele diz o seguinte na transcrição publicada em Ornicar?: “A identificação é o que se cristaliza em uma identidade”… “embora tenha me dado conta de ter esquecido meu seminário sobre a Identifizierung de Freud, lembro-me muito bem de que, para Freud, há três modos de identificação, ou seja, uma identificação para a qual ele reserva, não se sabe bem por que, a qualificação de amor, é identificação ao pai”. Após ter-lhe dado sua versão lógica com a metáfora paterna, Lacan diz agora que não se sabe bem por que essa identificação é assim. Quanto ao que Freud chama o pai, há uma série de fantasias, Totem e tabu, as histórias darwinianas, a pré-história de tudo o se queira, e a crença fundamental de Freud no pai. Lacan apresenta o seguinte: “uma identificação à qual ele [Freud] reserva, não se sabe bem por que, a qualificação de amor, é a identificação ao pai; uma identificação constituída de participação que ele pinça como a identificação histérica; e depois aquela que ele fabrica a partir de um traço que traduzi outrora como traço unário”. A identificação participativa implica um parceiro, tem a ver com o dois. Ele o diz: a histeria tem a ver com o dois. Este dois não é apenas a ligação da histérica com seu interpretante, mas designa também o fato de que a histérica extrai um sintoma do outro do qual está enamorada. O exemplo dado por Freud no capítulo 7 de Massenpsychologie é aquele de Dora que está afônica por identificar-se ao que ela pensa ser o gozo do pai consagrado ao cunnilingus na Sra. K. A afonia coloca em jogo sua própria boca nessa participação no gozo do pai. O pai é objeto de amor, mas esse amor implica uma participação no gozo. Finalmente, a última identificação, a que era, antes de Lacan, totalmente negligenciada pela psicanálise e considerada como a mais banal. Seu exemplo é: em um pensionato de moças, uma delas recebe uma carta de seu namorado que a entristece. Todo o mundo chora no dormitório à noite, as jovens entram em rebuliço, é a epidemia histérica. Elas não conhecem o namorado, aliás não sabem mesmo quem ele é, mas o sofrimento da amiga produz um rebuliço em todo o dormitório. Dessa última identificação, fundamento da epidemia histérica, Lacan faz uma chave. Quanto à segunda identificação, Freud diz que ela é construída “sobre um único traço desse pai”, e Lacan faz disso a intuição freudiana fundamental da redução da identificação ao traço, ao qual ele dá o valor fundamental de traço de escrita. O traço que aparece em seu Seminário 9 é revestido de um peso totalmente especial. Ele retoma, a partir da segunda identificação, a primeira e, depois, a terceira. Além disso, é a partir da terceira identificação que ele se põe a interrogar a segunda, dizendo que a participação no gozo ao qual Dora se identifica é um traço. Questionará então a primeira identificação ao pai para remetê-la a um traço do pai, e não mais ao pai da horda e a toda a barafunda darwin-lamarckiana que, em certo momento, fascinava Freud. A questão que Lacan quer retomar para esclarecer a questão da histeria é a da identificação. Ele a retoma não a partir de um mito, mas a partir da experiência da psicanálise. Ele levanta a questão: “A que identificar-se no final da análise? Será identificar-se a seu inconsciente? Não acredito nisso”[12]. Diz que o inconsciente permanece o Outro. E diz: “Não creio que se possa dar um sentido ao inconsciente”. Percebe-se que “identificação” e “dar sentido a” se aproximam. O fim da análise produz uma impossibilidade de se identificar a seu inconsciente. Nesse sentido, a identificação ao sintoma é o avesso da identificação histérica. A identificação histérica é identificar-se ao sintoma do outro, por participação. A essa identificação, Lacan opõe a identificação concebida a partir dos fenômenos do passe e do final da análise.

O real do sintoma analítico

É a partir do “identificar-se a seu sintoma” que Lacan vai interrogar a tensão entre o sintoma histérico e o sintoma analítico. Ele complica a oposição entre identificação histérica e identificação a “seu sintoma”, pois diz: “propus que o sintoma pode ser o parceiro sexual”. Trata-se do segundo tempo em relação à crítica da identificação histérica. Não se trata de uma participação no sintoma do outro, é o seu, mas o seu pode ser o outro. Seu sintoma, o que há mais de “si”, é efetivamente o parceiro sexual. Levanta então esta questão: o que é conhecer seu sintoma? E qual é a diferença entre conhecer e saber. Dizer “O parceiro sexual é um sintoma” quer dizer também que o parceiro sexual é aquele que não se conhece, que não há nenhum conhecimento possível do parceiro sexual. É preciso certamente se lembrar bem da oposição conhecer/saber, e não se esquecer de que o sintoma está do lado do saber, o que implica justamente não conhecer. “Propus que o sintoma pode ser o parceiro sexual… o sintoma tomado nesse sentido é o que… se conhece melhor. Esse conhecimento não vai muito longe, deve ser tomado no sentido que foi proposto de que bastaria um homem dormir com uma mulher para que ele a conheça[13]”. Trata-se da imagem bíblica: na bíblia, conhecer uma mulher significa ter uma relação sexual com ela. “Como, apesar de eu me esforçar para isso, é fato que não sou mulher, não sei o que uma mulher conhece de um homem, é mesmo bem possível que isso vá muito longe, mas não pode, contudo, chegar sequer à perspectiva de que a mulher criou o homem”. Temos, aí, desenvolvimentos complexos de um avesso da metáfora da criação divina. “E mesmo quando se trata de seus filhos, os filhos para uma mulher permanecem como parasitas. Trata-se ali de um parasita, de um parasitismo. No útero da mulher, a criança é parasita, e tudo o indica, inclusive o fato de que as coisas podem ir muito mal entre o parasita e o ventre”. Essa notação é muito útil para os psiquiatras de crianças e para os psiquiatras em geral quanto ao fato de que toda gravidez tem um pequeno lado de denegação da gravidez. Não há conhecimento da gravidez. Há sempre um ponto em que uma mulher não sabe que está grávida. Não há apenas os casos graves que provocaram alarde na crônica judiciária quanto a uma denegação radical da gravidez. Existem detalhes muito precisos, muito delicados, que apenas aparecem em uma análise, mas, se os levarmos em conta, poder-se-ia dizer que em todos os casos há alguma coisa que não se pode saber, no sentido de uma transparência do conhecimento a ele próprio. O saber pode ser insabido, não o conhecimento. É o que Lacan diz nesse texto. Desde então, o que quer dizer conhecer? “Conhecer seu sintoma quer dizer savoir faire com ele, saber se virar com ele, manejá-lo”[14]. É o que se faz com o parceiro sexual; consegue-se, pouco a pouco, se virar com ele, manipulá-lo. “O que o homem sabe fazer com sua imagem corresponde de alguma forma a isso, e permite imaginar a maneira de como se virar com o sintoma”[15].

Lacan enuncia portanto que não se trata, assim, de saber como isso se dá em uma escrita simbólica. A gente se vira com o parceiro sexual como se vira com a própria imagem. Há sempre um narcisismo na escolha do parceiro sexual, não no nível da imagem, mas no nível da manipulação que se pode fazer dele. O papel do imaginário como tal toma um valor efetivamente importante. Não estamos mais na época do imaginário depreciado em relação ao simbólico, é o imaginário na medida em que ele nos dá as coordenadas fundamentais para viver nesse mundo. A gente se virar com a imagem é o que permite pouco a pouco se virar com o parceiro sexual. Imaginário e real são, aqui, colocados em continuidade. É como na ciência que, também, tem necessidade da dimensão do imaginário. A prova disso, nos diz Lacan, é seu desvio pela teoria dos modelos: “Lord Kelvin por exemplo considerava que a ciência era alguma coisa na qual funcionava um modelo que permitia prever quais seriam os resultados do funcionamento do real’’. Na ciência, recorre-se então ao imaginário para se ter uma ideia do real.

Lacan avança em seu raciocínio dando ao imaginário uma consistência equivalente ao simbólico. Ele se coloca então a questão sobre o que seria a consistência do real. “Eu me dei conta de que consistir queria dizer que era necessário falar de corpo: há um corpo imaginário, um corpo simbólico – é a linguagem – e um corpo real, do qual não se sabe como ele aparece[16]”. O corpo simbólico é a linguagem, o conjunto dos equívocos da língua. O imaginário é o que permite nos virarmos, o modelo. Mas o que pode ser o corpo real? Para Lord Kelvin é isso que a ciência se recusa a admitir; tem-se um modelo, mas não se sabe o que é o corpo real. A esse respeito, não há hipóteses.

O mesmo e o corpo real

Baseado na psicanálise, Lacan quer definir o corpo real. Introduz seu desenvolvimento a partir do mesmo: “como designar de modo análogo as três identificações distinguidas por Freud, a identificação histérica, a identificação amorosa chamada de identificação ao pai e a identificação que nomearei neutra, aquela que não é nem uma nem outra, a identificação um traço que chamei de qualquer um, a um traço que seja apenas o mesmo”[17]. No que concerne ao real, o importante é que o mesmo seja o mesmo materialmente, ‘‘a noção de matéria é fundamental, já que ela funda o mesmo”[18]. Entende-se porque ele estava muito contente de dizer que Hélène Cixous apresentava uma histeria ‘‘material’’. Ela apresentava alguma coisa na vertente de um mesmo que se refere ao fora-do-sentido, que não tem necessidade do sentido, lhe é disjunto. Em compensação, diz ele, o significante faz série, está sempre na oposição entre o mesmo e um outro, o S1 e o S2. Do lado do assinalamento (signalement), há uma série de outros, unidades dentre as quais sempre é possível um deslize (bévue). O real, em compensação, é a repetição material do mesmo na medida em que é o gozo que se repete. No nível do simbólico, há os “um” que fazem série, e na qual é possível se enganar. Dizer que há “deslizes” é igualmente dizer que há equívocos. O inconsciente de Lacan é feito de “um-deslize” (une-bévue) que são significantes-um que sempre geram equívocos. Em Die Bedeutung des Phallus, Lacan situava o equívoco a partir da diferença entre sentido e referência segundo Frege. Vocês podem dizer que Vênus é a “estrela da manhã” ou a “estrela vésper”, trata-se da mesma Vênus. Essas duas descrições, essas duas significações, são ambas signo de Vênus. Vênus é o planeta que está ali quando, na língua, pode-se dizer “a estrela da manhã” ou “a estrela vésper”. No Seminário 23, “a falácia testemunha do real” está bem mais do lado do signo. O falo não se situa mais nos efeitos de deslizamento (glissement)da significação. Tal deslizamento (glissement)vem marcar um modo de gozo que permanece sempre o mesmo e que pode ser nomeado na língua através dos “um” significantes pelos quais a gente sempre pode se enganar.

A consequência disso é a apresentação do corpo do falasser, do vivo, sem passar pela identificação histérica que mistura sintoma e sentido. O corpo do sujeito histérico é retalhado pelo significante, já que os sintomas histéricos se apresentam sob o modo da perda. O corpo retalhado é aquele que perde seu braço pela paralisia histérica, o corpo que perde sua perna, que perde sua voz. A esse corpo retalhado se opõe o corpo tórico furado. O corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário se apresenta em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho. O corpo tórico é uma representação do corpo do vivo para além do corpo histérico. Nessa perspectiva, pode-se distinguir o sintoma como acontecimento de corpo e o sintoma histérico. Lacan o diz da seguinte maneira: “A diferença entre a histérica e eu é que a histérica é sustentada em sua forma de bastão (trique) por uma armadura distinta de seu consciente, que é seu amor por seu pai[19]”. Para se manter unido o sujeito histérico, é preciso acrescentar um Nome-do-Pai. Isso não é mais necessário na versão da histérica chamada rígida, à la Cixous. “Freud tinha apenas algumas poucas ideias do que era o inconsciente, mas parece que se pode deduzir que pensava que se tratava de efeitos de significante. Não lhe era fácil isso, ele não sabia lidar (il ne sait pas faire) com o saber. É sua debilidade mental, da qual não sou uma exceção, porque tenho a ver com o mesmo material que todo o mundo, com esse material que nos habita”[20]. Nesse contexto, “material” é ainda apreendido do real do gozo. Lacan propõe assim um inconsciente que não é mais constituído de efeitos dos significantes. Propõe outra versão de um inconsciente que não é constituído pelos efeitos do significante em um corpo imaginário, mas, sim, um inconsciente constituído desse nó entre o imaginário, o simbólico e o real. Inclui a instância do real que é a pura repetição do mesmo, o que Jacques-Alain Miller, em seu último curso, isolou na dimensão do Um-sozinho que se repete.

As três consistências e o acontecimento de corpo

Por isso, Lacan pode dizer, em “Joyce, o Sintoma”: “Deixemos o sintoma ao que ele é, um acontecimento de corpo ligado a que se o tem, se tem ares de […] Assim, indivíduos que Aristóteles toma como corpos podem não ser nada além de sintomas, eles próprios, em relação a outros corpos. Uma mulher, por exemplo, é um sintoma de um outro corpo”[21]. Essa frase define a posição feminina como o anti-‘sintoma histérico’. Tal definição da posição feminina permite diferenciá-la da histeria. Quando isso não acontece, “ela permanece sintoma como o chamado sintoma histérico, ou seja, paradoxalmente, só lhe interessa um outro sintoma”[22]. Este era de fato o caso de Dora que só se interessava por um outro sintoma, o do seu pai. Ela se identificava a seu pai, identificava-se à impotência de seu pai sendo afônica. Lacan continua a precisar a oposição: “O sintoma histérico está antes da questão do sintoma como tal”, o sintoma vem se inscrever no corpo ainda que seja, nessa ocasião, também exterior ao corpo. O sintoma está no corpo. Ele não é endopsíquico, está fora.

Em Bruxelas, Lacan começa assim: “O que aconteceu com as histéricas de outrora, essas mulheres maravilhosas, as Anna O., as Emmy von N.? Elas desempenhavam não apenas determinado papel, mas um papel social determinado. O que substitui hoje esses sintomas histéricos de antigamente? A histérica não foi deslocada no campo social?”[23]: “A maluquicepsicanalítica a não teria substituído?”. Ao colocar em primeiro plano o simbólico, a psicanálise não só desmontou os artifícios do sintoma histérico, como também ocupa seu laço. E ele nota o seguinte: “O inconsciente se origina do fato de que a histérica não sabe o que diz ao dizer verdadeiramente alguma coisa pelas palavras que lhe faltam. O inconsciente é um sedimento de linguagem”. Lacan propõe então um horizonte da psicanálise que não é histérico – é o real como “ideia limite”, a ideia do que não tem sentido. É isso que fez com que Jacques-Alain Miller pudesse qualificar o real como um sonho de Lacan, alguma coisa como uma ideia limite, mas uma ideia limite necessária para contrabalançar uma tendência da psicanálise que é sua tendência delirante – “a tendência de uma preferência dada acima de tudo ao inconsciente”[24]. Por isso, nessa época, Lacan toca em alguma coisa de um real que, para ele, não é o real científico, mas o real da substância gozante e considera ainda mais urgente proteger a psicanálise de sua tendência delirante que ele chama de “preferir o inconsciente acima de tudo”. Nesse Seminário, ele dá um exemplo disso: Le Verbier de l’Homme aux loups, texto publicado por Nicolas Abraham e Maria Torok, psicanalistas franceses ou, se quiserem, neo-ferenczianos, que se propuseram a delirar com o homem dos lobos indo atrás de todos os ecos dos significantes que o atravessam, pelas homofonias e pelos equívocos em todas as línguas por ele conhecidas: o russo, o alemão, o dialeto vienense, etc…. São todas essas ressonâncias que eles chamam de Verbier (“Verbário”), termo que mescla verbiage (“verborreia”) e herbier (“herbário”). É esse objeto que Lacan considera propriamente delirante. Ele diz: “Não considero, apesar de ter engajado as coisas nessa via, que este livro, nem seu prefácio, sejam de muito bom-tom. No gênero delírio é um extremo, e me assustei ao sentir-me mais ou menos responsável por ter aberto as comportas”[25]. Diante da abertura das comportas do significante, Lacan considera que a única coisa que poderia impedir a psicanálise de delirar era ter, senão uma ciência nela, ao menos a ideia de um real. Ele constata que ela pode tocar um tipo de real. Ele delimita um fora-do-sentido que garante uma detenção da cadeia, que permite não se deixar aspirar pelo inconsciente. O ‘‘material’’ não é uma representação, nem uma representações de palavras, mas palavras em sua materialidade. São palavras em seus equívocos fundamentais, o equívoco dos Um-deslize (Une-bévue) e que são somente uma aproximação do real. Acompanhando Lacan, teríamos uma chance de impedir a psicanálise de delirar, com a condição de não preferir uma das três consistências em detrimento das outras. Trata-se de manter as três juntas, de não preferir uma em detrimento das outras, de não fazer de uma um todo.

O VI ENAPOL será a ocasião para desenvolver as consequências do novo status do sintoma e da identificação através de todo o campo psi. Uma lista desses aspectos já foi dada por Leonardo Gorostiza: “além da dimensão da psicanálise pura, os temas mais presentes na América – a violência ou agressividade, o consumo generalizado de drogas, os chamados transtornos da alimentação, as mudanças de sexo nos corpos e da procriação, e seus efeitos nas normas, a crise das normas familiares e dos códigos civis para dar conta disso, a polêmica sobre a pertinência de psicanálise no campo do autismo”. A comissão de organização, com Ricardo Seldes, já está trabalhando para destacar as respostas que damos a essas diferentes questões através dos trabalhos dos participantes.

27 de setembro de 2012

Tradução: Elisa Monteiro
Revisão: Sérgio Laia


  1. N.R.T.: ENAPOL é a sigla para Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana.
  2. N.R.T.: No original, loi d’airain é uma expressão utilizada por Lassale, contemporâneo de Marx, para se referir à lei que, no capitalismo, reduz o salário do operário ao mínimo necessário à sobrevivência.
  3. N.R.T.: no original, le manche, termo que, de modo mais frequente, designa o “cabo”, ou seja, a parte onde se pega em um instrumento. Entretanto, Rabelais, que é uma referência importante para o Lacan do Seminário 23, utiliza tal termo para se referir ao “membro viril”. Por isso, nossa opção de traduzi-lo por “ferramenta”.
  4. LACAN, J., Le seminaire: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-77), aula de 16 de novembro de 1976, publicada em Ornicar? n°12, p. 5.
  5. LACAN, J. O Seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976)Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 101.
  6. LACAN, J. O Seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976), op.cit., p. 102.
  7. No dia 26 de fevereiro de 1976, no Teatro d’Orsay (Companhia Renaud-Barrault), aconteceu a primeira apresentação mundial de Portrait de Dora, peça escrita por Hélène Cixous.
  8. ELLENBERGER, H. A la découverte de l’inconscient, SIMEP, 1974 (reeditado com o título Histoire de l’inconscient, Fayard, 2001).
  9. LACAN, J. O Seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976), p. 103-105.
  10. LACAN, J. O Seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976), p. 238.
  11. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de1976, Ornicar ? n°12, p. 5.
  12. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p. 6.
  13. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p. 6.
  14. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p. 6.
  15. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p. 6.
  16. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p.7.
  17. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 16 de novembro de 1976, Ornicar ? n°12, p. 9.
  18. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 14 de dezembro de1976, Ornicar ? n°13 , p. 10.
  19. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 14 de dezembro de 1976, Ornicar ? n°13 , p. 13.
  20. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 11 de janeiro de 1977, Ornicar ? n°14, p. 5.
  21. LACAN, J., Autres Écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 569. N.R.T.: Na tradução para o português, foram feitas algumas alterações com relação àquela publicada em: Outros escritos. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2003, p. 565.
  22. LACAN, J. Outros escritos…, p. 565.
  23. LACAN, J., “Propos sur l’hystérie”, Quarto n°2, setembro de 1981, p. 5.
  24. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 14 de dezembro de1976, Ornicar ? n°13 , p. 15.
  25. LACAN, J. Le séminaire 1976-77…, aula do dia 14 de dezembro de1976, Ornicar ? n°13 , p. 8.