Cecilia Rubinetti

EOL (Bs. As.)

Para abordar o texto de Éric Laurent, argumento do próximo Enapol, escolhi tomar como eixo a histeria. O sintoma histérico tem sido desde Freud o paradigma de “falar com o corpo”. Ilustra com clareza a perturbação do corpo como marca do surgimento traumático do gozo.

Há no texto de Laurent, cujo percurso se apóia em referências dos últimos Seminários de Lacan, uma torção complexa e sumamente interessante no que diz respeito à histeria.

Laurent situa o modo com que a época colocou em questão a sustentação, o coração da organização do sintoma histérico em torno do amor ao pai. A pergunta será então como falam hoje os corpos para além do sintoma histérico, quer dizer, sem o suporte do amor ao pai. É a partir dessa pergunta que, tomando uma citação do Seminário 23, propõe uma versão paradoxal do sintoma histérico. Trata-se de um sintoma histérico separado do sentido. A referência para procurar definir este estatuto do sintoma histérico será a aula VII do Seminário 23. Ali Lacan traz uma personagem de uma obra de teatro de Helene Cixous inspirada em Dora de Freud: “O retrato de Dora”. Na obra produz-se, sublinha Lacan, algo muito surpreendente. Trata-se da histeria reduzida a um estado que se poderia chamar material, uma espécie de “histeria rígida”. A obra de Cixous apresenta a histeria sem o sentido, sem interpretante, sem seu parceiro. É complexo perceber aquilo que Lacan encontrou na colocação da obra de Cixous. Para ilustrá-la Lacan desenha uma cadeia borromeana retangular a que chama rígida. O que quer dizer rígida? Que prescinde, para sua sustentação, para a consistência de seu enodamento, de um círculo suplementar. Sustenta-se só, sem o Nome do Pai. Consegue-se captar a complexidade da colocação, que contém o paradoxo de uma histeria sem Nome do Pai.

Por que Laurent retoma a referência de Lacan à histeria rígida? Por que retomar, à propósito do Enapol, esta formulação tão enigmática e paradoxal que implica uma histeria sem Nome do Pai?

Laurent parece indicar no horizonte uma certa caducidade do que classicamente entendemos por histeria e situa, por outro lado, um corpo que fala mas sem nenhum sentido a decifrar, sem nenhum chamado à interpretação, sem possibilidade de sustentar-se na suposição de que o Nome do Pai teria algo a dizer acerca do caráter traumático da não relação sexual. Que propriedade conservaria então da histeria para que Lacan continue nomeando-a desse modo? Podemos pensar que a histeria rígida sustenta o intento de dar resposta ao trauma sexual por meio do significante (como na histeria clássica) mas sem o recurso ao interpretante, sem o suporte do pai. Nesse lugar poderiam caber distintos tipos de invenções singulares que se sustentam como resposta.

Em uma conferência de julho do ano passado na Suíça, dedicada à leitura do Seminário 23, Laurent retoma este mesmo ponto, menciona a histeria rígida, quer dizer a histeria fora de sentido e a referência será uma vez mais a literatura. Propõe que Clarice Lispector ilustraria ainda melhor que a Dora de Cixous o que Lacan define em seu Seminário como histeria rígida.

Lispector (1920-1977) é considerada uma das maiores escritoras brasileiras do século XX. Quem se acercou de seu estilo de escritura tão característico percebeu que permite entrever algo do que assinala Laurent. Seu particular tratamento das palavras consiste em levá-las ao limite. Toca constantemente o impossível de dizer, sua escritura discorre nesse litoral: “A palavra tem seu terrível limite. Para além desse limite está o caos orgânico. Depois do final da palavra começa o grande alarido eterno” [1]. Sua prosa, tão bela como perturbadora, habita o próprio limite.

Laurent nesta conferência dá um passo mais, propondo um estudo ou investigação que poderia chamar-se “Clarice Lispector: O sinthome ou A sinthome”. A referência ao desenvolvimento de Lacan sobre Joyce, o sintoma é clara. Agora, um pouco nas entrelinhas Laurent propõe, a meu entender, uma particularidade ao antepor o artigo “a”. Particularidade que implicaria introduzir o elemento feminino neste tipo de enodamento, nestas histerias fora de sentido. Laurent propõe um novo e complexo programa de trabalho que permitiria pensar o sinthome no feminino a partir desta formulação ainda enigmática e elucidar o que seria a histeria rígida.

Até aqui caminha esta breve pontuação que procurou transmitir as diretrizes da via de trabalho que o texto de Eric Laurent abriu para mim rumo ao próximo Enapol.


Tradução: Mônica Bueno de Camargo

  1. Palavras de Clarice Lispector em una entrevista realizada por Olga BorellI: “Liminar”, em: Clarice Lispector, A Paixão segundo G. H. (Ed. crítica, Coord. Benedito Nunes).