Marisa Morao

EOL (Buenos Aires)

O tema do VI Encontro Americano, “Falar com o corpo. A crise das normas e a agitação do real” convida a refletir sobre os usos do corpo na civilização contemporânea.

A subjetividade da época atravessada pelo individualismo de massa põe em relevo que a agitação do real irrompe em diversos usos mortificantes do corpo nos quais se evidencia o fracasso das normas na tentativa de regulação. Um desses usos é o que se manifesta no fenômeno de violência sobre o corpo de uma mulher, isto é, quando um parceiroexerce um ato violento que implica golpear, arruinar, devastar o corpo de uma mulher provocando em alguns casos a morte física. (Este extremo do problema é o que hoje se denomina feminicídio, termo cunhado por Diana Russell e Jill Radford em sua obra Feminicide).

Na atualidade, no campo das ciências sociais e políticas, este atoleiro se inscreve como violência de gênero.

Sabemos que a Orientação Lacaniana não participa da lógica dos estudos de gênero. Para a psicanálise não há definição de A mulher, tão somente existem dois modos de viver a pulsão: feminino e masculino. Deste modo, a inclusão na parte mulher dos seres que falam não responde ao sexo biológico, vai mais além dos caracteres sexuais secundários.

O fenômeno de violência sobre o corpo do ser falante feminino mostra o uso devastador que tem lugar no parceiro-devastação. A propósito disso, Éric Laurent [1] assinala que “os homens são devastadores para o outro corpo”. No “feminicídio os homens batem, matam, causam dano ao Outro corpo”. As mulheres podem ser o sintoma podem ser o sintoma de outro corpo, obstáculo fundamental ao individualismo de massa.

Sob essa perspectiva, Lacan assinala que os corpos “pode não ser nada além de sintomas, eles próprios, em relação a outros corpos” [2]. Os corpos se arranjam entre si de acordo com os sintomas, se arranjam uns aos outros em função dos sintomas. Assim, “uma mulher, por exemplo, é sintoma de um outro corpo”. [3]

Cabe distinguir que não se trata do corpo articulado à forma, senão dos acontecimentos de corpo, que constituem sintoma ou sinthoma, isto é, amarração.

No Boletim N#1, Elisa Alvarenga se interroga acerca da potência do discurso analítico destacando seu efeito desmassificante. Podemos dizer que, ainda que o discurso analítico seja frágil, sua força reside no fato de forçar o ser falante a constituir um sintoma. Com respeito ao uso devastador do corpo permite a passagem do parceiro-devastação ao sintoma como acontecimento de corpo, orientação singular que atravessa o individualismo de massa.

Uma mulher tem a chance de habitar um novo lugar radicalmente diferente que o de ter um parceiro devastação; pode consentir com um percurso analítico que possibilite o acesso ao Outro sexo pela via do laço sintomático.


Tradução: Jorge Pimenta

  1. Laurent, É. – La clínica de lo singular frente a la epidemia de las clasificaciones, Conferencia dictada en las XXI Jornadas Anuales de la EOL, inédita, Bs. As, 2012.
  2. Lacan, J. – Joyce, o sintoma, in: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003 : 565.
  3. Ídem, ibíd.